Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 4

Capítulo 80: Como ele

 

 

Temo ter fechado os olhos por pouco mais de meia hora.

O ar frio agitava as cortinas da pequena janela do quarto, onde nuvens carregadas de chuva preenchiam o céu e cobriam as estrelas. Limpei os olhos e me levantei, andando desanimadamente para o closet.

Uma reunião a beira da madrugada não era a melhor das-

Alguém correu pelo corredor do castelo e parou em frente a porta do quarto quase que instantaneamente. Três batidas lentas e intervaladas.

— Quem é? — perguntei, cerrei os olhos a procura de uma aura, mas não via nada além do escuro do corredor.

Andei lentamente na direção da espada apoiada no armário, sendo pega apenas pelo ranger da madeira, e as batidas se repetiram. 

Mais fortes, desta vez. 

— Quem está aí!? — Só dois passos até a minha arma!

A maçaneta começou a girar, e eu senti a porta destrancar sozinha. As velas do quarto se apagaram e eu agarrei a espada, posicionando-me contra a porta, de costas para a janela.

E uma presença sangrenta surgiu atrás de mim.

Virei-me carregando uma linha vermelha de mana na lâmina e posicionei a perna dianteira para me impulsionar para frente, mas me deparei com o ar e ouvi a porta se abrir.

— Ellie!? — disse meu pai, sua testa franzida.

— Pai!? Por que não respondeu?

— Você não disse nada. Fiquei preocupado.

— Eu perguntei duas vezes.

As luzes… Quando se acenderam?

— A janela é a entrada perfeita para um invasor a noite — Ele olhou para a do quarto. — É bom mantê-la fechada.

— Desculpa, eu só queria tomar um ar e acabei dormindo — Olhei para as cortinas balançando na janela. — Eu pensei que alguém ia me atacar — Ele me olhou com mais atenção. — Senti uma aura má vinda da janela e alguém bater com força na porta pouco antes disso.

Os olhos de Hiroki brilharam em vermelho quando sua aura agitou o quarto tanto quanto os ventos. Ele se aproximou da janela com faíscas amarelas ao redor do corpo e deu uma longa olhada.

Até que seu olhar parou em um ponto em que era mais ou menos no meio da floresta. Eu fiquei próxima a porta e a tranquei, e não consegui sentir nenhuma outra fonte de poder devido a grande pressão de aura do meu pai.

Ele ficou por volta de cinco minutos só encarando aquele ponto, e depois fechou a janela e ativou uma espécie de feitiço na borda. Sua aura retornou ao estado base aos poucos, e seus olhos vermelhos fixaram-se em mim. 

— Temo que algo tenha mudado na floresta. Você não estará mais sozinha neste castelo.

— Mudado de que forma? O que você viu?

— Não vi nada — Ele se aproximou. — Mas algo na escuridão me olhou de volta, que de alguma forma me ameaçou através de sua aura. 

Ataques noturnos… Eu devia ter tomado mais cuidado. Eu podia ter sido morta enquanto dormia como muitos foram.

— Sinto informar que a hora chegou — Hiroki andou até a porta.

— De ver a Aeliana? Estou pronta.

— Isso também. Ela provavelmente estará na reunião hoje, o rei foi estúpido demais para não ouvir o recado dela quando chegou. Se vista bem, iremos juntos.

Finalmente. 

Finalmente o momento chegou.



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Coloquei um vestido preto curto com duas camadas de saia e um corpete com 8 botões, detalhes de brilho e pedrarias em branco e dourado por todo ele. 

O busto era fechado por uma renda bem desenhada preta que ia até o pescoço, também com um detalhe em fita, além das longas mangas que ultrapassavam as mãos gentilmente com o seu fino tecido, deixando a mostra meu salto scarpin preto com pequenos desenhos e pedras em vermelho que iam do tornozelo até a ponta.

Somente meus passos ecoavam enquanto eu seguia Hiroki neste corredor… túnel mal iluminado — com uma tocha fraca a cada vinte passos. Pedaços de terra caiam do teto de vez em quando, assim como a parede estava recheada de musgos e areia, sendo difícil de enxergar os blocos de pedra.

Toda vez que o ambiente ficava escuro e eu mal via meu pai me dava nos nervos. Tinha medo de que a qualquer momento sua silhueta fosse substituida por a de algum ser que habita fora dessas muralhas.

