Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 4

Capítulo 84: Brasas e faíscas

 

 

Eu… não sinto nada. O que aconteceu? Só há escuro…

Ah, o Laiky levou minha perna. 

As memórias pareciam confusas e alternadas e iguais e diferentes. Todas ao mesmo tempo e em tempo nenhum. Eu não sentia nada por não ter nada, eu era apenas um traço da minha consciência flutuando nesse vazio sem fim.

Isso era o fim? Não deveria, a vidente disse que seria apenas abaixo da árvore de pétalas rosas. O Laiky mudara o futuro que ela viu? Sua visão fora falha? 

Ah, o grupo!

Mandei Spectro salvá-los, mas como ele poderia naquele estado? Sem braços, com pouca energia e o corpo cheio de buracos. Foi uma ordem injusta ao meu amigo, mas… 

Eu só pude confiar nele, e agora nunca saberia o que aconteceu. Eles me seguiram como líder, Lotier confiou a missão a mim e eu… eu… Eu falhei. Eu nunca tive chance de fugir do Laiky, a barreira do rei 1 foi a sorte agindo em meu destino.

Então isso era morrer? Viver no vazio vagando sem emoções ou sequer alma? O que eu sou? Onde eu estou? Oh, também não havia dores. Não era tão ruim assim chegar a minha hora de descansar. 

Talvez eu tenha feito tudo que devia fazer nessa vida e por isso o destino me levou mais cedo. Aqui eu não precisava lutar, aqui eu não precisava chorar. De alguma forma, distante, eu conseguia ver… conseguia enxergar meus familiares tristes.

Vi meus amigos chorarem por mim, vi Ellie chamar por mim. Eu seria injusto se decidisse continuar aqui? Foi tudo tão difícil, tão perigoso. Eu estava com medo do que poderia vir, de perder quem eu amo e-

Uh, Emy surgiu em minha “mente” como um flash de lembrança. Nós brincávamos juntos, e recebíamos o abraço caloroso de nossos pais. Ou clarão, desta vez meu avô me carregava em sua carcunda me ensinando sobre as plantas da fazenda, contando suas histórias.

Bruno e João rindo após me salvarem de um rapaz alto e valentão. O time de Coleta de escolhendo como membro mesmo sem eu ter a mínima capacidade de acompanhá-los e sem ter… magia.

Um clarão mais leve. Eu e Ellie no Café e Biscoito. Como eu amei esse dia. Eu vi que a garota que eu gostava era muito mais que uma nobre bonitinha. 

Uma sombra, Grannus me espancando. Cirlan perdendo o braço para o ataque brutal do Laiky e eu incapaz de fazer qualquer coisa. Eu apenas fugi, tanto naquela época como na Fortaleza, nada mudou.

A proposta de Lotier, Sairon e Breaky e nosso treino, a missão de Alatar contra Letholdus. Meus amigos, Amanda morrendo em minha frente, a irmã de Sairon caindo sobre os meus braços. 

Oh, vazio, por que fazes isso comigo? Eu me arrependo de tanta coisa. O que eu poderia fazer? Eu não era forte, jamais fora. Mesmo com a pedra e uma espada poderosa eu apenas fracassei. 

Morrer… Meu maior arrependimento foi ter abandonado todos que me amavam. Eu só queria passar a vida ao lado deles, sorrindo. Queria me declarar para a garota que eu gostava. 

Mas os perigos sempre me assustavam. Eu queria ser forte porque eles acreditavam que eu poderia ser. Eu sempre senti medo, e agora… Agora eu não sinto nada.

O vazio se tornou… algo para mim enquanto eu vagava. Virando uma sombra escura ao meu redor, irradiando meu interior. Um pesar frio surgiu em meu peito e-

Lágrimas? Caíram como gotas brilhantes em meio a tudo.

Não há por onde escorrer. Eu as sentia internamente, senti no meu âmago sofrendo, na parte mais profunda da minha alma. Então um pequeno traço de aura azul surgiu em mim, acompanhada de uma fraca chama verde claro.

No fim, éramos realmente um. Eu queria mesmo saber se ele tinha uma casa, seres assim não nasciam do nada. Ah, aquela pedra… Um brilho fraco apareceu no meio de todo o vazio. 

Faíscas e brasas, uma fogueira prestes a perde sua essência, sua chama. Era uma representação da alma? Da transição da vida para a morte? Tão distante, tão pequena.

Se esse era realmente o meu fim, não estava tudo bem. Eu só queria pedir perdão por tudo, por ter ido para longe. 

A última faísca, que se afastava pelo vazio, retornou calmamente a sua fogueira. Chamas fracas se acenderam e um caminho curto de pedras entre passadas se formou em minha visão, ainda longe demais para que eu pudesse alcançar.

Um caminho… Era o além? Como isso funcionava?

Haha, eu vou descobrir logo.

Um corpo de alma começou a nascer, trazendo o medo e a angústia juntos. As lágrimas caíam sem parar, as mãos de aura não paravam de tremer, um colapso de memórias em sentimentos por ver e sentir tudo ao mesmo tempo. 

Eu perdi o Cirlan, deixei Amanda morrer. Sou culpado por tudo. Por nascer sem magia… Tentei abraçar meu corpo de aura, eu mesmo, mas as unhas arranharam os braços cujo brilho aos poucos era corrompido pelas sombras.

