Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 4

Capítulo 76: Lágrimas no escuro

 

Corri para a sala assim que ouvi a maçaneta girar, tão veloz que deslizei pelo corrimão da escada sem ao menos tocar os degraus. Eu odiava ficar sozinha, uma coisa podia surgir das sombras e me pegar. 

Uh. Que emergência era essa para terem feito isso nessa chuva? 

Papai sempre chegara sorridente, mas hoje ele parecia estar muito chateado. E um pouquinho irritado, só me deu um sorriso falso quando me viu. Mamãe estava descabelada e com olheiras fundas, além dos olhos vermelhos.

Eles… eles brigaram!? Não pode ser!

O controle de aura estava ruim, toda hora um impulso de energia surgia neles e ia embora depois de poucos segundos. Minha professora disse que isso era desperdiçar.

Coisa que meu irmão fazia o tempo todo.

Me disseram que o Lumi estava no hospital… de novo. Que ele estava muito mal e precisaria dormir por vários dias para ficar bem. Ele sempre vai para lá, qual seria a diferença agora? Por que ele não levantou e veio para casa todo enfaixado?

Que idiota. Eu queria ouvir a história de como sobreviveu desta vez. Era sempre tão divertido e louco. Também devia ter vindo no meu aniversário. Como pôde perder? Deste que ele começou a andar para todo lado nessa ideia maluca de se aventurar…

Como eu odeio aquele minotauro.

Os dias que vieram se tornaram sem cor, frios. A chuva sem fim não contribuiu para melhorar o humor da mamãe, eu falei várias vezes para ela que ele era forte e ia levantar de novo, mas dessa vez… parecia diferente. 

O papai até ficou alguns dias sem ir trabalhar. Mesmo assim, nós não cozinhamos mais juntos, nem fomos brincar na chuva. Ele deixou de me treinar. Achei que estivesse com medo de que eu pudesse me ferir também.

Eu insisti muito para que eu pudesse ao menos ir para a escola, já que tem vários desses cavaleiros pela cidade, mas falhei miseravelmente. Eu sabia que ele se importava comigo, mas eu queria ficar que nem o Lumi. Trancada em casa eu não ia conseguir, e eu também não tinha ideia de como meditar. 

 Já estive várias vezes nesse quarto. Já olhei todas as roupas rasgadas, as adagas cobertas de rachaduras. Toda vez que ele falava com o Spectro as paredes tremiam. Será que se batiam?

Oh, o quarto dele era mais espaçoso que o meu. Que injusto. E quanto dinheiro para se ter embaixo de um colchão. Era só comprar um equipamento decente ao invés dessas armas que quebram atoa.

Não sei, não entendo dessas coisas. Deve ser. 

Pulei da cama quando a janela se agitou ao uivar da ventania. Droga! A água caía firme sobre o telhado, assim como os relâmpagos que adentrava pela janela. Eu tinha medo dos trovões, tinha medo do escuro.

Por isso vinha dormir aqui. Ele podia me proteger.

Agora eu dormia com a mamãe, sempre sentia alguém me observar quando estava sozinha nesse clima, alguém perto demais para eu conseguir correr. Nem ao banheiro eu me arrisquei a ir de noite, vai que a coisa me perseguia pela casa?

Papai disse que esse medo ia sumir com o tempo, mas eu não tinha certeza.

Eu sabia perceber a magia. De vez em quando, sim. E as vezes, quando estava no escuro, sentia alguém me olhar. Mas papai garantia que ninguém estava na casa. Para mim, podia existir um monstro capaz de se esconder muito bem. 

Como o bicho papão, eu acho.

Até que eu sentia falta de ir para a escola e passear, mas tudo parecia muito perigoso agora. Era, de novo, a hora de dormir. Mais uma vez me pus entre meus pais na esperança de que o amanhã pudesse ser mais colorido que o hoje. 

 

Passos pesados na casa me tiraram do sono no meio da madrugada. Papai disse que ia trabalhar, mas não tive coragem suficiente para ver se era ele. Estava chovendo muito ainda, era mais seguro ficar perto da mamãe. 

Passei muito tempo encarando aquela brecha escura idiota da porta debaixo do cobertor, nem sei ao certo quando consegui dormir. Era meio bobo acreditar que essa espécie de pano quentinho pudesse me proteger do monstro atrás de porta.

