Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 4

Capítulo 77: No fim do corredor

 

Correr… como eu odeio correr. Meu estômago ainda dóia, mas eu melhorei bastante desde a primeira vez que me atrasei. Na verdade, hoje a culpa era da mamãe por não ter acordado. 

Ninguém gostava de ficar andando nesse tempo nublado e frio, ver as ruas vazias assim era assustador. Rápido, rápido, rápido. Não aconteceu mais nada depois daquele pesadelo horrível. 

Era certo que eu nunca mais dormiria mal.

Na escola, eu podia melhorar. Queria que o papai me visse tão forte quanto o Lumi. Lumi era um fracote e lutou naquela arena gigante na frente de muita gente. 

Mas… Ah, eu devia ir visitar ele. Mesmo que ainda estivesse dormindo mesmo depois de duas semanas. Uhm, não mentiriam para mim, certo? Ele tinha que só estar dormindo…

Perdida na minha cabeça, esbarrei em alguém e girei no ar antes de bater com o ombro no chão. Ahh! Como assim tinha alguém aqui no meio do nada? Perto do chafariz ainda! Que dor! 

Não, eu não vou chorar. Não sou uma chorona.

— Desculpe por isso — disse a voz gentilmente. — Eu posso te ajudar a levantar?

— Eu- — Ellie!!? 

— Está tudo bem? — Ela deu um fraco sorriso. Suas olheiras estavam fundas, e ela parecia tão… triste. 

— Eu estou indo para a escola — falei enquanto pegava a mão dela.

— Sozinha? — Acenei concordando. — Deixa que eu levo você. Pode ser?

— Hunrum. 

Ela me acompanhou, mesmo que parecesse tão cansada. Tinham vários cortes nos braços dela, alguns no pescoço e dois no rosto. Apesar disso, sua energia ainda era quentinha, a ponto de me deixar confortável e me fazer esquecer o frio que estava fazendo.

Ela parecia incrível, eu podia dizer que era uma pessoa calma e tranquila só de sentir a aura dela. Acho que agora eu entendi o porquê do irmão ter começado a gostar dela. 

Uhm, ela podia visitar nossa casa agora. Devia ser uma pessoa muito forte.

Passamos pelas ruas em silêncio até chegarmos na entrada da escola. Ela parou e me olhou. Seus olhos fizeram minhas mãos formigarem, até que ela virou a cabeça em um sorriso fofo.

— Evite andar sozinha por aí, ok? Sua mãe sabe que saiu?

— Eu — Engoli seco. — deixei uma carta para ela. Está tudo certo. — Coloquei uma mão na cintura e levantei o polegar com a outra para ela.

— Ás vezes é melhor avisarmos — Ela ergueu um sobrancelha e cruzou os braços. — É um pouco perigoso estar por aí sozinha.

— Sim, senhora — Ela se virou.

Ela levou alguns segundos antes de virar para mim, sua expressão cansada…

— Agora, vá para aula.

Ela acenou em despedida. Que bom que ela apareceu, eu odiava fazer o trajeto sozinha. Disparei até minha sala de aula por conta dos corredores vazios e silenciosos, sempre parecia que haviam passos atrás dos meus. 

Claro que não tive coragem de olhar para trás em momento algum, e ainda meti a cara na porta antes de conseguir abrir ela.

A sala tinha duas janelas grandes, mas não dava para ver nada lá fora. Quatro fileiras de cadeiras com mesas e o quadro da professora, além do mural dos melhores trabalhos e eventos que tem no reino. 

Nunca dei muita bola.

A professora me encarou brava enquanto alguns dos alunos da sala começaram a rir do meu nariz vermelho antes que eu pudesse limpar o sangue. Ela cruzou os braços e ficou de pé.

— Atrasada. Mesmo após ter faltado muitos dias você ainda consegue se atrasar. Ah — Ela suspirou e ajeitou os óculos. — Você é um caso perdido. Sente-se logo.

— É por causa do irmão dela — Alfar zombou, e seu grupinho começou a rir. — O representante mais fraco dos reinos. Como você se orgulha dele? Devia sentir vergonha. 

Encarei ele com meus punhos cerrados e sangue nos olhos. Papai disse que não devíamos brigar atoa, mas esse idiota estava zombando de alguém que eu amava muito. 

— Me encarando de novo, sua aberra-

— Chega! — A professora gritou. — Vocês — Ela apontou para o grupo dele. — quietos. — Emy — Ela olhou para mim. — Ou sente-se ou saia. 

— Humph — Andei até a única cadeira livre no fundo da sala e joguei minha mochila nela. 

