Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 4

Capítulo 75: Força de dragão

 

 

Disparei com impulsos de água pelas ruas vazias da cidade até a academia do Alatar, onde me deparei com todos me esperando na porta com suas caras de dúvidas e comentários sarcásticos por eu ter sido o primeiro a sair e o último a chegar.

Fomos recebidos pelas fracas luzes das velas de mana rodeando o tatame e o calor aconchegante da lareira em suas últimas brasas. Alatar conversava com uma mulher que tinha um tom de loiro prateado, partes de uma armadura branca e brilhante e olhos alvacentos. 

Ambos pararam quando nós entramos e nos curvamos na presença da cavaleira real do reino oito, e a mulher calmamente ergueu sua mão e disse que podíamos nos manter de pé.

— Não entendi a situação — Alatar ergueu uma sobrancelha, de certo modo perplexo e indignado ao mesmo tempo. — Comigo não tem essa formalidade toda. Será que errei ao dar confiança?

Irgati abafou uma risada ao olhar de canto para ele.

Estávamos aqui novamente em busca de poder e uma forma, um meio que talvez fosse insuficiente, de continuar. Eventualmente com força e foco seria possível melhorar sem incomodar Alatar, mas a caída de um membro do grupo acelerou esse processo.

Kashi se aproximou dos cavaleiros reais em quatro passos rápidos e colocou as mãos atrás das costas.

— Alatar — Um suspirar. — Eu sou realmente grata por tudo que fez por mim, de verdade — A feição do cavaleiro se tornou mais serena. — Todas as indicações para missões que deu a nós, os ensinamentos e broncas, aquele ferreiro maluco… Mas a gente precisa saber como lidar com isso. Como lidar com eles — Irgati também olhou sério para nós, e Kashi pela primeira vez parecia… nervosa. — Eles têm se tornado um problema cada vez maior, até quase levaram nosso amigo, seu outro aluno. Queremos fazer algo a respeito disso, enfrentar esses caras diretamente. 

— É compreensível que queiram vingar Lumi Kai — Seu olhar real veio a todos nós trazendo uma incomparável autoridade de poder. — E já devem ter pensado que, com seus poderes atuais, não passariam de meros peões contra eles. Mesmo se houvesse uma guerra e fossem bons soldados, vencer um deles se encontra longe do que podem fazer. 

Não pude evitar cerrar os punhos e baixar o olhar. Ele estava certo, nós éramos-

— Mas eu discordo — O quê? — Vocês… Cada um de vocês possui habilidades que, se bem desenvolvidas, podem fazer alguma diferença. Não estou dizendo que é uma garantia, não se enganem. Eu como cavaleiro real tive dificuldades para derrotar as invocações especiais de Letholdus, quem recentemente descobrimos que é de uma classe “comum” entre eles. 

— Letholdus era fraco!? — questionou Alice, furiosa.

— Era, pequena samurai. Assim como Sálazi Gót — Sálazi… Demos tudo contra ele e mesmo assim ele escapou. — Grannus, quem Bruno enfrentou, era um novato de uma classe especial criada através do que chamamos de “energia de outro mundo”. Ainda não há ideias claras do que as relíquias podem fazer, mas se eles pretendem reunir todas é óbvio que tentaremos impedir. O problema, a príncipio, é a ajuda recebida por outros países. Talvez até de um dos reinos que discorda da liderança desaparecida de Gilmour. 

Novamente a histórias dos traidores entre nós. Por que não estou surpreso com essa chatice?

— Eles podem ter mais soldados do que esperamos que tenham, e os “encapuzados” teoricamente se uniram a eles. De quebra para essa situação toda, se teme a volta dos Obscuros após Sangue ter sido visto. A magia proibida é uma ameaça a todo esse país. Algo que eu não compreendo e que não tenho certeza se poderia lidar. Sei que vocês sempre foram fortes. Nirmim, Sander e Amara também. Ellie uma anormalidade, é claro. No entanto, cavaleiros reais e auroras têm chances contra um Ritualista de verdade. Para atingir o nível necessário afim de tentar caçá-los, precisam expandir suas técnicas. 

