Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 4

Capítulo 83: As últimas brasas de uma fogueira




A carruagem balançava na estrada estreita, passava por algumas pedras e uma brisa incessante fazia tremer a janela de madeira. Meus olhos estavam pesados demais para sair da cama, e com o gelar do clima eu me cobri por completo.

Aeliana estava deitada do outro lado, de costas para mim. 

A carruagem parou e os cavalos relincharam quando o cocheiro os puxou, e com uma leve dor de cabeça eu me sentei. Fui recebida com uma péssima claridade quando puxei a cortina, mas a janela estava embaçada por completo.

Limpei com as costas da mão. Havia mini cachoeiras nos muros da cidade, uma neblina baixa que se estendia do portão até a floresta e um chuviscar acompanhado de vento e raros pedaços de gelo.

— Bom dia, senhor. Se quiser adentrar no reino 7, é necessário que uma revisão seja feita dentro de sua carruagem — disse o que parecia ser um guarda na parte da frente da carruagem, longe da minha visão.

— Tenho a licença do lorde Hiroki, creio que isso não seja necessário — disse o cocheiro, pude ouvir o som de papel sendo amassado e uma lâmina de metal sendo desembainhada. 

— Infelizmente não será possível. O reino recebeu um alerta da rainha Alyssa sobre atividade Ritualista nas montanhas próximas, então foi decretado obrigatório revistar tudo e todos que decidirem entrar no reino 7 nos próximos dias. 

— Tsc.

Ritualistas perto daqui? Por que sempre agem de manso? 

Passos pesados circularam a carroça, o som do metal rangia perto da janela. A mala, atrás, fora aberta durante vários minutos até que finalmente se convencerem de que não havia nada. 

Os passos contornaram a carruagem novamente, e desta vez vieram até a porta. Droga, eu não queria fazer isso agora. Que saco. Aeliana estava apagada, não iria acordar minha irmã só por causa disso.

— Lady Ell-

Abro a porta, deixando claro em meu olhar a insatisfação. Ambos me olharam, mas rapidamente o guarda de armadura de metal e lança serrou os olhos e olhou para o interior da carruagem. 

Até parar em Aeliana, e ele ergueu o queixo.

— Quem está dormindo? Acorde-a, agora — Sua voz engrossou, um tom mais imperativo.

Com um longo suspiro descontente, eu respondi:

— É Aeliana Higasa — Odeio inspeções.

— A-a aurora? — Ele arregalou os olhos e deu um passo para trás, me encarando de novo. — Por favor, não a acorde. Podem seguir viagem — Ele ergueu as mãos em desculpa e voltou para a lateral do portão.

— Peço perdão pelo incoveniente — disse o cocheiro, me olhando com as mãos nas costas.

— Não há problema.

Ele fechou a porta e logo agitou os cavalos para andarem, em um ritmo mais lento, desta vez. E em um chão mais decente. Aeliana dormia tranquilamente, sua respiração leve com sua aura. 

Você alcançou a fama de ser tão perigosa assim, Al? Para mim, você ainda parece uma pessoa inofensiva. 

Deito na cama e me cubro com o segundo cobertor. Sinto que vou precisar desses minutos de sono a mais…

 

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Toques leves na porta me tiram do cochilo. A chuva estava um pouco mais forte agora, com trovões baixos bem distantes daqui. Apoio-me na janela e deixo um bocejo escapar.

— Lady Ellie, nós chegamos a casa Higasa — disse o cocheiro na porta.

— Al, Al — Cutuquei o ombro de Aeliana e falei quase que sussurrando. — Levante, vamos para casa.

— Uhm? Está chovendo? — Sua voz mansa e fofa, ela virou para mim com os olhos ainda fechados e o cabelo todo bagunçado. — Tudo bem.

Ela levantou e colocamos os cobertores dobrados no chão. Dei dois toques leves na porta e o cocheiro abriu para nós segurando o guarda-chuva bem acima da porta, deixando seu próprio corpo a merce da chuva.

Cobri meu corpo com os braços quando o vento frio arrepiou todos os pelos do meu corpo. 

— Nossa, eu prefiro ficar aqui dentro — disse Aeliana antes de fazer o mesmo que eu.

Descemos da carroça, o cocheiro apoiou o guarda-chuva na carruagem e buscou nossas malas pesadas. E, mesmo parecendo que sua roupa ia rasgar, ele segurou as três bagagens com uma mão e pegou o guarda-chuva com a outra.

Andamos sobre a trilha de pedras entre o gramado molhado e paramos embaixo da telha que não se extendia muito além da porta. 

— O que fez o papai comprar uma casa no reino 7? — Aeliana disse enquanto limpava os olhos. — Lembro que ele queria — Ela boceja — morar em uma cidade tranquila… Karin, o nome.

— O torneio dos representantes — falei e me aproximei da porta, Aeliana veio para o meu lado para evitar as brisas da chuva. 

Um grande clarão iluminou tudo, e em seguida veio um grande trovão que durou pouco mais que sete segundos. O cocheiro colocou as malas próximas da porta e deu três passos para trás, parando na chuva novamente.