Algumas risadas ecoaram de novo, mas lembrei das lições da mamãe e apenas suspirei. A aula sobre escrever era tão chata, útil apenas para me ajudar a ler aqueles livros divertidos de magia. 

Eu aprendi algumas palavras novas para o elemento vento, agora eu podia anotar o tutorial de como fazer um tornado em casa apenas com magia, ou de pelo menos fazer com que minhas rajadas de vento sirvam para alguma coisa.

Não foi difícil usar meu livro de magia sem que a professora percebesse, desde que fui na biblioteca passei a gostar de ler e… nunca achei que diria isso, mas ler era bem legal.

As bolinhas de magia sempre aumentavam quando eu praticava, fosse de modo puro ou com rajadas de ar minúsculas que podiam mover cereais. Eu não conseguia visualizar minha aura direito, soube que nem todas as pessoas tinham essa capacidade.

Meus pais eram muito fortes e Lumi conseguiu ser muito fraco, mas treinou tanto que passou a ser forte também. Então se eu treinasse desde cedo, podia ficar mais forte que todos eles.

Mas, ah… Não, vou dar um jeito de ficar boa só de longe.

Tudo andava tão perigoso. Todo mundo estava falando da volta de um tal de “Sangue”, um cara malvado que lutou contra meu avô. O nome dele já me causava arrepio. Sério, quem seria apelidado assim atoa? Ele deve ter feito coisas horríveis.

Um grupo de Ritualistas, o cara de capuz que quase matou meu irmão… Eu tremia de medo só de pensar neles, quem dirá sair do reino sozinha. Eu queria entender melhor essa vontade ardente de ficar forte que minha família tinha, mas sinceramente fracassei nisso.

Arremessaram um papel em minha cabeça, que bateu e caiu no meu caderno. Alfar estava rindo e insinuou para eu abrir, e, após ter confirmado que a professora ainda estava distraída, assim o fiz. 

Era eu e o meu irmão machucados e ele com uma coroa. Ele era um idiota se achava que o pai dele podia ser um-

Emy.

Meus pelos eriçaram de novo, não pude evitar de ficar boquiaberta e de olhos arregalados. Na janela, um pequena arranhar apareceu. Não, não, não. Essa energia era a mesma do pesadelo. Uma energia ruim, uma energia de alguém morto.

Minha respiração acelerou quando a mão apareceu e tocou o vidro. Tinha uma textura estranha e preta, unhas enormes e afiadas e-

— Emy Kai — A professora disse alto, e só agora percebi que todo som havia sumido. — Está tudo bem? — Ela parecia tão confusa quanto eu. 

Isso de novo? Não dormi acordada.

— Ela é maluca, professora — Um amigo do Alfar. — Se acha especial só por ser filha do capitão dos Auroras. Que sem graça.

A turma riu, mas levei vários segundos até meu corpo voltar a se mexer. Aquela energia ruim voltou para mim, queria me pegar. Não estava segura aqui? O reino estava cheio de cavaleiros reais, como um monstros poderia ter invadido?

— Acabe a lição, está se distraindo muito — A professora.

Passei a aula em silêncio, olhando amargamente para aquela janela, ignorando qualquer papel ou pedaço de borracha que jogavam em mim. Não queria mais lidar com essas coisas, papai teria que acreditar em mim. 

O sino do intervalo finalmente soou. Arrumei a mochila o mais rápido que pude e amarrei com dois cadeados na cadeira; ninguém iria mexer dessa vez. A sala estava quase vazia, e eu só queria verificar uma coisa antes de sair. 

Andei devagarinho até o vidro arranhando e aproximei o rosto. Era um corte bem fino e extenso, mais do que eu tinha visto. Respirei bem fundo antes de colocar a mão, até sentir um toque sobre meu ombro e gritar.

— Você é maluca? — disse Alfar, e seus amigos riram. — Se assusta à toa.

— Não me perturba — encarei o idiota e passei pelo seu grupo.

— Maluca que nem aquele seu irmão — Parei de andar, a magia circulou em meu punho. — Você acha mesmo que ele mereceu ganhar do Miguel? Sabe o que dizem. Foi tudo planejado. Meu pai tinha ótimas chances de ser um representa-

— Cala a boca, seu fraco — Uma camada de ar em meu corpo, como uma aura. — Você não vai falar do meu irmão assim. 

Eles me olharam assustados quando dei um passo para perto. 

— Emy? — Madalena disse da porta, e todos olharam para ela. — Puff. De novo isso? Vocês não têm nada melhor para fazer não? Vem, Emy, vamos sair daqui.