A lacuna de poder era imensa. Tão imensa que eu me esquecera o quão impossível parecera lutar contra Grannus, Sálazi e Letholdus. Suas técnicas e magia eram tão diferentes.

Eram especializadas ao ponto de terem feitiços poderosos como cartas básicas. Adagas sombrias perfeitas e densas, invocações que rivalizavam com um cavaleiro real e atração. O mais próximo que vi sobre gravidade foi com aquele desgraçado da mascara sorridente.

Alatar suspirou, deixando sua energia mais leve. Irgati cruzou os braços, seu olhar pesado recaiu sobre nós. O grupo estava com toda a atenção nele, aguardando com ansiedade as próximas palavras que estavam por vir. 

Mesmo que pudessem nos tirar a esperança, mesmo que pudessem se aprofundar em nossos corações. 

Até que a água, por um único instante, parou. E pela primeira vez em muito tempo eu me senti desarmado, como se algo bem distante daqui tivesse interrompido e “secado” toda a chuva.

Mas a sensação não durou mais que alguns segundo, e eu me vi novamente na sala com Alatar, a mercer do gotejar próximo a porta e o queimar dos restos de madeira na lareira.

— Precisam ter experiências em lutas — Irgati. — Saber que a dignidade e a honra não vos serão aliadas no campo de batalha. Tortura, desmembramento, espionagem. Há coisas piores do que morrer. A fronteira, conflitos com outros países. Diferente de monstros que nem sequer podem pensar. Pessoas com um único objetivo em mente: mostrar-lhes a dor e buscar informações. Ir ao nível Aurora é mais complexo que avançar nas auras anteriores. É mais difícil ir de Dilúculo a Aurora do que de Sombra a Dilúculo. Estariam dispostos a isso? A buscar minuciosamente o que pode levar suas auras mais próxima a mana deste mundo?

Poucos segundos de reflexão trouxeram milhões de pensamentos, mas ela logo voltou a falar.

— Quanto mais se avança, mais difícil se torna compreender as técnicas específicas que podem ser melhoradas e as que jamais poderão aperfeiçoar. É impossível para muitas pessoas clarear a aura para além do Fulgor. Os inimigos que irão enfrentar esperam que vocês não possam contra eles, que não consigam ultrapassar essa barreira. Claro, o nível Caos é inexplicável, mas, se Alatar estiver correto, — Uma troca de olhares intimidadora. — nesta sala há futuros auroras.

Os trovões chegaram quando a chuva apertou, e nós passamos vários minutos repassando suas palavras. De vez em quando, Alice, Áki e Kashi perguntavam alguma coisa. João permaneceu quieto durante todo esse tempo, seu olhar agora estava tão baixo quanto de quando chegamos. 

Estar em guerra… Ver mortes e continuar lutando, destruição para todo lado, inocentes sendo devastados por ataques que não deixariam seus corpos sequer inteiros para serem enterrados.

Suor? Eu… eu não estou nervoso. 

Um grande clarão surgiu, e entre névoa e fumaça estive com meu corpo frágil e pequeno de frente para meu pai, ensanguentado, sorrindo para mim enquanto me empurrava para longe com sua magia protetora.

— Espera! Eu não quero ir! Pai! — Minha voz era fina. — Por favor!

— Eu te amo, meu filho — A escuridão aparecia. — Queria ter todo o tempo do mundo para vê-lo crescer.

Que porra é-

— … não tenham pressa. — Alatar. — Tenham o tempo necessário para pensar. Irgati não se importaria de ajudar caso estejam determinados.

— Espera, eu-

— É uma decisão sem volta, afinal. Tornar-se alvos, inimigos potenciais. Até seus parentes correriam perigo. 

Alice e Kashi estavam dispostas a aceitar a proposta agora, enquanto João e Aria estavam nervosos com o que ouviram. Áki manteve sua expressão neutra.

— Sei do potencial de cada um, mas não posso deixá-los tomar essa decisão após quase terem perdido um amigo. Vocês lutariam de qualquer jeito, é melhor que seja com preparo.

Aria se pôs a frente e todos nós agradecemos. Irgati deu um soco no braço de Alatar e o chamou de convencido. Apesar dele ter rido, o estalo foi audível. 