— Algo mais em que posso servi-las, Ladys? — Seu tom formal, respeitoso.

— Não, é tudo.

Ele se curvou para nós duas e voltou a carruagem, seguindo viagem para fora do condomínio. Eu peguei a chave do bolso e abri a porta.

— Ele tinha interesse nos representantes atuais, queria usar como parâmetro o nível de poder deles para ver o melhor lugar onde abrir uma academia que pudesse fazer crescer seu nome — Empurrei a porta. — Como a cidade estava superlotada pelo torneio ser aqui e o aurora que ele queria como segurança também viera para cá, ele não pensou duas vezes.

Um clarão ilumina a sala de estar. Fria, vazia e escura. Total silêncio, uma casa grande demais para duas pessoas. 

— O capitão dos auroras, Kanro Kai — disse Aeliana. 

— Sim, ele mesmo — Entrei na casa com uma das malas. — A rainha Alyssa precisava de um bom líder e fez uma proposta para ele.

Aeliana pegou as duas bagagens restantes e eu fechei a porta. Outros trovões cruzaram os céus, e aos poucos eu estava começando a tremer. 

— Ele tem nome até entre os auroras da Fronteira. Depois dos feitos de Sanro Kai, todos esperavam bastante do filho dele. Eu pensei que Kanro estivesse aposentado e cuidando de um filho… — Ele parou por um momento fazendo “uhm”. — Na cidade de Karin! — Ela apontou o indicador para mim, levemente animada. — Foi onde o Laiky atacou — Aeliana pareceu reflexiva. — Sempre quis saber o poder de luta de Kanro. Papai disse que ele é quase nível Real.

— Sabia do Laiky? — Pensando assim… O Laiky foi caçar Kanro Kai lá? — Digo, acha que ele saiu da Fronteira para pegar Kanro?

— Isso… — Ela pegou uma das madeiras ao lado da lareira e arremessou para dentro. — A gente fala depois — Com um estalar de dedos, ela acendeu o fogo. — Talvez precise de mais madeira.

Arremessei outro pedaço, e o fogo gradativamente se tornou maior e aqueceu o ambiente. A madeira estalava, preenchendo o espaço de silêncio junto ao crepitar das chamas.

— Imagino que tenhamos que sair após o banho quentinho — Ela bufou com as mãos na cintura, movendo a cabeça para os lados. 

— Vou te apresentar ao meu grupo, mas… — Olho para o chão por um instante. — Sinto que as coisas estão ruins. 

Aeliana cruzou os braços e ergueu levemente os lábios.

— Tudo bem.

 

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Havia poucas pessoas pelas ruas, parte das lamparinas estavam apagadas, outras quebradas. A cidade estava mais suja do que costumava estar e… algumas lojas fechadas, abandonadas. 

A caminhada não levou muito tempo, mas me trouxe um gosto amargo na boca.

Abri a porta da academia de Alatar e o ar quente me preencheu. Eu e Aeliana entramos rápido e fechamos. Alatar estava sentado no nada completamente suado e sem blusa e de olhos fechados.

Uma aura branca estava ao redor de seu corpo, seu fluxo de mana corria sem desperdício, sem deixar uma única brecha na magia. O controle perfeito de um nível real. 

Aquele Caos… seria o aperfeiçoamento disso? Um nível acima do Caos poderia existir?

Os olhos de Aeliana criaram seu brilho azul ao encontrar Alatar.

— Alatar — falei, e dei um passo para frente.

A aura do cavaleiro Real desapareceu, ele abriu os olhos e olhou para mim, ficando de pé. 

— Ellie Higasa e- — Ele disse animado meu nome, mas ficou mais sério quando viu Aeliana, encarando-a de volta.

— Aeliana Higasa, da Fronteira — Ela fez uma reverência e Alatar arregalou os olhos.

Uma tensão de alguns segundos entre os dois, mas nenhum vestígio de mana no ar. Não daqui… na cidade, eu sentia algo diferente. No meio da chuva, algo poderoso como os fortes trovões no céu, uma aura como se fosse o ambiente, mas…

Mas com olhos vermelhos.

— E pensar que a guerreira sobrevivente do massacre não seria ninguém menos que a Aeliana Higasa — Ele vestiu uma blusa e pegou a garrafa de água do chão, falando um pouco mais descontraído. — Bem que eu reconheci pequenos detalhes entre vocês na hora.

Aeliana manteve seu sorrisinho de confusão. Claro que ela quer lutar com ele, Ellie. É sua irmã, fanática por lutas.

— Onde estão todos? — perguntei, em tom direto e firme. 

— Eu dispensei todos para digerirem o que ocorreu — Meu coração apertou, e Alatar desviou o olhar por um segundo para Aeliana, depois para mim. — Por hora, Lumi foi atacado, pelo que sabemos, por um Ritualista de alto nível em sua missão de representante. — Minhas mãos formigaram, senti meu coração começar a acelerar. Alatar respirou fundo antes de continuar. — Não se sabe ao certo se ele vai acordar, mas sua capacidade de usar mana foi comprometida pelos danos na aura. Um usuário que eleva demais o seu poder, pode acabar com a fonte do mesmo. Isso também aconteceu com seus ossos e músculos, destruídos por excesso de magia. 