Minha aura se desfez e continuei andando em silêncio, até ouvir a voz de um deles dizendo que as coisas não terminariam assim. O irmão dele era dois anos acima, e muito mais forte que a maioria dos alunos. Chamavam ele de prodígio, eu acho.

Uma vez ele me socou tão forte na barriga que eu cuspi sangue. Isso só porque eu tinha negado o dar dever de casa ao Alfar e chamado ele de burro. Tinha medo que o chamasse de novo. 

Não queria ter o rosto enfiado no banheiro sujo de novo, ou que me trancassem no banheiro escuro sozinha.

Não queria incomodar o papai com coisas bobas assim, e a mamãe parecia triste demais para me ouvir. Por isso que só vou ouvir. 

Espero não ter errado.

— Não dá bola — disse Madalena enquanto andávamos no corredor com os outros alunos. — Devem estar com inveja de você.

— Eu não ligo, mas me irrita — Desviei o olhar, desviando de um professor.

O corredor era um tanto pequeno, sem janelas. A única passagem de ar que tinha era próximo a saída da escola.

— O que foi? — Ela inclinou o rosto, curiosa, após desviar de alguns alunos que saíam de uma das salas.

Contar a ela sobre as vozes? Não, Madalena era um ano acima e forte, mas aquela coisa era sombria. Ela iria ficar longe de perigo, o primeiro a saber disso seria o papai.

— Nada. Estou com fome — Dei um leve sorriso.

— Humph. Vamos lanchar, então — Ela retribuiu.

O refeitório estava mais vazio que o normal, mas ainda muito cheio. Colocaram uma magia nas paredes que deixou o lugar bem quentinho, só era ruim quando alguém precisava ir no banheiro e… Bem, bastava não beber água.

Sentamos em uma das mesas no meio, próximo da algumas outras alunas, e comi os sanduíches que a mamãe fez. A escola deu algumas frutas e um doce para cada aluno, e infelizmente o suco de laranja que haviam feito congelou segundo um descuido do cozinheiro.

— Eles querem fazer um torneio para a gente — Madalena disse mastigando. — Sabe, infantil. É uma ótima chance de você bater no Ravi sem ser punida.

— Uh, não. Tenho medo dele — Arqueei uma sobrancelha e peguei a fruta. — Eu gosto de bater, não de apanhar. Se eu fosse, ele me humilharia em público. A turma de cima é muito forte, tá cheia desses nobres idiotas. E não é só dinheiro que eles têm. Eles são muito bons com magia

— Ah, toda a cidade vai ver. Vale a pena apanhar nesse caso. Vamos lá. Só para me fazer companhia. Hein? Hein? — Ela se aproximou com as mãos no rosto fazendo uma cara fofa. — Você só é fraca porque não treina, sabe disso. Eu também não tenho chances nenhuma, mas ficar em último lugar também é uma vitória.

— Você não bate bem das ideias. Eu vou — Suspiro bem fundo. — pensar. No máximo, vou assistir só a sua luta e ir para casa. — Ela sentou de novo, e eu encarei o sanduíche. — Me pergunto como meu irmão ia em coisas assim sem pensar duas vezes. 

— O grande aventureiro — Ela me encarou. — Ele vai ficar bem? Ainda não tive a chance de conhecer esse seu grande herói.

— E por que você quer conhecer meu irmão? — Ergui uma sobrancelha de novo. — Ele já tem um grande amor, entendeu!? — Cruzei os braços.

— Eu quero conhecer ele porque alguém falou de mil aventuras de um menino que anda com um goblin anão e conseguia usar fogo na espada. Sendo que há um ano atrás ele mal podia usar magia.

— Você pode ver ele no jornal — falei, falhei em abafar uma risada e nós gargalhamos. — Ele vai ficar bem sim. Mamãe disse que ele só precisa dormir muito e logo vai ficar forte de novo.

O sino soou, e uma estranha corrente de ar gelada surgiu dos corredores. Acabaram com as paredes quentinhas do nada?

— Bem, se cuida, tá? — disse ela se levantando. — Qualquer coisa eu durmo na sua casa. 

— Tá bom, tchau.

Madalena me abraçou, pegou suas coisas e foi. Enquanto arrumava o que sobrou dos sanduíches, o restante dos alunos se dividiram rapidamente nos quatro corredores da escola.

Até que Madalena, no meio deles, começou a adentrar na escuridão. Os demais corredores também estavam mais escuros, quase como se não houvesse luz. Na verdade, além das luzes daqui, não tinha mais nenhuma.

Estava claro para caramba, até a luz das janelas sumiu- Não, não, não!