Calma, calma. Tentei pensar inutilmente enquanto meu corpo convulsionava no vazio, e a fogueira permanecia em seu devido lugar. Para para para.

Até que uma luz amarela surgiu atrás de mim, e mãos em aura clara cruzaram o meu abdômen e me agarraram em um abraço. 

Uma calma sem igual veio e o brilho se espalhava pelo meu corpo, eliminando os sentimentos como fumaça escura. Um calor confortável veio, um abraço que trouxe o meu “sentir” de volta.

O corpo do ser de aura amarela colou-se atrás de meu.

— Está muito cedo para você alcançar aquela fogueira — Essa voz… Essa voz! Arregalei os olhos, minha boca aberta. — Seu destino, todo seu caminho, era para chegar até aqui. 

— Você é ela! Você é a voz! 

Como? Caralho. É ela. É ela. É ela.

Ela dá uma leve risada, seu brilho se espalhando pelo meu corpo.

— Não é hora de você compreender a morte, mas em breve você vai ter que entender um pouco do porquê de tudo. 

— Por que… Por que eu? Aconteceu tanta coisa desde que você me salvou e desapareceu. Eu quero entender. Qual é o meu papel nisso tudo? 

— Tive medo de que não houvesse outra chance para falar com você, medo de que o tempo pudesse distorcer meu feitiço de deslocamento. 

— Era aqui que você queria que eu chegasse? Eu fiquei com medo… Uma vidente disse que eu morreria debaixo de uma árvore de-

— Pétalas rosas — O brilho se estendeu pelo meu corpo, tornando mais vivo. — A árvore não marca o fim, mas sim os traços de um novo começo. O nascer de um novo ser.

— Mas eu- Eu morri contra o Laiky!

— Você não morreu — O quê? Ninguém sobreviveria naquele estado.

— Tem uma magia antiga em sua aura. Uma que chamamos de Mana da Vida, mas que você conhece por “Magia das Almas”. Onde seu Erokai vive, como a vida dele neste mundo funciona.

— Erokai? O que é um Erokai? — Emeru falou disso.

— Significa que além de ter para onde voltar ele é o aliado mais poderoso que você poderia ter — O brilho ao redor de nós aumentou, ofuscando parte da minha visão e deixando a fogueira cada vez mais distante.

— O que é aquela fogueira? Onde nós estamos? — Não pode acabar, eu quero falar mais com ela. — O que eu devo fazer… Meu corpo e minha aura foram destruídos naquela luta, e os inimigos são muito mais fortes do que eu. O que vai acontecer quando eu encontrar a árvore?

— Você tem o sangue de um defensor Kai e vestígios da Mana da Vida, basta entender o que pode ser feito com isso que encontrará o seu caminho — O brilho leva quase por completo minha visão.

— Como eu encontro você de novo? Como devo te chamar? — Não não não. — Não posso vencer todos eles. 

— Nós nos encontraremos em breve — O brilho me leva por completo, e ela sussurra em meu ouvido com sua voz doce e gentil. — Não desista por nada e mantenha-se de pé mediante aos desafios, Lumi Kai. 



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Meus olhos fechados e doloridos, chuva sobre o telhado e janelas agitadas pelos fortes ventos. Que dor de cabeça desgraçada, nem consegui ouvir direito. Uma dor aguda na garganta e várias pontadas pelo corpo, principalmente no olho e perna arrancados.

Fome e sede extrema, ânsia de vômito, mas… nada para sair. Ao tentar abrir o olho e me levantar, fui recebido por estalos e costelas quebradas. Ao menos enfaixaram bem o meu corpo.

Meu olho esquerdo não se adaptou ao escuro. A sala hospitalar era diferente, com equipamentos novos e em um estado melhor que os de Karin. Um clarão iluminou o quarto e um forte trovão veio em seguida.

A chuva apertou mais ainda e o escuro tomou conta novamente. Oh… Só fechei o olho e suspirei pelas dores. Não havia muito o que fazer.

Ela falou comigo! Ela acreditou em mim. Eu quero entender, quero vê-la de novo. Eu posso fazer a diferença dos conflitos que estão por vir. Trea disse que a luz me espera em Balnor. Teria a ver com a voz? A voz é um ser de luz?

Até pensar fazia meu cérebro doer.

Meu corpo estava tão destruído, e minha aura não era mais capaz de usar magia. Era que nem voltar a estaca zero, mas-

Spectro!

Verifiquei um pequeno ponto verde claro na minha aura, vagando fraco e quase se apagando, mas de certo modo estável. O aliado mais poderoso que eu poderia ter… O que esse goblin anão poderia fazer que eu não sei?

Deixei uma risada escapar e me arrependi pelas dores.

A pedra podia ter várias barreiras, apenas a primeira me dava energia das alma- da vida e o Spectro. Será que se atacasse mais eu conseguiria outro aliado? Uma habilidade especial?

Ah… Eu não tenho ideia do que fazer para melhorar.

Outro clarão irradiou no quarto, e o vento bateu agressivamente na janela. Defensor Kai… Minha família e a dela já estiveram juntas em algum momento? Quem me deu aquela pedra?

Que droga, queria ela aqui. Queria a katana do meu avô.

Oh, minha consciência… Não tenho energia suficiente para continuar acordado. Eu queria entender. Por hora, só me restava descansar.

“Não desistir e me manter firme…”. Eu preciso, com todas as forças, encontrar ela de novo.

 



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