Volume 1

Capítulo 27: Sonho da promessa

 

Era dia claro, perfeito para traquinagens; sem nuvens no céu, clima de feriado, fomos para o nosso canto de encontro favorito: a sorveteria. O único lugar que poderíamos falar e fazer de tudo.

Enrico pediu o de sempre. Seu Colosso de baunilha com calda de caramelo e NN’s.  Carla escolheu um duplo de creme com leite condensado e farofa de amendoim e eu fiquei com minha simples casquinha mista com cobertura de morango.

— E então, por que chamou a gente aqui, Enrico? — perguntei após uma boa mordida na casquinha.

— Na verdade, foi ideia da Carla — admitiu ele, dando de ombros. — Nem sei do que se trata também.

Carla riu e tirou um pacote de sua bolsinha, colocando-o sobre a mesa. Um sibilar abafado surgiu, chamando nossa atenção.

— O que é isso?

— Vocês já vão ver.

Com suas unhas, rasgou o saco de onde tirou três sinos entrelaçados. Cada sino tinha um formato diferente e três desenhos distintos. Cada um deles também tinha um som próprio.   

— Sinos? — Enrico ajeitou os óculos no rosto.

— Sim. — Carla desaninhou o nó que unia os três sinos e entregou o primeiro. — O seu, Enrico, é o sino do cavalo.

BLING, BLING, BLING...

Os olhos de Enrico brilharam ao tomar o pequeno objeto em sua mão.

— Representa o poder, mas também a sabedoria — continuou Carla. — O cavalo combina com você porque você sempre tomou a iniciativa. Apesar de ser reservado, você é alguém muito forte e que sempre faz o que acha que tem de fazer. Um espírito livre, como um cavalo correndo em uma campina.

— Lá vem ela com esses papos — suspirei, com mais uma mordida na casquinha logo em seguida.

— O meu é a cobra.

BLENG, BLENG, BLENG...

— O animal que traz a ideia de mudança. Adaptação. Assim como eu.

— É... bem adaptada mesmo — disse Enrico, com certo sarcasmo. — Esqueceu a parte do “peçonhenta”.

— Vai à merda, Enrico. — Carla deu língua para ele. — Tem tudo a ver comigo mesmo, tá? Seu chato.

Enrico parou de rir e voltou sua atenção para seu sorvete. Depois de um estalo de língua, Carla pega o último sino e vira o rosto para mim.

— Cachorro.

BLONG, BLONG, BLONG...

— Cachorro? Ih alá! Seria alguma indireta? — brincou Enrico, soluçando.

Franzi as sobrancelhas, espirrando um pouco da água do copinho na direção dele. Carla segurou uma risada e prosseguiu:

— O Cachorro é um animal corajoso e sempre é leal àqueles que considera como família. Mas acima de tudo... — Carla colocou o sino gentilmente na minha mão, sorrindo. — A habilidade de amar incondicionalmente.

— Carla...

Enrico desviou o olhar, parecendo incomodado com aquele... momento, e tentou disfarçar tomando seu sorvete. Não foi tão convincente, mas fingi não prestar atenção.

— E por que você deu isso pra gente, Carla? — pergunta ele.

— Vamos fazer uma promessa, nós três.

— Promessa? — Eu e Enrico repetimos ao mesmo tempo.

— Sim. — Ela pega seu próprio sino e balança. — Sempre que tocarmos esse sino, não importa onde nem quando, vamos nos lembrar que temos um ao outro. Que podemos sempre contar um com o outro. Se estivermos brigados, vamos perdoar um ao outro. Se estivermos tristes, vamos consolar um ao outro. Certo? Essa vai ser a nossa promessa!

...

— Como? — As palavras pareceram confusas para mim.

A visão embaçou por um momento e me senti marejado.

— Tá prestando atenção, Calebe?

— ...!

De repente, fui jogado em outra memória. Pisquei e visualizei outro lugar; outra circunstância, mas com a mesma Carla na minha frente, dessa vez um pouco mais nova.

Estávamos brincando no meu quarto agora. Ela estava sentada, de pernas cruzadas, uma pilha de brinquedos e cacarecos espalhados pelo chão entre nós. Bonequinhos, carrinhos, pedaços de peças que formavam construções...

E os monstros.

Um em especial sempre foi minha escolha para ser o vilão das brincadeiras; um dinossauro rex que havia ficado sem as patas, então as substituí por pernas de um outro boneco qualquer. E ele também usava um gancho na pata direita.

E também tinha uma boneca que, por ser mais feia que as outras, fazia par com o “Homem Dino”. A assustadora “Mulher Cabeleira”.

