Volume 1

Capítulo 25: Sonhos, planos e milk-shake

 

Como toda desgraça nunca é o suficiente, outra notícia quente chegou para nós pouco tempo depois. Uma porrada seguida da outra, sem pausa para respirar.

A enfermeira Kássia acabava de morrer no hospital. Ela não resistiu aos ferimentos e veio a óbito depois de duas paradas cardíacas na madrugada de ontem. Naquela noite, a mulher costurada nos deu uma sova por 2x0.

Eu e Sashi estamos no dormitório agora e a sensação é de derrota completa. Ela ganhou de lavada, uma surra em todos os sentidos! Perdi a Mica, agora a enfermeira Kássia e até o Charles... como essa situação poderia ficar ainda mais merda do que está agora?

— Isso não pode ficar desse jeito.

— Calebe, me perdoa. Se eu não tivesse...

— Sashi. Não é culpa sua. Não precisa se desculpar.

— Eu não pude fazer nada. Vocês lutaram contra aquele monstro sozinhos e eu... eu...

Cansado daquilo, a seguro pelos ombros com um chacoalhão, obrigando-a a olhar para mim, bem nos olhos.

— Tá bom. Eu já disse que você não tem culpa. A culpa foi minha, tá?!

— Calebe...

— A culpa foi minha! É só minha!! E eu... vou com consertar tudo isso. Não sei como, mas eu vou! Só... me dá um tempo, tá?

Volto pro meu recanto do silêncio pra pensar. Pra me afogar na minha própria inutilidade e culpa. A verdade é que eu não tenho ideia de como vou resolver aquilo e nem sei se posso. Nem o Charles derrotou aquela coisa, então como eu...?

Quando já estou quase afundando na minha depressão de novo, like a terminator, um toc-toc é ouvido. Um suspiro sai involuntariamente. Poxa, será que ninguém vai respeitar meu momento de me sentir um merda?

— Que foi?! Hã?

É Enrico. Ele me cumprimenta com um ar de assustado.

— Oi.

— Que que cê quer?

— Eu tava pensando... aconteceu tanta bosta ultimamente e todos nós estamos pra baixo. Então eu pensei em chamar você pra dar uma saída, o que acha?

Imaginei que ele tenha procurado o Bernardo também, mas ele não quis, então veio até mim. Se eu for, o outro idiota acaba indo por promoção. Bem pensado, Enrico.

— Olha... eu agradeço pelo convite, mas eu tô um pouco ocupado agora, então...

— Escuta Calebe. Eu sei o quão difícil foi pra você ver essas mortes ultimamente. Vamos! Garanto que não vai se arrepender. — Ele sorri e estende a mão.

A boa vontade dele é tanta que fica difícil recusar. Do lado de dentro, Sashi estreita os olhos, com aquela expressão de desconfiança para o Enrico de novo; um cão rosnando para um desconhecido — não que a Sashi fosse algo como um cachorro. O que será que dá nela sempre que esse cara aparece?

— Tá bom, vai. Talvez eu esteja precisando disso mesmo. Xá só eu me trocar aqui e já saio.

— Beleza.

Me troco rapidão e nós saímos, Sashi, sempre por perto como uma sombra, um fantasma protetor, vem bem colado com a gente. Os olhos dela não desgrudam de Enrico nem meio segundo, como se ele fosse sacar uma arma a qualquer momento. E isso foi o caminho todo até o minishopping da cidade. Fomos até a sorveteria e lá o Enrico pede dois milk-shakes.

Enquanto esperamos, noto umas coisas estranhas; Enrico está vestindo duas blusas — outra coisa peculiar nele além de seu olho caído é seu gosto pra se vestir — e uma delas é uma regata. Perto do pescoço, algo como um band-aid ou faixas estão cobrindo a lateral, descendo pro... ombro? Além disso, há um vulto em sua testa, levemente inclinado e ascendente, do que parece ser uma marca ou um...

— Calebe?

— Hã? O que? O que foi?

— Tá quieto, amigo. O que foi? Tá pensando em quê?

— Nada não. Só tô pensando na morte da bezerra.

— Cara... você por acaso...?

Droga... por que me sinto tão nervoso de repente?

— E-Eu...?