O maior número de mortes era enquanto os moradores dormiam, e o segundo enquanto os guerreiros andavam sozinhos nos corredores. Como…

Dei uma rápida olhada para trás, e qualquer falha no fogo parecia um vulto que vinha nos buscar.

Como eles adentravam aqui? Por que os monstros eram tão poderosos quanto mais próximos a Fronteira nascesse? 

Alguns buracos nas paredes tinham aranhas elétricas e ratos de três olhos vivendo em harmonia… Um arrepio percorreu meu corpo e só acelerei o passo para perto de Hiroki.

Chegamos a um espaço um pouco maior, ainda cheio de terra, mas com buracos para fora no teto. 

Runas acompanhavam parte das paredes. Digo, apenas metade de runas. Uma escada simples e suja, quebrada em vários espaços e com cerca de sete degraus. 

Havia uma porta imensa com vários círculos dourados e enferrujados e muitas auras poderosas em seu interior. Nos cantos, duas tochas gigantes em barris de madeira repletas de cupins de fogo.

Uns oito ratos voadores passaram por nós conforme subíamos e eu me arrepiei. 

Que nojo.

Gritos e murmúrios se tornaram fortes quando fiquei de frente para a porta. Meu coração só acelerou. Ela está lá? Era agora! Meu Deus! Os portões rangeram firmemente ao abrirem o mínimo para apenas uma pessoa passar e as runas brilharam fracamente.

Hiroki foi na frente. Ao entrar, me deparei com uma enorme sala circular que mais se assemelhava com uma torre de proteção feita com resistentes blocos de pedra do que o interior de um castelos de um rei.

O teto era muito alto e tinha um lustre feito de… tochas. As janelas eram praticamente os buracos que ficavam também muito acima. Apesar de refrescar, não tirava o cheiro ruim encrustado nos cantos.

Tochas fracas espalhadas ao redor, e pouco menos da metade estava acesa. Uma mesa grande com um mapa no centro da sala, rodeada de pessoas, com uma esfera branca flutuando em seu centro.

Boa parte deles estavam vestidos com ternos ou vestidos como eu, outras armadas até os dentes próximos a mesa e alguns, poucos mais afastados, com roupas singulares. 

Havia por volta de vinte pessoas na sala.

O rei estava com as mãos apoiadas na mesa ao lado de um homem gigante com uma armadura de metal roxo que cobria inteiramente o seu corpo, com exceção da cabeça. Uma camada grossa de magia estava presente na armadura do cara gigante e…

Era ele! Era um dos seis nível Caos de Elderer! Meu Deus.

Todos estavam olhando para a gente, mas eu quase perdi a compostura quando vi Aeliana, ao lado do rei, me olhando. Seus olhos azuis com um leve brilhar, um longo vestido vermelho, sendo sua parte de cima mais justa, dando destaque a longa saia, que se compõe com alguns caimentos e rendas brilhantes, os detalhes em brilho percorriam todo ele, além das pedrarias em branco e vermelho, a parte do busto era levemente decotada, sendo complementada por uma renda vermelha fina que ia até o pescoço e ombros, deixando apenas o centro aberto.

Ela estava extravagante e…

Estava com as mãos nas costas como eu e Hiroki. Nunca perdeu esse costume.

— É, tinham que ser parecidos — disse o rei, olhando cautelosamente para mim e meu pai, mas depois revirou os olhos e coçou a barba suja com… insetos!?

Alguns dos de armadura me encararam quando me aproximei da mesa e, com um olhar julgador, começaram a me julgar em baixo tom. O rei fechou os olhos ao respirar fundo, mas um soldado com armadura branca o interrompeu quando ele abriu a boca:

— Peço perdão, majestade, mas a filha do lorde Hiroki necessita estar aqui? — Não um soldado, ele o cavaleiro real de mais alto cargo aqui. — Digo, ela tem a aura a nível Dilúculo e é jovem. Muitos guerreiros mais experientes e preparados voltaram com traumas para suas casas.

As auroras cochicharam entre si, concordando com o cavaleiro real, e os  outros dois cavaleiros reais ao seu lado me lançaram um olhar que certamente dizia “princesinha assustada”.