— O que era? Eu me perdi.

— Nossa, como você é desligado! — disse Carla, rindo. — Eu tava falando sobre a última luta, bobo.

Olhei para o chão e um palco foi montado, com vários bonecos em cena. Dentro de uma caixa, a mais alta de uma pilha montada para simular uma torre, estava um boneco vestido de rei com uma coroinha de papel sobre o cabeção de plástico.

No chão, dois bonecos de pé, um na frente do outro: Musashi, a espadachim que derrota todo mal e a Mulher Cabeleira! O confronto que decidiria o destino do Príncipe Brigadeiro!

— E agora?

— E agora que eu uso meu cabelo monstro e sedoso para prender a sua Musashi! Muahahahahaha!! — Ela cruzou as mãos e fez a maior cara de maníaca.

— Ah, é?! Pois saiba que a invencível Musashi nunca se rende! Ela tem um truque especial que ainda não mostrou! — Segui meu papel e disse com pompa.

— Sério? Pois mostre para mim então ou não poderá salvar o Príncipe Brigadeiro de seu cativeiro!

Quando parecia que eu ia dizer o nome, nada saia da minha boca. A habilidade secreta fugia de mim como eu e Enrico fugíamos da chinelada. Carla ficou parada, me olhando com impaciência.

— Já esqueceu, né?

— Já... ~T-T  

Ela esfregou a mão na testa e então pegou a samurai de brinquedo e sua espada.

— Aqui. Eu vou te ensinar de novo, mas não é pra estragar a brincadeira. Você é muito esquecido menino, nãm!

— Tá, tá. Como é?

— Esse truque só é usado em casos de necessidade e só para proteger as pessoas que você mais ama! — Ela colocou o palito na mão da boneca e continuou: — Musashi, a samurai, mesmo diante de um inimigo poderoso, nunca recua! Nunca desiste! Essa é sua maior força!

Eu fiquei ali, olhando para ela e ouvindo sua explicação como se estivesse hipnotizado. Tudo era tão mágico; aquele momento com Carla, aquelas brincadeiras, suas explicações... eu nem mesmo me lembrava do que ela tinha explicado, mas apenas que ela tinha explicado.

— Ouviu bem?

— Ah, sim! Sim! Ouvi.

— Você tá um prego hoje. Quando chegar o momento de salvar o príncipe, vai ter que se lembrar, ou não vai ganhar da Mulher Cabeleira.

— Tá bom. Tá bom — suspirei. — Qual o nome?

— O nome é...

 


“RODA DAS ESTAÇÕES


 

 

*****   *****

 

 

BLING, BLING, BLING...

— Eu...

— Hum? Disse algo?

— Eu me lembro... Enrico. — Levanto, lutando contra a dor e a tontura. Meus olhos se fixam nos dele. — Eu lembro. Finalmente, eu lembro.

As chamas de Sashi ficam mais intensas, talvez reagindo ao que eu estou sentindo agora. Ter uma parte dessas memórias, de descobrir sobre quem eu era.

E o que eu precisava fazer.

— Se lembrou? — Enrico faz uma expressão de desgosto ao falar. — Então sabe o porquê de eu querer você morto, não é?

— A única coisa que eu sei é que, em nome da promessa que fizemos, eu preciso chutar sua bunda aqui e agora — declaro ao apontar para ele.

Sashi se levanta e brande a espada para Jane, a Obscura, seus braços e pernas sangrando. É como sentir meu próprio corpo esburacado; a sensação de queimação, a dor... eram insuportáveis e eu sinto que posso apagar a qualquer momento.

Só minha raiva e vontade de dar na cara do meu amigo de infância me mantém consciente. Aquele ciclo de mortes iria terminar agora.

— Sashi.

— O que foi?

— Consegue uma abertura para dar aquele golpe?

Sashi me olha sobre o ombro enquanto sorri, sabendo exatamente ao que me referia.

— Não vai ser fácil com toda aquela zona de sombras vivas, mas eu posso tentar.

— Não. Eu sei que vai conseguir. — Faço uma pausa, colocando o punho fechado sobre o peito. — Afinal, mesmo diante de um inimigo poderoso, você nunca recua. Nunca desiste! E essa é sua maior força!

Sashi arregala os olhos, corada, e então sorri.

— Calebe...

— Vamos, Sashi! Vamos fazer o Enrico cair na real, mesmo que a gente tenha que encher ele de porrada!

— Uhum!

— Jane, vamos acabar logo com isso.

— Hyyaak!!

