Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 4

Capítulo 73: Mar de mana

Fortes águas caíam dos céus sem parar, as janelas do cômodo balançavam vividamente como se alguém quisesse entrar a força, e o frio neste quarto, nesta maldita sala hospitalar, habitava em mim, atravessando toda a roupa grossa que vesti. 

O livro estava na mesa desde a noite passada. Disseram que ele jamais acordaria, mas eu… Não podia ser verdade. Ele lutou demais para parar aqui. Um trovão iluminou toda a sala escura e, por um momento, toda a energia ruim pareceu ter ido embora.

Mas não fora.

Desmaiado sobre a cama, mortalmente ferido, estava o meu amigo de infância. Seu respirar era tão fraco que me lembrava constantemente que ele jamais iria acordar. 

Ele não merecia nada disso, se esforçou muito mais do que qualquer um de nós. Um potencial absurdo, poderia ter se tornado um guerreiro incrí-

Não, não pense assim, idiota! Ele vai acordar!

Destruído por um desconhecido… Minhas mãos arderam quando rasguei minha carne com as unhas, quando deixei as lágrimas correrem livremente pelo meu rosto. Eu queria ter estado lá, queria ter o protegido do que quer que o atacou. 

Eu estaria em seu lugar, Lumi! Eu estaria sim!

Não consegui te proteger a tempo de Grannus porque fui incapaz de confrontar Sálazi. Eu queria me tornar forte o suficiente para te proteger, para esmagar todos que te machucaram. 

— Por que você!? Só um menino sem magia… Por que!? Hein!? 

As lágrimas não paravam de descer. Apenas joguei outro cobertor por cima dele. 

— Sei que gosta de dormir com dois — Sentei ao seu lado. — Na missão de Alatar, você foi sensacional. Aquela katana… sempre quis te perguntar sobre ela, sabe? Na verdade, eu queria ter te visto mais. Você passou a voar por aí depois que iniciou esse mundo de missões. Lembra quando começou a gostar da Ellie? Você era literalmente um maior bundão.

Tirei do bolso outro livro raro, onde contava sobre desvios de feitiços, e pus sob a mesa.

— Tinham aqueles valentões idiotas que implicavam com a gente na fazenda — Uma risada. — E quando a gente comemorou seus vestígios de mana, que na verdade não era nada. João sentiu ciúmes de você naquela época. E então chegou o teste para guarda na cidade de Karin, onde você impressionou até a Ellie, que não prestava atenção em mais nada, com aquelas esquivas inexplicáveis. Ninguém era melhor que você nisso. Eu…

Estava tudo embaçado demais…

— Eu prometo que vou me superar e derrubar aqueles Ritualistas. Você trate de acordar. Ouviu!? — Minha voz… — Levante e me veja, me parabenize, cumprir a promessa. 

Demorei a limpar o rosto quando sai da sala, quando voltei ao frio corredor do hospital. Ajeitei razoavelmente a gola do meu casaco de couro preto e passei por algumas enfermeiras. Abri com força as portas do lugar, e fortes ventos e muita chuva me receberam. Uma enorme tempestade…

Como no dia em que perdi para Sálazi Gót.

Mordi minha mandíbula com força, aquele filho da puta desgraçado me distraiu para Grannus eliminar o Lumi. Conforme andava pelas ruas, toda a água do lugar começava a me circular, a tentar me proteger de alguma forma. 

Não entendia o porquê do apelido Agraciado pelo Dom, ou como ele sabia disso, mas com a água me protegendo eu podia matar lentamente o máscarado sorridente. 

Próximo a uma simples árvore, que balançava junto ao assobiar do vento, lancei um corte lateral mágico com a água do lugar enquanto deixei um grito gutural surgir.

Era meu amigo, meu irmão! Eu não estive lá para ajudá-lo!

O tronco virou pouco menos que meros pedaços inúteis, parte do asfalto fora destruída com a extensão do ataque. No entanto, a raiva irradiava em meu coração quando vi a árvore cair. Continuei golpeando com socos, chutes e cortes mágicos.

Mas essa raiva nunca passava, eu nem sequer me machucava. Eu não aceitaria que ele simplesmente não acordasse mais. Porra, droga. 

Até que os trovões vieram, e um enorme relâmpago clareou toda a cidade. Quando me posicionei para atacar novamente, um olhar afiado trouxe um arrepio a minha espinha. 

