Volume 1

Capítulo 26: Jane, a Obscura

 

Chegamos a tempo.

Frangos. Frangos alados por todo o lado, voando todos juntos em uma nuvem de carne e asas; um vórtice deles se forma ao redor da mulher costurada.

Como prevemos, Yatsufusa era o peixe grande que aquele monstro pretendia pegar dessa vez. A ideia da Sashi, de procurar os irmãos para chegarmos até aqui, foi realmente decisiva.

A desgraçada começa a fatiar e picotar frangos como pedaços de presunto, facilmente. Claro, aquilo é só a distração. A cavalaria ainda está pra chegar.

— Por aqui — Beni, em sua roupa de rei da sua própria “Terra do Nunca”, se oferece para servir apoio para o mascarado.

— Hyyyaaak!! — A mulher costurada geme, aumentando a velocidade com que cortava.

— Linda! — grita Beni, se afastando com Yatsufusa.

— Certo!

Linda faz um gesto imperativo e paredes cristalinas surgem para se fechar em uma caixa ao redor da mulher costurada. Ao perceber que seria trancafiada em um caixote de mímico, o corpo dela treme violentamente e seus braços magros demais balançam com violência, golpeando igual a chicotes.

A pancada faz a atmosfera vibrar e Linda bambeia e se desequilibra. Mais outro golpe e as paredes se estilhaçam em uma explosão cristalina, igual a um globo de luzes que explodiu na balada.

— Lascou! Linda! Aguenta ai! — Beni grita lá de baixo.

Linda se recupera o mais rápido que consegue e faz mais comandos, girando os punhos e movendo os braços. Os cacos das paredes cristalinas se remodelam, se juntam e formam um tipo de prisma ao redor do monstro remendado, a nuvem de frangos se dissipando aos poucos.

A mulher se debate e suas sombras se expandem e contraem, vivas e furiosas. É aterrorizante a cena, para dizer o mínimo.

— E aí? Como é que ele tá? — Linda pergunta.

— Tá bem mal e não parece que vai acordar — constata Beni, visivelmente preocupado. — Vamos ver se conseguimos... espera, Linda! Cadê a criatura?

— ...!

Nós todos olhamos para o prisma e nada. Vazio. Sem nem a sinal de sombra. O que só pode significar uma coisa...

— Linda! Cuidado!

— Que foi, Cale...!

ZAAASH!

Droga! Sequer dá tempo de Lindalva terminar sua frase antes de um vento sombrio rasgar suas costas e a derrubar do tapete voador que a carregava.

— Urgh! LINDA!! — Beni sente a mesma dor que sua irmã, mas em menor intensidade.

Ele envia uma nuvem dos frangos estropiados, que sobraram do primeiro bando, para amortecer a queda dela, alguns mal conseguindo voar. Enquanto isso, eu e Sashi estamos quicando e capotando dentro da sala secreta que existe no cubo deles, esperando a hora certa.

Sashi franze as sobrancelhas. Ela ameaça sair antes da hora, mas eu a detenho a tempo.

— Calebe?

— Ainda não. Quando entrarmos em campo, será para fazer um gol.

Sashi suspira e consente com a cabeça. Lá de cima, do meio do céu cinzento do mundo espelhado, a dama da noite surge de uma fissura, rastejando por ela como uma barata. Seus cabelos pretos despencam em uma cascata negra, se mesclando com as sombras, parecendo que derretia.

— Essa coisa não vai parar, Calebe — geme Sashi, entredentes. — Enquanto não derrotarmos o agente por trás disso, essa coisa não vai parar.

— É mais fácil falar do que fazer.

Sashi me olha de esguelha e levanta uma sobrancelha. Acho que ela percebe que estou tremendo tanto que parece que acabei de mergulhar em uma piscina congelada.

— Calebe...?

— Eu tô com medo, Sashi. Esse é o momento o qual tenho sonhado durante meses e me feito acordar em desespero. Ela contra a gente.

Sashi fecha os olhos e esboça um sorriso otimista, acalentador.

— Eu sei. É normal. Você é humano e, se você sente medo, eu também sinto. Na verdade, posso até sentir seu coração acelerado bater como se fosse infartar, hihi. ♥

— É... não era pra ser tão específica! — retruco com uma careta.

— Mas é isso que nos dar força e cautela, não é? E quem sabe, se a derrotarmos agora, consigamos descobrir algo sobre seus poderes. É pra isso que estamos lutando, não é?

— É... acho que tem razão.

A mulher costurada ressurgiu de uma torrente de sombras rodopiantes e voou na direção da mulher caída, aparada pela nuvem de frangos colados um no outro.

— Agora? — Sashi perguntou.

— Agora.