Existes armas mágicas, então por que não cobertores?

Não, era impossível ter algo nessa casa. Papai acabaria com ele.

A claridade da janela me acordou de novo, mas desta vez não era um relâmpago.

— Bom dia, Emy — Minha mãe beijou minha testa. — Vamos tomar café.

Foi outro chato café da manhã comum, com exceção que eu estava tremendo de frio. Ela acendeu a lareira, mas até o ambiente ficar quente eu já estava roxa. 

Minha mãe foi, de novo, tomar seu café na varanda. Que saco, queria ir ver minhas amigas. Estiquei o braço e falhei em alcançar o cereal, então fechei os olhos e respirei bem fundo.

Tinham algumas gotinhas de mana em mim. Isso era tão legal! Senti o ar gelado tocar a minha pele e grunhi quando fechei a mão, puxando o ar distante para mais perto. 

O cereal foi levemente movido para perto, e haviam menos gotinhas de mana para eu usar. Aí! Repeti o processo e dessa vez ele se aproximou mais um pouco. Tive que fazer três vezes para conseguir pegar ele.

— Você não podia simplesmente levantar e pegar? — disse Amice, com uma sobrancelha erguida. 

— Se você estivesse aqui, eu teria pedido — bufei. — Por que fico tão cansada usando magia? Você não cansa.

— Usar magia é igual a fazer exercício, tem que treinar para aguentar muito. 

— Que chato. Puff. Tenho que treinar que nem o papai? Assim eu vou morrer de cansaço.

— Seu pai exagera muito nos treinos. Você pode começar entrando nas aulas de luta na escola, usar um pouquinho da magia que está aprendendo a sentir. Na sua idade eu mal sabia usar a minha. 

— Uh. Não. Tenho medo de me machucar. Quando bato o dedinho na quina da mesa eu choro. Quero só usar magia de longe enquanto os outros sofrem na frente. Hehe. 

— Quem está te ensinando essas coisas? — Ela cruzou os braços. 

— Eu… Nossa, já deu minha hora! Como o tempo passa rápido.

— Escuta aqui-

— Até logo, mãe, preciso muito estudar — falei, mantendo minha cara de sonsa.

Depois de terminar o café, corri para o meu quarto. Eu era forte sim. Todo mundo iria ver. Abri a janela e todo aquele ar frio e a chuva me fizeram tremer mesmo muito agasalhada. 

Nossa, era mais alto do que pensei…

Deixei as gotinhas de mana restantes se espalharem pelo meu corpo, mas caí de costas quando tentei segurar a ventania. Gemi de dor e fiquei de pé, indo novamente até a janela. 

Lumi se machucava de forma estúpida assim também?

Vamos, eu consigo usar vento de verdade!

Tentei de novo, minhas pernas tremiam sem parar. Eu não queria sentir dor de novo. Era horrível. Droga, eu não conseguiria assim! No livro parecia fácil aterrissar com magia. Deviam ter feito um tutorial melhor. Do que adianta escrever se escreve mal?

Desci da janela para a cama e as portas do armário se abriram repentinamente. Roupas caíram no chão, o móvel rangeu e um estrondos altíssimo veio dos céus. Eu gritei e fechei a janela, mantendo meu olhar no armário, e o meu corpo inteiro tremia.

— É, por isso eu odeio muito vento. Haha — Eu… eu não consigo me mexer. — Mãe-

Algo escuro passou correndo pela porta. Parecia um humano, uma mancha com o corpo retorcido. Uma energia ruim vinha de lá, uma energia má, sedenta por… sangue!?

Engoli seco, lágrimas em meus olhos, que nem sequer piscavam enquanto encaravam a porta. Essa aura estava na casa toda, maior que o papai em seus treinos mais difíceis. De repente, ela se concentrou perto da porta.

— Ma-mamãe — O choro chegou, minha voz se recusava a sair. Aquilo podia me pegar. — So-socorro. 

De repente, toda a casa ficou escura como se fosse noite.

Uma mão com os dedos quebrados apareceu na porta e todos meus pelos se eriçaram. Eu só conseguia chorar. Quando senti meus dedos, agarrei com firmeza o cobertor e cobri metade do meu corpo. 

As unhas começaram a rasgar a madeira e os passos pesados que ouvi de madrugada retornaram no telhado. Uma risada estranha e biruta veio do corredor e a mão desapareceu. 