Ofegante e sem tentar impedir o ódio no meu olhar, deixei minha pressão de aura se espalhar, confrontrar quem quer que fosse o idiota que quisesse me interromper em um momento como esse. 

Mas a presenta continuou ali.

Seu cabelo encharcado colado em seu rosto, seus olhos vermelhos tão afiados quanto a mais perigosa das espadas, sua lâmina curvada presa a cintura. Sua aura permanecia inabalável, meu poder evitou chegar perto da área de alcance dela.

— Se afaste daqui — Mantive contato com seus olhos. — Não há o que fazer, quero estar só.

— Está fora de si — Um passo. — Extravasar em árvore não ajudará você.

Eu só… comecei a rir. 

— Acha que é capaz de me acertar, Alice? — A água, aos poucos, criava uma armadura em mim. — Não vê que há água em todo lugar!? Eu sou invencível agora — A menina puxou a espada, e foices elementares surgiram ao meu redor. — Não vá se arrepender depois.

A chuva apertou conforme os trovões ficaram mais altos, mas aqueles olhos vermelhos… Era uma calma irradiante no meio de todo esse cenário caótico. Nenhuma expressão, nenhum arrepio. Ela mantinha aquele rosto frio. 

Ela estava realmente calma ao me enfrentar!? Quem ela pensa que é!?

Eu não vou sentir medo agora, porra.

— Vou fazê-lo se acalmar — Ela se posicionou. — Depois disso, talvez possamos conversar.

Lancei-a um grande grito quando enviei as foices de água de várias direções. Uma linha vermelha, então, desenhou no ar, desfazendo-as, cortando-as em mínimos pedaços. 

Alice veio como um raio, conseguindo adentrar em minha proteção extensa de água. 

Não tive tempo de arregalar os olhos quando sua espada atingiu meu estômago. Como? Como ela fez isso? Se não fosse a água me protegendo…

— Não sente medo de morrer!? — gritei quando segurei seu pescoço, apesar do olhar da menina nunca perder a calma a aura dela finalmente se agitou. — Você não entende como eu estou — Lágrimas? Não, era a chuva. — E nunca vai entende-

Apertei o pescoço dela com mais força do que desejava e um chute no tríceps desestabilizou meu braço. Alice colocou os pés no chão e segurou meu punho, girando-me no ar e colando minhas costas no chão antes que a água pudesse reagir.

Uma pequena cratera foi feita enquanto toda a água ao redor se desfazia, meu poder me abandonava sempre que não via motivação para lutar. Mas eu queria acabar com ela!

Alice ficou entre mim e a chuva, e eu finalmente aceitei que as lágrimas ainda escapavam do meu rosto. A raiva estava se esvaindo, e a aquela dor no peito voltava… Seu cabelo molhado estava próximo ao meu rosto, e um pequeno sinal de tristeza surgiu nos olhos da garota.

— Eu sei como se sente — Uma voz suave… — Vamos sair da chuva.

Alice me levantou com cautela e passou meu braço por entre seus ombros. Meu olhar vago encontrou o chão e permaneceu ali. 

Eu falhei em proteger o Lumi, eu falhei…

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Vagar pelo castelo sete nunca foi tão sem sentido. Nem toda essa roupa tirava o frio do coração. Alice resolveu ficar por aqui e foi tomar um banho e minha mãe estava ocupada com o Rei Lotier. 

Alice… Alice estava bela na chuva. 

Eu queria ver Amice e Kanro, queria consolar Emy por estar sem o seu irmão. Eram outros pais para mim, uma irmã que eu nunca tive. A dor é semelhante de quando meu pai foi morto pelo desgraçado Sangue de Luz, achavam que podiam tudo.

Eu era tão fraco que nem pude lutar. Eu quero destruir todo esse sistema.

Algumas batidas da porta e João entrou cabisbaixo. Em passos mais lentos que seu natural, ele se aproximou, e eu lhe dei um abraço apertado, firme. 

— Eu sentia falta de quando não conhecia o mal — Sua voz nunca fora tão baixa. — Quando o mundo era só chamar vocês para brincar.

Ele se sentou, e o silêncio chegou junto com seu lacrimejar. Poucos minutos de silêncio pareceram horas.

— Ele não merecia isso. Ele avançou mais rápido que qualquer um. Era inegável que tinham inveja dele, chegaram a achar que o poder dele era falso! — Uma risada estranha. — Cadê a justiça contra esses Ritualistas? Claro que foi um deles! Lumi era forte! Forte o suficiente para ter sobrevivido várias vezes!