Aquele olho caído parece ler meus pensamentos, me julgar enquanto a pupila centrifuga, desgovernada, na esclera. Aquele beicinho que o Enrico sempre faz quando desconfia de algo. O que será que ele está pensando?

— Você tá pensando na Mica de novo, né?

Uma reticência brotou em cima da minha cabeça e aproveito para me recompor desse momento de tensão sem cabimento. Talvez eu só esteja tenso com toda aquela situação e eu esteja vendo coisas onde não existe. É isso o que o Bernardo me falaria, provavelmente, acompanhado de um dedo do meio e um apelido carinhoso.

— Pedi de Ovomaltine pra você. Você toma, né?

— Ah, sim. Valeu.

A sensação doce e cremosa explode na minha boca e me arranca alguns gemidos. Há quanto tempo não tomo um milk-shake? Na verdade, acho que estou precisando disso mesmo. Enrico é um anjo!

Só que observo Enrico tomar o seu, parecendo mais avoado que eu e acredito que é por causa do Milk-shake também. Seu braço também está todo enfaixado e eu quero acreditar muito que é por estilo — seja lá qual for o dele —, mas tenho que perguntar:

— Se acidentou, Enrico?

É impressão minha ou o ambiente ficou bem mais frio do que o normal de repente? Mesmo no shopping e usando roupas, eu me sinto nu. Será a sensação térmica causada pelo Milk-shake? Ou talvez o fato de Enrico virar o rosto lentamente para mim com a maior cara de Serial Killer, do nada?

Assim como no dia do enterro da Mica...

— Eu... rolei a escada do meu dormitório uns dois dias atrás — responde ele, baixo e pausadamente.

— Nossa, como você é desajeitado! — Começo a rir, tentando dissipar a aura pesada se condensando entre nós. — Mas não te culpo. Com toda a comoção causada por esse assassino, imagino o efeito do medo que ele cause.

— É... o assassino. Beeem assustador.

— Ainda bem que ele vai ser pego logo, logo.

Volto a aproveitar meu Milk-shake na santa paz, quando Enrico retoma a conversa de repente, sua voz deixando passar certa consternação.

— Já parou pra pensar... na loucura que tá acontecendo?

— Hã?

— Sabe... esse negócio de assassino, essas mortes... e ainda pensar que esse assassino pode ter algum motivo pra isso.

— Com certeza ele deve ter — concordo com outra boa golada. — Mas os fins não justificam os meios, né? Então fodam-se os motivos.

— Mesmo? — Enrico coloca uma interrogação perigosa aí. — Os fins podem não justificar, mas os começos podem?

— O que cê tá querendo dizer com isso?

— Não tô querendo dizer nada — desconversa, se fazendo de doido.

— Ah, tá. Por um momento eu achei que você iria querer passar pano pra maníaco.

— Não ia passar pano pra ninguém. Só disse que ele deve ter bons motivos para estar fazendo o que faz.

— Ou talvez ele seja apenas um louco ressentido.

Os braços de Enrico tremem.

— Talvez tenha razão. Mas se tivesse a oportunidade de ficar cara a cara com ele, não iria gostar de saber porquê? Sabe... talvez se surpreendesse.

— Ei, pra onde cê tá indo?

— Me lembrei que tenho que fazer uma coisa. Aproveite seu milk-shake, Calebe.

Um vento fantasma passa por mim, como se algo tivesse me tocado o ombro. Eu ainda olho bem rápido, mas só sinto o calafrio correr por todo o corpo enquanto vejo Enrico ir embora. O coração acelera de uma vez e de repente. Mesmo a Sashi, que esteve observando a toda a conversa, desde o momento que saímos do dormitório, não vê nada.

— Que foi, Calebe? — Sashi pergunta, confusa com minha reação.

— Ah, nada, nada. Só terminar esse milk-shake e a gente vai pra casa, tá?

Eu juro que escutei ele falar mais algo depois, entredentes. Por quê? O que tá acontecendo com esse cara?

“... Aproveite seu milk-shake, Calebe. Pode ser o último.”

 

 

*****   *****

 

 

Certo tempo depois, decido que não quero mais ficar na faculdade e volto para casa, mesmo ciente dos riscos. Aquela mulher costurada está atrás de mim e já sei que ela é capaz de matar alguém fora do Mundo dos Sonhos, então o que estou fazendo é um grande risco para a mamãe.