Ver eles se tratarem dessa forma em meio a tudo isso deixava longe o pensamento dos lugares onde já estiveram, de onde tiveram que passar para ter uma aura realmente poderosa. 

Áki e Aria iniciaram uma conversa baixa com a cavaleira, enquanto Alice ficou ao lado de Kashi. João ainda estava quieto, apenas observando os lentos passos de Alatar até o boneco de madeira sem braços ou pernas. 

Com as mãos na cintura, estalei a coluna e deixei que todo o ar saísse. Logo me direcionei para o meu amigo e-

Bruno, Brunoo.

Meu olhar foi para a porta, em específico, para as gotas de água na janelinha. Eu senti algo… próximo. Realmente perto.

Forçaaaaaa. Perigoooo. Medooooo.

— … Caminho Branco? — Aria perguntou, e Alatar e Irgati se encararam.

— Encarei uma criatura risonha uma vez — Alatar respondeu indiferente. — Nada como as lendas dizem. Não tenho tanta experiência sobre. 

Os olhares pularam, esperançosos, para Irgati, que pareceu surpresa. Ela franziu as sobrancelhas e mordeu o lábio inferior, como se cogitasse que contar poderia elevar ainda mais a curiosidade alheia sobre o assunto.

— Tudo bem, tudo bem. Eu ouvi algumas histórias perto da fronteira — As meninas se sentaram no tatame próximo a cadeira dela, e um leve vislumbre me mostrou quando eu, Lumi e João ouvíamos as histórias de Kanro Kai em uma fogueira próxima de casa sob o céu estrelado. — Tem criaturas que riem, sim, como pessoas loucas. Agem de forma aleatória. A gente até teoriza que haja uma dungeon especial só para essas coisas sem sentido, onde tem um chefão. Já outras, realmente se parecem com pessoas. Comem como nós, dormem como nós. Mas passar do reino é perigoso demais, precisa ser um grupo composto por cavaleiros reais e auroras para adentrar na fronteira. Um grupo inimigo tentou invadir Elderer pelo lado das montanhas e… — Ela abriu bem os olhos. — Só restaram os ossos.

Um papo frenético se iniciou sobre a situação, onde as meninas absorviam todo o conhecimento que Irgati tinha a oferecer. Por um instante, eu consegui acompanhar as falas, e até mesmo João decidiu participar. Então com a teoria que eu crie-

Venhaaa. Corraaaa.

— Bruno! — Kashi me cutucou. — Se distraindo do nada?

— Eu só — Que caralhos. — preciso descansar.

— Menino sensato — disse Alatar.

Ainda com a mente tão vaga quanto meu olhar sem vida, me despedi de todos. Dando-lhes um leve aperto de mão e a João um abraço sem dizer uma palavra. 

Tocar a maçaneta da porta trouxe o tremor as minhas pernas, agora todo o vento, a chuva e os raios no lugar pareciam negar minha saída daqui. Eles enfatizavam como raízes em minha mente que estar perto dos cavaleiros reais, da aura que emanavam, era o mais seguro a ser feito.

Da última vez que pensei em sair na chuva assim Grannus atacou Lumi.

Não, o castelo estava protegido. 

Puta que pariu.

O primeiro passo fora da sala trouxe o escudo de água circula a mim, e de repente eu podia muito mais sentir do que ver. Novamente analisando com cautela através da água cada canto da cidade, novamente me sentindo um com meu elemento.

E o grande dilúvio de mana me alcançou. 

Uma aura infinita que retratava a silhueta de um imenso dragão. Suas asas, repletas de espinho e caminhos de energias, abertas e prontas para o ataque. Presas maiores que a de qualquer ser que vi em livros, músculos recheados de poder.

Uma quantidade insaciável de energia em seu corpo pronta para explodir e devastar a cidade em chamas esverdeadas sem deixar sequer um rasto. Ainda no mundo plano, eu vi esse monstro destruir todo o chão.

Rachaduras apareceram por todo canto, chamas levaram tudo a cinzas. A fumaça sombria me impedia de vê-lo por completo, mas desde que ele apareceu, eu não consegui respirar. Não conseguira piscar e nem usar mana. 