Jane balança os braços, o corpo bambeando enquanto o mar de sombras que os cerca rodopia, cada vez mais rápido. Sashi avança contra o inimigo, brandindo sua katana.

— Hyaaaa!!

— Hyaak!! Hyyk!!

Jane desfere um golpe com suas garras afiadas, Sashi com sua espada. Os dois ataques colidem, arrancando um tinir metálico agudo e faíscas no processo. Uma onda de pressão se forma ao redor dos dois personas.

Ainda no ar, Sashi é atacada pelos ramos sombrios de Jane, lembrando mãos obscuras tentando agarrar uma mosca ágil. As labaredas violetas que imbuem a lâmina dela se intensificam e ela grita:

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Círculo do Espelho do Inverno!

Sashi golpeia rápido. Mais rápido do que meus olhos conseguem acompanhar. Uma grande área da clareira se preenche com cortes flamejantes e violáceos, cortando e carbonizando os ataques da mulher costurada ao redor.

— Tsc! — Enrico estala a língua e volta a se esconder dentro da imensidão sombria do corpo de seu próprio persona.

Jane volta a rasgar o espaço e desaparece através da brecha entre a realidade e o Mundo dos Sonhos. Sashi estala a língua e permanece alerta, sua katana alta e preparada. As sombras deixadas para trás se transformam em uma bolha ao redor dela.

— Sashi! — Corro até ela, mas um espinho gigante brota da superfície oscilante da bolha e por pouco não perfura meu peito. — Merda! Sashi! Sashi, sai daí!

Não adianta. O efeito é semelhante à um vidro fumê, mas de forma inversa; eu posso vê-la do lado de dentro, mas parece que ela não pode me ver. Também não posso me aproximar.

Olho para os lados e só vejo desespero. Yatsufusa lentamente começa a sumir. Beni e Linda também, as coroas de suas cabeças jogadas ao chão, simbolizando que estão fora de combate.

Agora é só eu e Sashi contra Enrico.

De repente, um rasgão se forma no espaço atrás de Sashi e uma garra sai de dentro dela, acertando um golpe em cheio nas costas da samurai.

— Huaa!! — Sashi grita e cambaleia para frente, penando para manter o equilíbrio.

Sinto a mesma ardência atingindo minhas costas, mas, diferente da Sashi, eu caio no chão, me tremendo com a dor.

Porra! Porra, porra! Dói! Dói pra caralho, ai, ai, ai!!

Faço um esforço para levantar, porém antes de conseguir, Sashi é atingida novamente por outro golpe, dessa vez vindo debaixo, do solo, e fazendo-a voar.

— Gwaahh!! — geme ela.

— Aaargh!! — grito, sentindo o mesmo.

— O que foi, herói? Não consegue mais lutar? Não disse que ia chutar minha bunda? — A voz de Enrico ecoa pelo ambiente, como um fantasma soturno. — Essa promessa inútil que você diz que vai cumprir... você mesmo a quebrou há muito tempo! Foi você mesmo que trouxe tudo isso para si!

— Droga... argh! Do que é que você tá falando, seu merda?! — Foi minha vez de gritar.

Sashi levanta de novo, arfando. Ela empunha sua katana, suas chamas mantendo-se estáveis.

—『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Impulso da Lança Outonal!

Em uma manobra desesperada, Sashi usa sua habilidade e se joga contra a parede de sombras que a prende no centro da clareira. A espada inflamada se choca violentamente contra a redoma, mas Sashi é repelida de supetão.

Ela está completamente presa.

— Você a tirou de mim! Você tirou tudo que era importante para mim com seu egoísmo! Por isso... por isso...!

A voz dele exala dor, desespero, raiva. Nas memórias que recuperei, não vi nada que explicasse esses sentimentos. O que eu fiz com a Carla para fazer Enrico me odiar tanto? O que aconteceu, nesse período de um ano e meio, que resultou em todo esse cenário?

Por mais que eu tente, não vou conseguir lembrar disso agora. Tenho que focar no agora, em ajuda a Sashi de alguma forma e derrotar Enrico. A vida de muita gente ainda dependia disso.

Eu preciso... preciso focar. Focar, focar, focar... na lembrança.

Carla... me ensine. Só mais uma vez.

—...

Roda das Estações? — Abro os olhos novamente, voltando naquele dia. — Que nome mais sem graça!

— Quer parar de reclamar? Você que perguntou, seu bobo! — Carla franziu as sobrancelhas.

— Os outros ataques fazem sentido porque era o que o samurai no desenho usava, mas Roda das Estações não faz sentido nenhum!