No meu quarto, uma figura inusitada está na espera, olhando pela janela. Nossa reação não é nada além de uma leve surpresa.

— Vizinhança simpática a sua.

— Que que cê quer, Nádia? — pergunto, a voz tão estafada quanto mal-humorada.

— Recebemos a notícia... — Ela se vira, os olhos baixos e nublados. — Pra falar a verdade, ainda não consegui processar.

— É... nem eu.

— Encontraram com ele, né? — Uma curta pausa e depois continua: — O Oru.

— O que cê acha?

— Então estávamos certos. Droga.

— E agora eu só quero deitar e dormir. Então, se me der licença...

— Acontecerá uma reunião amanhã — anuncia de repente. — Um representante da alta cúpula da Mandala estará presente para discutirmos um plano de ação contra a ameaça iminente. Depois da morte de Charles, o alto escalão determinou que o caso deve ser tratado com urgência.

— Tá, mas por que tá me contando isso?

Nadia olha tanto para mim como para Sashi, um certo fascínio — e esperança, talvez? — brilhando nos olhos.

— Meu primeiro ato, como nova Chefe Executiva da Região Sudeste, é oficialmente convidá-lo para a reunião — diz Nádia em um tom solene e formal. — Tenho certeza de que é isso que o Franscisco iria querer.

Eu não sei nem o que dizer. Ultimamente não tenho tido tempo para absorver toda a cadeia de acontecimentos que tem me bombardeado nos últimos dias.

— Eu... sei lá... tô sem reação.

— Não diga nada. Apenas vá.

— Olha... eu sei que deve ser muito importante essa tal reunião e tudo, mas realmente não tô com cabeça pra isso. Muita coisa aconteceu e meu mental não tá no lugar. Só quero... um tempo para me recuperar disso tudo.

Nádia consente.

— É uma pena, mas eu entendo, Calebe. Qualquer coisa, o convite tá de pé. Se mudar de ideia, sabe onde me encontrar, não sabe.

Eu apenas concordo com a cabeça. Ela sorri e, antes que ela vá embora, eu a paro, segurando seu braço.

— Nádia.

— Deseja alguma coisa?

— Eu tenho que te contar umas coisas. É sobre o Oru.

 

 

*****   *****

 

 

18h da noite do dia seguinte, enquanto a reunião da Mandala acontece, estou de volta ao campus, plantado na frente do Bloco F, para a minha própria reunião. Sashi está ao meu lado, séria e atenta. A porta à nossa frente se abre lentamente, revelando duas pessoas esguias e altas.

— Calebe? Chegou cedo.

— Linda, Beni... preciso pedir um favor a vocês.

 

 

*****   *****

 

 

Durante a madrugada, as buscas policiais cessaram e um silêncio solene se instalou no campus. O único barulho era do vento soprando forte e dos grilos. O ambiente frio ficava ainda mais frio conforme as horas passavam, principalmente nos arredores do Bloco C.

Uma sombra se movia soturnamente pelos cantos das paredes, silenciosa, invisível... e mortal. Unhas eram como presas gigantes; as correntes ligadas a seus grilhões arrastavam-se pelo chão de madeira do corredor; sua mortalha negra esvoaçava, anunciando sua chegada.

A chegada da noite. A chegada dela.

Quarto 3B era seu destino. Lá dentro, a aluna recém-transferida, Emma, dormia profundamente usando de seus remédios controlados. Fazia pouco tempo que fora liberada do hospital e ainda se estava em processo de recuperação.

Uma presa fácil para um predador. Para a dama da noite.

O trinco se moveu lentamente. Ciente da porta trancada, a mulher gigante de sombras passou uma de suas unhas na fechadura e a destrancou. As dobradiças da porta de madeira rangeram, a entrada se abrindo lentamente enquanto uma névoa fúnebre se espalhava pelo ambiente.

A temperatura caiu mais ainda. As plantas contidas em um jarro na cômoda ao lado da porta murcharam repentinamente. Passos pesados sibilaram pelos sulcos na madeira do piso.