Perdi o controle da respiração quando meus olhos arderam, mas Aeliana segurou minha mão. Engoli seco na garganta e respirei fundo. 

— Temos outros problemas!? — Minha voz agitada. — Eu só fiquei fora por uns dias e- e- — Fechei os olhos e respirei de novo, falando calmamente desta vez: — Onde ele está?

— Hospital particular de Alyssa, quarto andar, ala 6. Assim como os outros, você também está dispensada. — Ele cruzou os braços.

— Certo, obrigada — Falei com pressa, andei até a porta e peguei o guarda-chuva.

A aura perigosa lá fora havia desaparecido. O que era?

— Devo ir? — disse Aeliana assim que eu abri a porta.

Ponderei por alguns instantes enquanto via a água cair. 

— Não, eu vou sozinha — Não olhei para trás.

— Aumente sua aura se acontecer qualquer coisa — Olhei para Aeliana, seus olhos brilhavam em azul e seu tom estava sério. — Que eu vou até você.

 

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Os cavaleiros reais me deixaram entrar, e eu nunca vira o hospital particular da rainha, mas… era tão vazio e escuro. Eu ouvia apenas o eco dos meus passos nos corredores e cerrava os punhos de raiva.

Onde estava a droga dessa ala?

Os relâmpagos eram mais úteis na iluminação do que as lamparinas mágicas, que certamente só serviam para monitorar a atividade dentro do hospital. Foi quando um trovão maior veio de novo, durante mais de dez segundos, e eu vi a aura dele morrendo.

Se apagando como as últimas brasas de uma fogueira.

Impulsionei minhas pernas com magia e utilizei da magia de cortes no braço para cortar o vento a minha frente. Disparei pelos corredores em alta velocidade sem fazer o menor barulho, apenas vacilando quando freei bruscamente e deixei meus sapatos arranham o piso com um som agoniante.

Apoiei a palma da mão na porta e… ela parecia tão pesada. Não… Minha mão estava tremendo?

— Eu estou com medo… — Sussurrei ao encarar a palma da minha mão, e deixei uma risada seca escapar. — Encarar uma dungeon seria um problema menor.

Deixando o ar escapar, empurrei a porta, e a chuva apertou sob o telhado. O quarto estava… frio, com uma pequena lamparina amarela em cima da cômoda. Tinha também dois vasos de flores — Um com rosas e outro com girassóis — vívidas em água. 

E na cama… Ele.

Meu corpo perdeu as energias, uma fraqueza sem igual. Está me traindo? Ande até ele, vamos! Minhas pernas não se moviam, meus dentes estavam cerrados. 

O rosto dele, outrora cheio de vida, estava pálido e magro, ossos aparentes. Um pequeno aparelho media sua magia falha e seus sinais vitais fracos como a menor das gotas de uma grande tempestade.

Tão fraco… Duas gotas escorreram dos meus olhos quando dei um passo para perto, enquanto eu refletia em silêncio ao ver sua aura morrer aos poucos, ver seu corpo desistir após tanto sofrer. 

Me desequilibrei no passo seguinte, meus olhar estava vago, embaçado, mas consegui levar minhas mãos sem força até seu cobertor. Me permiti sentar gentilmente em sua cama.

Engoli seco ao pôr a mão onde deveria ser sua perna direita. Levei a mão a boca e a lágrimas começaram a escapar, pois eu não via só o sofrimento físico dele, mas sabia da pressão que ele tinha sobre sua mente.

O sentimento de perder, de querer proteger alguém. Era demais para carregar sozinho, demais para carregar enquanto lutava sem saber o porquê de o quererem morto. 

Como pôde…

Disseram… — Minha voz falha, em choro. — Disseram que você não vai acordar. Que… que você morreu para os médicos. — Uma trovão, outro clarão. — Que bobeira, não é? Como podem achar isso!? — Gritei. Lidar com a morte? Que bobagem. — Eu… eu não acredito nisso.

Passo meu dedo levemente pelo seu cabelo fino, fazendo-lhe um cafuné ao olhar para seu rosto, cuja expressão, mesmo dormindo, parecera triste. Onde seu único olho, fundo de exaustão, me dizia que ele não estava bem.

— Acho… acho melhor você levantar logo — Deixei meu dedo correr pela sua testa, pela sua bochecha, pelo seu queixo. — Porque, Lumi Kai, eu gosto de você. 

Afastei minha mão e levantei devagar, em nenhum momento tirando meu olhar do rosto dele. Amice e Emy deixaram bilhetes aqui… Arranquei uma folha e usei a caneta azul presente, demorando por voltar de 5 minutos.

— Pronto — Sussurrei. — Vou indo. —

Abri a porta devagar e olhei a última vez para trás, para vê-lo.

— Eu volto para te ver, Lumi Kai.





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