Muito tempo sem ar. Alguém, por favor!

Quando inspirei, no entanto, tudo parou. Com o barulho que eu fiz. As energias que antes estavam apenas ali pareciam estar me olhando. Os segundos seguintes levaram uma eternidade para mim, muito pior que estar na escola ou levando bronca da mamãe.

Eu não queria estar sozinha. Eu não queria estar sozinha.

— Por-por favor — sussurrei. — Vem me ajudar-

— Emyyy Kaaaai — Uma voz irregular e contorcida, como se falasse com uma criança. — Onde você está, Emy!? — Muitas vozes juntas. Socorro, socorro! — Deixa eu ver você. Nós adoramos você. 

Tampei a boca para não gritar e me escondi debaixo do cobertor. Meus olhos encharcados, minha calça encharcada. Eu tô com medo. Eu quero a mamãe, o papai.

O irmão… Por favor, vem me salvar.

Um passo pesado na porta, prendi a respiração de novo. Outro passo. As unhas pareciam rasgar as paredes agora, e a risada maníaca ecoava pelo quarto, adentrando em meus ouvidos em ecos insuportáveis. Fechei os olhos e tampei os ouvidos, meu coração batia muito rápido.

Sem ar não vou aguentar muito- 

— Ssghnn — Não, eu respirei. Nãooo! O som parou de novo. 

Olhei na minúscula brecha do cobertor, quando uma rajada de ar levou meu cobertor e eu vi. Ele estava no teto me encarando fixamente. Os olhos imensos vermelhos e o sorriso de dentes afiados.

Aquelas garras presas ao teto, o corpo preto estranho e todo torto. Eu gritei sem parar, até que minha garganta ardesse. 

— Eeemyyy — Um grito gutural quando ele pulou.

Foi quando eu levantei da cama toda úmida ainda gritando e minha mãe apareceu da porta. 

— Emy, calma! O que aconteceu? — Ela veio desesperada até mim e me abraçou bem forte enquanto afofava meu cabelo. Mas eu não consegui parar de gritar, parar de chorar. 

Continuei olhando para todos os lados agarrada nela, meu coração estava tão acelerado quanto antes. Levei vários minutos para sair desse estado idiota de crise, mas o medo estava cravado em mim. Por nada nesse mundo eu ficaria sozinha de novo.

— Eu-eu vi — funguei. — Eu vi uma criatura aqui. 

Chorando de novo.

— Estamos sozinhas, Emy. Não sinto nenhuma aura aqui. Foi só um pesadelo, você tem dormido muito mal e pouco. Ficou apagada por quase duas horas. 

— Eu vi, mãe! Eu sei que eu vi! Aquela coisa escura e medonha está na casa. Vamos sair daqui agora.

— Vamos revistar ela. Eu e você. Tudo bem?

— Uhm. Tá. Se eu ouvir algo, a gente corre.

Olhamos a casa cômodo a cômodo. Todas as gavetas, armários, as partes debaixo de qualquer mesa. Mamãe até verificou fora da casa, mas não tinha nada. Nem um vestígio daquela aura assustadora.

Talvez — Talvez! — tenha sido um pesadelo. 

Aquilo foi tão real… mas mamãe não erraria em sentir mana. Eu nunca mais iria dormir pouco. A partir de hoje terei ótimas noites de sono. Tudo para evitar aquele pesadelo horrível. 

Mesmo assim… eu sentia algo ruim. Não preso a casa, mas no ar. Andando atrás dela, olhei os corredores vazios, o sofá, a cozinha. Tudo de novo. Por algum motivo, eu ainda me arrepiava. A mesma sensação de quando o lugar estava cheio.

Papai disse que coragem não é não ter medo e sim triunfar sobre ele. Mas eu nunca mais quero ver aquilo. Foi que nem a história de terror que a professora contou sobre uma criatura que ri que pegava crianças malcriadas.

Me arrependi amargamente de ter votado na história de terror naquela noite. Oh, era verdade. Talvez isso tenha me feito ter esse pesadelo e essas sensações. 

De qualquer forma, estive do lado dela até chegar a hora de dormir.

A única coisa que arruinou minha noite, de verdade, foi ouvir aquela risada quando entrei no mundo dos sonhos.



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