Emma dormia. Dormia profundamente. Sua presa, prestes a ser abatida. Iria fazê-lo com um único movimento e seria rápida.

— Hiiiikk!

Sentiu algo estranho. O tempo já havia acabado?

A dama das sombras foi obrigada a voltar para o Mundo dos Sonhos, antes que pudesse encostar em um fio de cabelo de Emma. Ao fender o fino tecido que separava aquelas realidades, e atravessá-lo, alguém já a esperava do outro lado.

— Me perguntava quando iria aparecer, ser das trevas.

— Hiick! Qui, Qui!

Recostado na entrada, uma espada maior que ele no meio de seus poderosos braços cruzados, uma máscara cobrindo seu rosto, estava Yatsufusa.

A Dama das Sombras tremeu a cabeça e crispou as garras em uma clara reação hostil. Gavinhas de sombra a rodearam e seu vestido e braços esqueléticos se mesclaram à nevoa negra que ia se condensando no espaço limitado do dormitório.

Yatsufusa se moveu, tocou sua máscara e a transformou em outra. A máscara vermelha e furiosa de um demônio.

— E agora que está aqui, não quer perder tempo. Eu entendi.

— Hyaaaaakkk!!!

—『Oni no kata: Yamizuki koketsu! 』

A explosão gerada entre a colisão dos dois poderes fez a dama da noite sair voando do dormitório por um buraco na parede. Ela se transformou, no meio do ar, em uma massa escura, lembrando névoa, e planou no céu acima da clareira localizada atrás do Bloco C.

Yatsufusa a seguiu, mas não conseguiu alcança-la até que ela descesse e tomasse uma forma minimamente humana. Ele tocou sua máscara novamente no meio da corrida, transformando-a em uma branquinha máscara de raposa com riscos e espirais vermelhas.

—『Kitsune no kata: kyuubi renzoku arashi! 』

O persona balançou sua arma freneticamente no ar, a lâmina chiando enquanto rasgava o espaço e vinha, cortava e balançava, em um borrão metálico no centro da tempestade obscura.

A dama da noite se materializou novamente, saída do chão, e desfere um golpe ascendente com suas garras que passa raspando na máscara de Yatsufusa, cortando a ponta da orelha da máscara de raposa. O guerreiro tomou uma distância consciente da inimiga, essa aproveitando para expandir seu domínio de sombras.

— Nossa. Que aberração traiçoeira. Não posso descuidar um único momento ou...

Yatsufusa estava com as costas contra a parede, literalmente. Atrás dele havia somente o prédio onde jaziam os dormitórios.

No mesmo momento que a mulher costurada se ergueu de seu sumidouro de trevas, ela apontou com uma de suas garras na direção de Yatsufusa, que ficou em guarda. Contudo, o próximo movimento o pegou de surpresa.

Um espinho negro surgiu da parede atrás dele, criado a partir de um ramo de sombras que se esticou da poça ao redor dela até criar forma atrás dele, como que por vontade própria. O espinho perfurou seu ombro direito e cresceu de tamanho logo após.

Em resposta, Yatsufusa jogou o próprio corpo para frente, saindo do alcance da parede e dos espinhos. No entanto, outro espinho atravessou seu pé esquerdo, crescendo do chão e mais outro, dessa vez na perna direita, vindo de uma arvore bem ao lado.

— Tsc! Ela pode me atacar de todos os lugares?!

Imobilizado completamente, sem conseguir empunhar sua arma, o espadachim estava completamente entregue nas mãos da mulher costurada. Seria derrotado sem que conseguisse acertar sequer um golpe em sua adversária. Que humilhação.

A cabeça dela balançou de um lado para o outro igual a um maldito pêndulo, suas garras aumentando de tamanho e se revestindo com espirais de sombras rodopiantes, formando lâminas e gavinhas esmerilhadoras. Um chiado veio dela quando ela arranhou a própria face lentamente.

— O que ela está fazendo? — Yatsufusa se perguntou, confuso com o que via.

Mas antes que pudesse ter qualquer noção do que estava acontecendo, tão rápido quanto um piscar de olhos, a mulher alta e costurada atacou com as garras.

E sem qualquer noção do que tinha acontecido, o dorso do espadachim foi completamente destruído.



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