— Não me encha a paciência agora, Zayden. Respeite a filha dele — disse o rei, desinteressado. 

Algumas risadas baixas entre eles. Todos eram tão fortes e experientes, estavam dispostos a lidar com talvez o pior problema que o mundo possa ter. Eu faria o mesmo, estaria disposta a acabar com todo o mal enquanto eu estivesse viva.

Independe do quão forte ele possa ser, ou do quão árduo o caminho seja. Mesmo que para isso precisasse confrontar todas as pessoas nessa sala. É isso que um amigo, sem magia, fez sem pensar duas vezes.

— Eu me chamo Ellie Higasa — falei em alto som, mantendo minha expressão séria e inclinando o pescoço ligeiramente para cima. — Estou aqui pelo mesmo objetivo que vocês, gostaria de receber toda experiência possível nessa reunião.

Alguns se calaram, olhando até mesmo para baixo, enquanto os dois cavaleiros reais pareciam curiosos. As guerreiras auroras fizeram um “puff”, mas apenas cruzaram os braços com um olhar debochado. 

E Aeliana deu um sorrisinho de quanto.

— É claro, Lady Ellie — respondeu Zayden, seu semblante neutro. — Não há volta se ficar aqui.

— Não há por que voltar — respondi, e nos encaramos.

Os homens daqui eram tão poucos elegantes.

— Temos todos presentes — disse o Caos. Sua voz grossa e alta proveu um arrepio não só a mim. Ele passava fácil dos dois metros de altura, e sua aura era um diferencial ao lado do próprio rei. 

Ninguém ousou falar depois dele.

— Podemos começar, enfim. Temos bastante a discutir hoje — Ele retirou as mãos da mesa e as apoiou na cintura. — Garota Higasa, fique a frente.

Aeliana confirmou com a cabeça e deu um passo a frente, ficando a um palmo da mesa e visível a todos. Ouvi alguns comentários nojentos dos homens para a minha irmã, que depois cairam sobre mim.

Que nojo dessas pessoas.

— Emprestamos três combatentes para uma expedição que aconteceria no reino 1 para — Ele inspirou, irritado. — conseguir um artefato que supostamente nos daria alguma resposta sobre o que tem no fundo da fronteira e nos trazer algum por que de todos esses ataques.

Ele arremessou enraivecido o artefato na mesa. A moeda quicou e voou na direção dos cavaleiros reais, mas Zayden segurou sem problema, dando um rápido olhar para ela. 

— Uma moeda antiga. Creio que seja da sociedade que vivia próxima a região da Fronteira — disse Zayden. — Talvez haja outro item semelhante nos arredores.

— A porra de uma moeda!? Não valeu o reforço que enviei!

— Majestade — disse um cientista, de jaleco e óculos, amedrontado. — Identificamos um tipo de mana peculiar no interior do artefa-

— Você acha que- — O cientista se encolheu. — Deveríamos ter feito muito mais. Aeliana é a terceira melhor aurora, e foi acompanhada de dois bons combatentes. Como só essa garota retornou se nem mesmo os batedores do reino 1 conseguiram sair?

Começaram a conversar entre si, mas Aeliana manteve sua expressão neutra como a de Hiroki. Eram mais parecidos do que eu me lembrava. O Caos também não demonstrou nenhuma surpresa. 

— Majestade — Zayden falou, e os murmúrios foram cessando. — Devemos aguardar uma análise melhor do artefato — Ele jogou a moeda na mesa. — Assim como Sekhem conseguiu transformar uma simples lança em uma arma capaz de eliminar muralhas.

Sekhem… era um Ritualista no mesmo nível que Grannus, o cara que tentou matar o Lumi. A recompensa por ele de oito mil moedas de ouro.

— Vocês conseguiriam uma análise melhor na Fortaleza do menino Lotier? — Zayden continuou. — A situação do laboratório aqui está horrenda, pelo que me lembro.

— Si-sim, sir Zayden. Tenho certeza que com os recursos de lá nós poderíamos desfrutar da magia presente aqui.

— De fato — disse outro cientista. — Uma extração cuidadosa vai nos dá uma resposta de como chegar no centro da fronteira.

Oh, a Fortaleza secreta entre montanhas? Falavam com tanta naturalidade aqui.