Sashi saca sua katana, labaredas violetas dançando ao redor dela e de seu cabelo esvoaçante e avança. Empunhando firme sua arma com as duas mãos, Sashi salta na direção da única saída daquele lugar, gritando.

— 『Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Impulso da Lança Outonal!

Um clarão explode na fina camada entre as duas dimensões e Sashi surge bem na frente da mulher costurada, a katana de Sashi cuspindo línguas de fogo violeta à medida que balança sua espada.

Um ribombar metálico estridente agride meus tímpanos assim que eu saio do cubo, e a pressão do impacto nos joga para trás, fazendo eu e Linda rolar em um mar de pedaços de frango cru e penas estropiadas.

Ai, ai, ai! Porra! — Um zunido chato preencheu meus ouvidos. Fiquei desnorteado, sem rumo.

— A samurai! — Beni se impressiona com a cena repentina.

O Oru se desvaneceu em vórtices de sombras ao passo que Sashi gira a cabeça em todas as direções, procurando pelo inimigo.

— Sashi! Atrás de você! — grito o mais alto que consigo, as veias do pescoço saltando.

A espadachim pirueta para frente, saltando em manobras e giros, esquivando de tentáculos de sombras vindos do chão. A parte mais fina e afiada dos tentáculos raspam na lâmina de Sashi, parecendo serem feitas de puro aço. Até mesmo soltam faíscas.

Ela não podia ser pega por aquelas coisas ou nem queria imaginar a dimensão do dano que tomaríamos.

Retalhadora de Sonhos, Estilo do Solstício: Círculo do Espelho do Inverno!

Hyaak!!

As lâminas e cortes incendiados da técnica de Sashi retalham e queimam ao mesmo tempo. Qualquer ramo de sombras a pelo menos 10 metros em qualquer direção era retalhado automaticamente, virando cinzas logo em seguida.

A mulher surge do solo, gemendo e urrando, parecendo sofrer quando suas sombras são dissipadas. Sashi toma certa distância dela, permanecendo atenta.

— E então? — Sashi levanta sua voz de repente. — Quando vai parar de se esconder atrás dessa coisa feia e vai se revelar?

Ela tá chamando o cara pra trocação?!, imaginei com uma careta de olhos arregalados.

— Ataque, samurai! — Beni grita do outro lado da clareira.

A mulher treme, crispa os dedos e levanta a cabeça para o alto enquanto sibila sons perturbadores. Sashi mantém uma empunhadura cruzada, se preparando para o pior. O que será que ela vai fazer? Engulo uma, duas vezes em seco, a garganta vibrando e doendo.

Mesmo agora, eu não consigo controlar o medo.

Porém, o que acontece é que, como uma cortina sinistra, o vestido dela se expande de uma vez, as sombras se espalhando e deixando o ambiente ainda mais escuro que antes. De dentro da imensidão negra que era o Oru, um figurão surge andando calmamente, os braços cruzados nas costas.

Uma pessoa! Uma pessoa mesmo! Mas... quem seria? Alguém conhecido?

— Vejo que é, de fato, o persona de Calebe. É tão prepotente e atrevida quanto ele.

Essa voz... essa voz era... não pode ser. Enfio o mindinho no ouvido e giro, procurando ter certeza de que não ouvi errado ou estava ouvindo coisas.

— Enrico?! — gritei, deixando Linda aos cuidados de seu irmão, que chega bem na hora. — Você...! Então, você...

— Há quanto tempo, Calebe. — O olhar dele está estranho. Mais mortiço, vítreo. Até seu olho baixo não se move mais como antes. — Pelo modo como falou comigo desde que chegou aqui, sequer se lembra de mim, não é?

— Como assim?

— Calebe! Não deixa ele te distrair! — Sashi grita de algum lugar e, quando dou por mim, uma explosão de fagulhas rela bem no meu rosto.

Em questão de milissegundos, como se o tempo tivesse parado, ela aparece do meu lado, me protegendo de um golpe com as sombras que teria me decapitado em uma única chicotada.

A pressão do impacto empurra nós dois para trás enquanto uma mistura de faíscas e labaredas de fogo voam entre nós. Eu e a Sashi rolamos e capotamos no chão da clareira até pararmos de costas em uma arvore.

Enrico e a dama da noite atrás, o envolvendo em sua névoa sombria como um abraço, vem em nossa direção em uma postura de dominância. Sashi se recupera rapidamente, brandindo sua arma.

As chamas violeta serpenteiam pela lâmina mais ativas que antes. O fogo em seu cabelo, antes somente nas pontas, agora cobria quase todo seu cabelo, mudando levemente sua cor de preto para um azul meio violeta.