Pude sentir o poder de João se agitar quando ele se levantou. Ele andou com pressa até a janela, e a porta do banheiro se abriu. Alice surgiu com o cabelo ainda molhada em cima da toalha branca em seu pescoço e uma blusa preta acompanhada de uma calça legging. 

A encarei por um momento, logo meu olhar desceu aos seus seios e depois para a-

— Bruno.

Rapidamente virei o rosto para o lado. Meu coração estava três vezes mais acelerado e meu rosto ardia. Por que eu pensei isso!? Alice era atraente em várias aspectos, mas ter seus lábios nos meus era realmente importante agora, Bruno Lewis? 

João cumprimentou Alice e ela apenas acenou de leve. Perto de João, pude ver a chuva mais e mais forte, os ventos levavam tudo o que podiam pelas ruas. Um tempo incontrolável e perigoso, como…

— Como naquela vez. Sálazi ainda venceria de nós — Cerrei os punhos. — Ele brincou com o grupo todo, essa lacuna de poder que ainda existe entre nós e eles… E há vários deles por aí, João. Como podemos vingar Lumi?

— Preciso tomar um ar — Então ele pôs a mão em meu ombro, e depois eu só ouvi a porta bater.

Continuei encarando a janela. A água tentava me alcançar. De certa forma, eu sentia que ele queria me proteger, me consolar. Eu poderia de alguma forma controlar todo esse temporal e usar como fonte de poder? Com isso… eu teria energia para lutar por dias!

Até que Alice veio ao meu lado.

— Obrigado por antes. Me salvou de fazer algo pior.

— Disponha, Bruno Lewis. Não consegui pensar em um cenário positivo depois que você visitasse ele.

— E me desculpe por ter segurado o seu pescoço, eu estava-

— Foi a primeira e última vez que o fez. Não terá essa chance novamente.

A olhei.

— Creio que em luta eu conseguiria, sim — Acelerou de novo. Por que ela se aproximou?

— Não, Bruno, não conseguiria.

Era demais para que eu pudesse evitar o volume em minha calça. Nossos lábios estavam próximos, nossos olhos grudados um no outro. Alice deu um passo a frente e me puxou pelos braços, me devorando em um beijo de lingua intenso.

Envolvi minhas mãos em sua cintura e desci para suas coxas — como eu queria segurar aqui — e a levantei. Ela alisou meu pescoço sem parar de me beijar e puxou de leve meu cabelo pela nuca. 

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A exaustão me alcançou de uma forma que eu nunca imaginei, até mesmo os músculos da minha perna não queriam trabalhar. Nossos passos eram o único som presente conforme andávamos pelo castelo vazio e gelado, e eu estava com vergonha para dizer qualquer coisa.

Chegamos ao refeitório, onde o grupo devia estar. João estava de cabeça baixa recebendo um cafuné de Kashi. Aria e Áki conversavam baixo do outro lado da mesa. 

Eu preferiria quando elas davam muitas risadas enquanto brigavam, ou lutavam… Qualquer coisa, menos isso.

Aria foi a primeira a me ver, e logo correu para mim. Demos um abraço apertado e Áki veio em seguida, apenas colocando a mão em meu ombro.

Após cumprimentarem Alice, o silêncio recaiu. 

E aquela dor voltou.

— Devemos procurar Alatar — disse Kashi, seus olhos amarelos analisando cada uma que a olhara. — Todos queremos fazer algo — Ela se pôs de pé e me encarou. — Lumi era incrível com sua força, não perdeu para qualquer adversário. 

Minha garganta secou de novo.

— Um único deles venceu todos nós. 

Ritualistas, Sangues de Luz… Cada vez mais querem tirar minha mãe do jogo, de seu cargo de rainha. Eu precisava ser forte o suficiente para proteger ela, mas que chance eu teria?

Fechei os olhos ao imaginar toda a derrota que eu sofreria com meu poder atual. Dilúculo? Para quê? Eu seria um mero peão em uma guerra. 

— Se Lumi lutou até o fim — Ódio transbordava da voz de Kashi. — Eu irei vingá-lo. Não importa quem seja.

— Não devemos ter pressa — disse Alice ao sentar, fumaça quente fluia de sua xícara. — Seríamos um peso para Alatar. Um Ritualista de verdade, um que realmente faz parte do propósito deles, ainda é muito mais poderoso do que qualquer um de nós. Alguns de nós estiveram da missão em Endvi. As invocações de Letholdus confrontaram o nível real, além da esfera de chamas enormes que Lumi e Ellie tentaram segurar com aquela katana — A encarada de Alice fez Kashi virar o rosto. — Nem todos juntos, nem com Ellie.