— Ótimo — continuou Zayden. — Então suponho que-

— A Fortaleza caiu — disse o rei, casualmente. 

— O quê? — Zayden pareceu incrédulo como todo o resto.

Os cavaleiros reais ficaram inquietos desta vez, até os auroras começaram a questionar o próprio rei sobre essa informação. A bagunça retornou quando todos os membros da sala gritavam juntos em busca de resposta.

Aeliana deu um leve sorriso de novo, mas desta vez… parecia diferente. Estava escondendo algo? Era como um deboche, uma afronta a eles.

— Temo que haja um equívoco nessas informações — disse o Caos, e o silêncio retornou com olhares assustados. 

— Não há — retrucou o rei. — Lotier enviou o próprio representante com o melhor grupo que tinha para verificar isso. 

Lumi! Bom saber-

Que? Ele foi para a Fortaleza? Essa era a missão!?

— Ele não era só um garoto sem magia? — disse a cavaleira Real ao lado de Zayden. — Quem garante que é verdade?

— O representante mais fraco que há, Kei — disse a outra cavaleira real. — Deveríamos averiguar melhor isso. Nem com um grupo de elite ele seria capaz.

Não pude deixar de cerrar os punhos. Eles não tinham ideia do que estavam falando. Lumi conseguia ser muito forte no combate corpo a corpo, e era muito bom com as duas espadas. Spectro não deixaria ele morrer…

— Recebemos seu Voin com o fracasso da Fortaleza — Ele… estava bem, certo? Que aperto repentino. — Todos foram mortos por uma criatura enorme, cujo alimento favorito era o desespero humano. Um ser que mata apenas por diversão com suas enormes presas e garras. Uma energia vermelha que adentrou no campo de força de Gilmour três vezes e roubou a relíquia guardada lá.

Não, essa era a descrição de um Laiky.

— Caralho! — Zayden gritou e bateu na mesa. — O resto da espada era a melhor que havíamos conseguido. E ainda aquele Laiky desgraçado! — Eu sabia! 

— Deveríamos ter ido desde os primeiros sinais na pequena cidade ao sul do décimo reino — falou a representante das auroras, e seu grupo urrou erguendo suas espadas brilhantes. 

Temia ter perdido minha expressão quando meus olhos arderam. Como alguém sobreviveria ao Laiky? Não podia perguntar isso na frente de todos… Meu pai me olhou de relance enquanto todos discutiam, mas acenei dizendo que estava tudo bem.

— Não temos onde guardar os artefatos e perdemos a melhor relíquia para ele — Ryu, a representante dos auroras, disse bem alto. — Deixe-nos ir e trazer a cabeça dele!

Os auroras rugiram novamente, e minha cabeça parecia não estar no lugar. Eu precisava saber dele, queria ir agora até ele. Respirar estava começando a ser difícil.

— Certo, certo. Junte seu grupo e vá. Não aceito menos que a cabeça desse desgraçado. 

— Aquele representante não tem sorte mesmo — disse uma aurora, e todos começaram a rir. — Encarar logo um Laiky. Fora que está sempre cruzando com anormalidades.

Não posso chorar, não posso desabar na frente deles.

— Quem usa um goblin como invocação!? — Outro falou, e riram ainda mais alto. — Eu queria trazer ele aqui para ver o que é problema de verdade!

Quando estava para perder o controle da respiração, meu pai me olhou. Após alguns segundos eu respirei bem fundo e voltei a postura de um Higasa.

Com a garganta seca, relaxei os braços e me aproximei da mesa que todos estavam ao redor. Já fora um mapa um dia, mas estava tão sujo e destruído que mal dava para ver os lugares; que há muito tempo devem ter mudado.

Nunca me imaginei estar entre tantas pesssoas de tamanho escalão, pronta para aprender e me desenvolver. Meu pai, minha mãe e Aeliana sempre foram tão incríveis nisso, tão fortes e convictos no que faziam.

Perdi a esperança depois de alguns anos que Aeliana se foi, mas vi a mesma renascer quando um simples garoto sem magia salvou um menino de um minotauro morto-vivo em uma simples cidade.

Eu vou chegar ao fim dessa reunião e ir vê-lo. Tudo que eu fiz, tudo que eu treinei. Tudo foi para me levar a um momento como esse.

Então, recomponha-se, Ellie Higasa.



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