Pequenas bolas de fogo se concentram em cima de sua cabeça, lembrando vagamente o formato de chifres cintilantes oscilando, pulsando.

— Sashi?

— Também pode conversar com seu persona? — Enrico fala. — Intrigante. As reações, as caras e bocas... são tão espontâneas. É quase como...

— Cale-se! Cale-se! Cale-se! — Sashi grita, agressiva. — Não vou permitir que encoste em um só fio de cabelo do Calebe!

Faço um esforço para me levantar, mas uma dor latejante e muito aguda me faz desabar de joelhos novamente. A dor... eu não mal consigo... suportar. Dói demais. Respirar está difícil e sequer consigo ficar de pé.

Eu... quebrei minhas costelas?

— Calebe? O que foi?

— Não é nada... Sashi.

— “Sashi”? Você também deu um nome para seu persona? A minha também tem um nome bem único, sabia?

— Maldição! Não mova mais um passo ou eu te divido em dois, aí mesmo! — ameaça Sashi, brandindo sua arma para Enrico.

— O nome da minha donzela amada... é Jane, a Obscura. — Enrico faz um gesto de mão e a mulher costurada cruza os braços.

Me levanta é um esforço violento, mas consigo me equilibrar sobre os pés, apoiado na arvore. Sashi fica dividida entre rechaçar Enrico e Jane e me ajudar. A dama costurada rasga o espaço, lâminas feitas de sombras avançando bruscamente enquanto destroem tudo pelo caminho.

—『Valse Meurtrière』— Enrico anuncia seu ataque.

— Calebe! — Beni faz aparecer uma versão gigantesca de sua caixa entre nós e o ataque de Enrico.

Retalhadora de Sonhos, Estilo do Equinócio: Divisor Horizonte Primaveril! Sashi berra, suas chamas se expandindo para performar um corte suficientemente poderoso.

Assim que a habilidade de Jane atinge a caixa criada por Beni, o objeto é empurrado bruscamente contra nós, ameaçando nos esmagar contra as arvores atrás. No entanto, o Divisor Horizonte Primaveril é poderoso ao ponto de dividir a caixa, cortar através do ataque de Enrico e alcança-lo na segurança da redoma de sombras criada por Jane, a Obscura.

— Hugh! Bosta! — pragueja.

Um filete de sangue voa do ombro de Enrico e de Jane ao mesmo tempo, revelando que eles, assim como eu e Sashi, estavam ligados e compartilhavam os mesmos danos.

Só que as lâminas de sombras também atingem a nós violentamente, cortando os dois braços de Sashi e deixando um corte feio em sua barriga. Ela cai de joelhos ao mesmo tempo que sinto meu abdome queimar e vibrar de dor.

— Aaaaarrgh!! Porraaa!!

A caixa enorme se dividiu em duas e a metade de cima cria braços gelatinosos enormes. Uma gravata, tamanho GGGGGG, se forma a partir de lascas do cubo. Já a parte de baixo, cria pernas cabeludas que esmagam o solo e fazem todos que estavam deitados no chão voarem dois centímetros do solo.

— Esmague-os, Caixão! comanda Beni, apontando para o desnorteado Enrico.

Espera, Beni! Não...!

Antes que eu pudesse completar a frase, a parte de cima da caixa estica os braços gordos e esmaga os dois como baratas. As sombras se espalham no chão lembrando sangue.

— Hunf, hunf! Acabou? — Sashi soluça.

Só que um pilar pontudo de sombras, girando rapidamente como uma broca, se ergue violentamente do chão e estraçalha o braço do Caixão em questão de instantes. Ao alcançar a altura máxima, acima da clareira, toda a sombra se condensa em uma esfera negra e densa.

— O que é isso agora?

— Hunf!

Opéra de la mélancolie du videA voz de Enrico sibilou de algum lugar inalcançável a meus olhos.

Da esfera, vários espinhos velocíssimos brotam de uma vez, perfurando tudo que está desprotegido na clareira, atravessando além de arvores e estruturas. Uma chuva de espinhos negras. Milhões de espinhos. Centenas de milhões. Todos ao mesmo tempo.

Sashi sequer tem tempo para tentar qualquer técnica para nos proteger antes de ser perfurada por inúmeros desses espinhos, só conseguindo proteger o rosto. Yatsufusa é perfurado, Linda e Beni são perfurados, o Caixão é perfurado.

— Droga...!

E então, tão rápido quanto se expandiram, eles são recolhidos, a esfera negra voltando lentamente a tomar a forma de Jane. A mulher alta e pálida, com remendos em todos os lugares, levita até o chão como se bailasse no ar, de modo fantasmagórico, enquanto gerava ruídos indescritivelmente perturbadores.