— Ela pode querer o mesmo — argumentou Aria. — Mas teria uma estratégia para tal… — Seus olhos vieram a mim, esperançosos e ao mesmo tempo vazios. — Você disse que vencer Grannus era impossível, mas conseguiu salvar Lumi. E se considerarmos que Sálazi era apenas um lacaio fraco-

— Minhas flechas eram inefetivas contra ele — interrompeu Áki, enfurecida. — Não temos quase nenhuma informação de como vencer esses caras ou o que eles realmente querem, mas não podemos negar que tentaram matar nosso amigo mais de uma vez.

Um pequeno choque em todos nós, apenas a água da chuva podia ser ouvida. Então ele realmente estava no meio de tudo isso? Ele nem tinha magia. Como? 

— Outra tentativa de matá-lo — Alice. — Ritualistas e Encapuzados não costumam falhar na caça aos seus alvos. Lumi pode não ter recebido a prioridade necessária afim de ser morto por um grupo deles, considerando sua forma imensamente inferior não era nem preciso. Mas Grannus, Sálazi Gót, um Laiky em Karin e o ataque de goblins. Talvez haja uma discórdia entre eles. Um lado que o quer vivo… E um lado que o quer morto.

Uma discórdia entre eles? 

— Ele já estava nesse jogo doentio mesmo sem querer — João. — Não pretendo deixá-lo sozinho, ele não… — Ele cerrou os dentes, as veias saltavam em sua testa. — Nunca mais poderá lutar ou usar magia.

A água voltou a tentar me buscar, eu a ouvia. Ela queria me acompanhar, queria fazer alguém sofrer. Raios e trovões irradiavam no céu, e eu só consegui me ver no controle de toda essa tempestade.

— Não tem nenhum motivo para Lumi ser morto — Áki. — Ele é como nós, era até muito mais fraco. Qual seria o contraponto para quererem ele vivo contra os que não querem? Eles têm a porra de um Laiky, relíquias e talvez o reino de Balnor a favor. Matar um menino de dezessete anos beneficiaria em que? — Ela riu para si mesma, como se nada fizesse sentido. — O que eles querem, afinal? Colecionar relíquias mortas para enfeitar a merda da casinha deles?

— Tem uma pessoa a quem vale a pena tentar conversar — Os olhares vieram a mim. — O representante do rei dez, o suspeito de ter atividades relacionadas aos Ritualistas. 

— Eu ouvi um boato ou outro, mas um reino? Corrompido? Essas informações não deviam-

— Deviam — Interrompi Kashi. — Alud Enguerrand não está sã há algum tempo. Lotier sempre esteve certo em relação a isso. Miguel se tornou muito diferente quando sua aura recebeu a tonalidade escura, a mesma que vi em Grannus. 

— Miguel não nos ouviria — disse Alice. — Ele é arrogante como um Sangue de Luz. 

— É, de fato — Puxei um pedaço de papel do meu casaco. — Mas acima disso, minha suspeita é essa.

Quando coloquei-o na mesa, todos arregalaram os olhos. 

— Os Obscuros sumiram, Bruno — João. — Depois da destruição da cidadela. 

— Sangue — Alice falou soltando o ar lentamente pela boca. — Aquele que pode usar a magia proibida. Esse desgraçado esteve em meu país — Sua aura vermelha levantou a ponta de seus cabelos. — Por que ele?

Deixando uma risada estranha escapar, eu falei: 

— O que mais em toda a história poderia deixar o maior grupo terrorista com tanto medo a ponto de comprar guerra contra os dez reinos? Lumi me disse ter vista uma mascarada verde quando estava no hospital. Ele pode ser louco, mas não é como se ele tivesse alucinações toda vez que vai para o hospital. Fora que — Olhares de dúvidas. — Sairon Watanabe, Dilúculo de Tera, alegou ter visto ele — Apontei para o papel. — em posse de uma flauta dourada na alrofy dos monstros!

Um longo momento de silêncio até que eu finalmente falasse.

— Sim, é o que eu quero dizer. Agora — Puxei todo o ar que pude. — Minha mãe tem uma suspeita que faz ainda menos sentido.

— O que poderia ser menos coerente que essa sua ideia, amigo? 

— Você já ouviu falar sobre o Caminho Branco?





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