— Madalena-

Ela havia desaparecido junto com todo o resto. Os pelos dos meus braços eriçaram, e aquela energia fria e assustadora voltou. O silêncio absoluto me encontrou, e eu cerrei os dentes sem conseguir parar de tremer. 

Engoli seco e lentamente agachei, indo para debaixo da mesa que estávamos. Um passo — Muito pesado! — veio do corredor, tremendo todo o chão, fazendo o metal das cadeiras rangerem. 

 É real, é real, é real.

Outro passo dado na direção da cozinh-

— VocÊ pode Mer ver? — Muitas vozes em uma. Droga. Tampei a boca com as duas mãos. — Sou eu! Sou eu! Hahaha. Vamos brincar juntos. AAh! AAH!

Os passos correram e pararam repentinamente. Congelada, prendi a respiração. Olhei para todo lado, mas não havia nem sinal do que havia corrido. Eu comecei a suar frio quando a mesa em cima de mim rangeu.

Ela rangeu atrás de mim e meu coração parou. Tive dificuldades para girar o pescoço, até ver a mão desfigurada tentando me alcançar. Preciso sair! O silêncio prevaleceu por alguns segundos, quando de repente ele gritou.

— Achei você, Kai!

Ele não tinha um rosto, apenas uma boca enorme repleta de dentes afiados e carne e sangue. Uma boca que abriu a ponto de poder engolir não só eu, mas toda a mesa em que estávamos.

Saí aos gritos, correndo sem olhar para trás. Ignorando — ou tentando — os múltiplos que vieram de toda parte. Ouvi a mesa ser destruída e cometi o erro de olhar para trás e ver aquele corpo retorcido com vários braços e pernas me perseguir. 

Ele girou a cabeça várias vezes e focou em mim.

— Por que você foge de mim? Vem cá!

Não parei de correr, não parei de gritar por socorro. Mas o curto corredor cheio de salas agora era um ambiente escuro sem fim, sem luz. Escuridão e nossos passos foram tudo que me restaram.

Olhando de relance para trás, o vi bater nas paredes. Seu tamanho... Seu corpo já era quatro vezes superior ao de antes. 

Pequenas luzes surgiram nas brechas das janelas que eu não havia percebido aparecerem, e o corredor pareceu ter fim.

Sem fôlego e chorando, comecei a perder a visão. Quando ouvi a parede ser destruída, ele pulou com um grito gutural e me golpeou nas costelas, lançando-me contra uma porta. 

Meu corpo a destruiu e eu voei até a parede oposta a ela na sala.

Eu estava tossindo, meus braços sangravam. Meu corpo inteiro doía. Não consegui parar de chorar quando o monstro entrou na sala sorrindo para mim, suas garrafas destruindo as laterais do que já fora uma porta.

Ele ergueu as garras, feliz, o sorriso grande o suficiente para escapar o rosto de forma literal. Mas de repente parou, transformando-se em um olhar zangado com um rosnar furioso.

Eu… eu não quero morrer. Por favor. Por favor. Por favor.

— Você não é ele — O monstro parecia confuso enquanto me analisava. — Você não é ele!

Uma lâmina, então, atravessou seu coração, fazendo-o grunhir. O coração pulsante estava na ponta da espada brilhante, que logo foi retirada do peito para fatiar seu corpo em duas, quatro partes. 

Sangue espirrou para todo lado, tornando o chão o inicio de uma banheira. Uma mulher de cabelo loiro e armadura branca estava de pé no meio disso tudo, limpando sua espada, e pareceu surpresa ao me ver. 

O corpo dele começou a sumir em chamas negras e ela olhou confusa, com repúdia, ao que estava vendo.  Logo seu olhar voltou a mim.

— Está tudo bem agora — Ela sorriu de leve e guardou a lâmina. — Ei, ela está ferida. Chamem os curandeiros — Ela olhou para os professores atrás dela. — e não deixem ninguém entrar na escola até o reforço chegar. Essa criatura é um pouco mais forte do que os guardas da cidade aguentam. Eu me encarregarei de devolver essa menina aos pais dela.

— Certo, cavaleira Real Irgati — respondeu um deles. 

Ela me pegou no colo, sua mana me aquecendo, me protegendo. Seus cabelos loiros prateados caíam sobre seu rosto, mesmo alguns grudados com sangue.

— O que houve? — Minha visão estava ficando escura, aquele zumbido no ouvido voltou… — Ei, fique comigo! — Sua voz estava distante quando começou a correr. — Os curandeiros agora…

“Emy”. “Emy”.

Essa voz estranha… o que ela é?



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