— Claro que faz! Pensa comigo. Todas as estações provem e tiram algo. A primavera, a beleza e a fluidez. O inverno...

— Lá vem você com esses papos! Você lê muitos livros de horóscopo sabia?

— Quer deixar eu terminar? — Me calei. Carla fungou e continuou: — O Inverno traz o frio e a proteção, o Outono, a imponência e calmaria, e por fim, o verão com sua agressividade e força. Mas o que acontece se juntarmos tudo isso?

— Sei lá. Quase não vejo as estações passarem. A gente mora no Brasil, esqueceu?

Carla inflou as bochechas, me fazendo calar novamente.

— O ano é composto por essas quatro estações, divididas em uma roda. A roda simboliza o todo.

Ela pausou sua explicação, tocando minhas mãos delicadamente, segurando a bonequinha Musashi junto comigo. Segurando minha mão, ela simulou um movimento exagerado.

— A Musashi sente a energia desse conjunto. Sentir a energia é sentir o todo. Com isso, não importa de onde a vilã ataque, nem como ataque, ela sempre saberá como revidar! — Carla deu um pulo com o punho fechado. — Ataque e defesa em um só movimento! Um golpe e a vilã será derrotada! Simples, não?

Ela sorriu tão alegremente para mim que senti meu rosto em chamas. Procurei desviar o foco dela e encarar a bonequinha em minha mão. Mesmo sendo tão feinha e pequena, depois do que Carla falou, ela parecia tão poderosa, incrível... invencível!

Roda das Estações, né?

...

Com mais esse fragmento de lembrança, é impossível conter o sorriso.

Carla... não sei o que aconteceu entre nós, mas... obrigado.

Mais um golpe, dessa vez pela lateral. Sashi é jogada contra a parede de sombras e é ricocheteada para o outro lado bruscamente. Meu persona geme de dor.

— Uuurgh!! — Me contorço de dor no chão.

— Por quê?! Por que não joga a toalha e simplesmente morre, porra?! — ruge Enrico, sua voz rimbombando no espaço. — Não adianta lutar! Eu já venci, Calebe! Não há mais nada que você ou Sashi possam fazem! Essa bolha de sombras da Jane não pode ser quebrada por dentro, não importa o quão poderoso seja seu persona!

Ignoro o monólogo de vilão e me concentro. O objetivo é estabelecer contato com a Sashi. Mesmo que ele diga isso, ainda há como eu me comunicar com ela.

Sempre terá como chegar até ela, não importa onde estejamos. Porque eu e Sashi somos um só.

Sashi! Sashi, por favor, ouça minha voz!

Estou... ouvindo, Calebe.

Eu consigo escutar sua voz. Consigo senti-la, consigo vê-la e escutá-la. Não há barreira nenhuma entre nós.

Podemos derrotar esse cara. Mas vamos ter que fazer isso juntos.

Eu... estou perdendo minha força, Calebe. Estou... começando a sumir.

Engulo em seco, mas não deixo as palavras quebrarem a concentração.

Vamos nos concentrar na habilidade. Sinta... primavera, verão, outono e inverno. Todos juntos! Vamos sentir com nosso corpo.

C-C-certo... eu vou tentar.

Sashi se ergue mais uma vez. Só que agora ela dobra os joelhos, mantem a postura ereta, firme, inabalável. A mão esquerda segura a bainha, a direita se mantém erguida, os dedos se abrem e fecham lentamente. Sua respiração desacelera, sincronizada com a minha.

A sensação é a mesma de quando dormi para assumir o corpo da Sashi, só que agora estamos separados. Sinto a respiração dela, seus movimentos, seu fluxo. Somos dois e um. Um e dois.

De olhos fechados, sentimos ondas em todo o ambiente. Oscilando e pulsando, fluindo calmas em alguns cantos, agitadas em outros. Tudo está em preto, contornado com linhas brancas cintilantes, desenhando um mapa mental que nos localiza na escuridão.

— Já chega, Calebe! Agora é seu fim! Jane, elimine o persona dele!

— Hyyykkk!!

 


Sempre que tocarmos esse sino, não importa onde nem quando, vamos nos lembrar que temos um ao outro. Que podemos sempre contar um com o outro. Se estivermos brigados, vamos perdoar um ao outro. Se estivermos tristes, vamos consolar um ao outro. Certo?

 

Essa... vai ser a nossa promessa!


 

A mulher costurada surge da frente de Sashi e a golpeia com todas as suas sombras ao mesmo tempo. Uma barragem violenta de ataques simultâneos, indefensáveis, impiedosos, vindo de todos os lugares.

E todos destroem seu corpo completamente.



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