Apenas sentir gotas de suor tocarem o chão.

Eu estava no radar daqueles olhos verticais ensanguentados repleto de milhares de cicatrizes, uma pressão de aura que circundava o mundo várias e várias vezes. 

As lanças de água brotaram ao meu redor, e o meu elemento… sentiu medo. A água que sempre estivera comigo recuou. 

Era um homem de capuz verde parado sob a chuva, seu manto deixava exposto a adaga negra em sua cintura, encrustada com diamantes e linhas de mana cravadas de modo aleatório e simbólico. O resto de sua roupa era de couro simples, marrom e preto. 

— Acalme-se, rapaz — Uma voz grossa e perspicaz e perigosa. — Sou apenas um cavaleiro real fazendo a ronda pelo lugar.

Não conseguia sentir direito a magia dele. Como assim?

— Desculpe, força do hábito — Aos poucos, eu cedi. 

— Sem problema — Ele sorri, apesar de eu não conseguir ver seu rosto. — Em tempos de hoje, todo cuidado é pouco — Ele ergueu de leve seu capuz, e os olhos vermelhos e profundos fizeram-me tremer. — Se me permite, é um belíssimo e esplêndido poder.

Ele fez um leve beiço e inclinou o corpo. Ele estava fascinado?

O cavaleiro observou a água ao meu redor, analisando cada mínimo movimento, até mesmo as gotas que se acrescentavam a minha magia. 

— Sempre quis ver como era ser abençoado por um elemento — Olhos bem abertos, sorriso grande demais, a mão abaixo do queixo.

O quê!? Você sabe sobre isso? Sobre a benção? — Avancei.

— Você não!? Hahahahaha. Você tem um baita potencial. Do caralho, de verdade — Quem é esse desgraçado? — Adoraria vê-lo em seu auge, daria uma puta de uma luta — Caninos afiados demais. — Imagine o que poderia fazer com toda essa chuva? Com toda a água dos oceanos!? Hahahaha — Ele se abraçou. — Não consigo nem falar sem me arrepiar. 

— Como sabe sobre isso!? Me fale agora!

— Seria tão pouco interessante eu apenas lhe contar — Ele lambeu os lábios, sua aura começou a rachar passivamente o chão. — Por que não me mostra um pouco do que pode fazer? — Não tinha brecha, esse cara era intocável. — Quero ver um pouco do que é possível fazer quando se é Agraciado pelo Dom. 

— Filho da puta! Você é mesmo um cavaleiro real? — deixei que toda minha aura saísse, rasgando o chão de volta. A água do lugar começou a nos cercar quando rangi os dentes e cerrei os olhos, tomando minha pose de luta. — Vem, seu desgraçado!

Ele era uma barreira de poder sem fim. Era impossível olhar para ele e não ver essa… essa aura de mil metros atrás dele. E mesmo assim ela ainda parecia tão incompleta.

Posicionei meus punhos, mas o calor de trás me parou junto a moca em minha cabeça. Áki me puxou pela gola da blusa enquanto gritava no meu ouvido um monte.

— … e Alice disse que você tem que descansar, idiota! Vai tirar briga com um cavaleiro real agora? — Ela olhou para ele. — Eu sinto muito, senhor. Por favor, perdoe esse estúpido. Ele não está em um bom momento.

— Não esquenta — A aura… Cadê a porra da aura? — Ele tá meio maluco da cabeça, cuide dele — Ele se virou acenando em despedida. — Espero te encontrar de novo, usuário da água, quando nos igualarmos em poder.

— Esp-

— O que você pensa que está fazendo em enfrentar um cavaleiro real, Bruno!? — Kashi deixou meu outro ouvido surdo. 

— Ele podia me dar respostas!

— O que fosse para ter hoje, Alatar já nos disse. Está na hora de ir. 

Uma breve olhada para o caminho que ele seguiu. O sujeito desapareceu.

— Vocês notaram a aura dele? Era a maior que eu já vi na vida.

Elas me olharam, confusas. Até Irgati e Alatar me estranharam de dentro. 

— Só sentimos o seu poder, Bruno — disse Alice ao colocar a mão em meu ombro. — Ele não usou o dele. 

 



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