Seu vestido cria uma cortina mais sombria que a própria noite. E dela, Enrico surge ileso, imperioso.

— Então, Calebe, o que acha de acabarmos com isso de uma vez? Foi divertido enquanto nossa brincadeirinha de gato e rato durou.

— Hyaak!!

Sashi fica de joelhos, as chamas de seu cabelo e de sua espada diminuindo até se tornarem simples estalinhos.

— O que acha? Agora lamenta ter nos deixado naquela época? Se arrepende amargamente de ter tirado tudo de mim?

— Do que... cê tá falando, seu imbecil?

— Não se lembra de mim?

— Como eu... poderia? — arfo pesadamente, cuspindo saliva com sangue. — Eu te conheci um dia desses.

— Então, é verdade o que disseram. Você realmente perdeu as memórias.

— Você... você sabe de algo? Sabe do meu passado? — pergunto, ansioso por respostas.

— Hyaak! Hyiik!

— É... ele vai morrer aqui, então porque não tornar isso mais prazeroso? Boa ideia, Jane.

Sério que ele entendia aquela coisa gemendo e urrando? Sashi se mantem em guarda, mas mal consegue empunhar a espada direito.

— Talvez isso refresque sua memória. Ele revela um pequeno objeto, balançando em seu dedo.

O doce sibilar metálico soa no ambiente silencioso daquele Mundo dos Sonhos.

— Um... sino? Não... espera, por algum motivo...

— Sim. Está reconhecendo? Esse formato? Esses desenhos nele? Esse som?

As batidas ecoavam na minha mente, me colocando em transe. Transe esse que é quebrado logo pela terrível visão da unha afiada de Jane perfura o peito de Sashi. A samurai solta um grito de dor que despedaça meu coração.

Literalmente, por sinal. A mesma dor começa a me acometer, me deixando sem ar e com espasmos.

— Está lembrando, Calebe? O sino... a promessa... dez badaladas. Algo vem na sua mente?

BLING, BLING, BLING ♪

BLING...

BLINg...

BLIng...

BLing...

Bling...

Bling...

Blin...

Bli...

Bl...

B...

 

 

*****   *****

 

 

E dessa forma, na beira do abismo, um pico de luz surge de algum lugar aleatório. Sem começo, nem fim. Um brilho distante, fugaz, tremeluzindo em meio á imensidão sombria. Eu me sinto caindo? Ou só parado? Se caindo, caindo aonde? Para onde vou? O que vou fazer lá? Não há nada ao meu redor.

Só tem o escuro. O escuro gélido, vazio, sem vida. Sem esperança.

Em ponto de fechar meus olhos, aquele brilho aparece de repente e chama minha atenção. Incomoda sua presença, pois sinto que estou a tanto tempo caindo naquela escuridão que meus olhos já se acostumaram com a negritude. A luz fazia minhas pupilas arderem.

Eu nem sei de onde vinha ou por que de estar ali, mas algo dentro de mim me dizia para agarrá-lo e é o que faço.

O que era só um brilhinho perdido no meio do mar de sombras, começa a se expandir em uma sequência de visões e sentimentos e sons e formas. Coisas surgem, ocupando cada centímetro daquele “vazio”.

E meus pés tocam o chão firme de novo. Eu não estava mais no campus, na clareira atrás do Bloco C. Agora estou parado de frente para a porta de uma casa, quando sinto uma mão me tocar no ombro por trás. Me viro com um susto.

— Uou! Calma, Calebe! Eu posso ser feia, mas não mordo. Hehehe!

Meu coração quase para.

Sashi?!

— Você tem que parar de me dar susto assim, Carla! — Minhas palavras saem involuntariamente.

...?!

Eu sou um espectador em meu próprio corpo! Não tenho controle nenhum dos meus movimentos, nem do que eu digo. Só sei que uma garota muito bonita está bem na minha frente e ela se chama Carla.

E ela... tem a cara da Sashi! O mesmo rosto e cabelo preto comprido, os olhos grandes e graciosos! Se trocasse a camisa e o short curto e preto pelo quimono, não tinha diferença alguma. Imagino, pela forma como aquela conversa aparentemente trivial está acontecendo, que não tenho controle das minhas reações também.

— Ele disse que era pra estar aqui nesse horário, mas deixa a gente esperando.

— Vamos logo, cara! A gente vai se atrasar! — Carla levanta a voz.

— Já tô indo! — Uma voz apressada responde do outro lado da porta.

Quando a porta é aberta, tenho mais uma surpresa, dessa vez não tão agradável.

— Tô pronto. Vamo indo?

Parado na nossa frente, com um largo e amigável sorriso no rosto, está Enrico.       



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