Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 4

Capítulo 72: Entre lágrimas

Toda a magia devia estar circulando em mim, Fent e Brigitte. Se usamos cem por cento de poder para ir a Fortaleza, utilizamos duzentos para retornar ao reino de Alyssa. 

Os verifiquei incontáveis vezes enquanto os aquecia com minha mana, mantendo com meu suor uma temperatura que os mantivessem bem. Os restos de roupas e cobertores não eram páreos para a neve, mas eles iam conseguir. 

Eles precisavam. 

A viagem de volta levou três dias inteiros, os quais busquei os caminhos mais rápidos, os mais perigosos. Não importava se eu teria que lutar, quantos eu teria que deter. O risco, a situação atual deles, era minha culpa. 

Spectro retornou para Lumi depois de algumas horas desacordado, eu apenas desejei que, de alguma forma inexplicável, ele sobrevivesse. 

Droga, merda!

Como eu errei ao considerar a missão como um todo? Os mandei para a derrota certa, Lumi nunca mais poderá lutar por culpa minha! Ele era muito mais que um representante e… 

E agora está sob meus braços a beira da morte, sem um olho e uma perna. Com todos os incontáveis ferimentos e fraturas pelo corpo, seria um milagre se ele conseguisse viver sem dor…

Os monstros infelizes morriam com meus gritos e ataques. Caíam despedaçados, trucidados. Um segundo. Não perderei um desgraçado segundo. Nem as montanhas estreitas e traiçoeiras puderam retardar nossa velocidade.

Nossa chegada ao reino trouxe toda a atenção para os portões, era impossível tentar desviar qualquer olhar dos guardas e do povo. 

No meio da multidão, simplesmente caminhamos. A rainha Alyssa me recebeu no portão de seu castelo, seus olhos encheram de lágrimas quando mostrei o menino em minhas mãos. 

Curandeiros, farmacêuticos, magos, guerreiros. Todos corriam para lá e para cá desesperados conforme a rainha ordenava. Em um instante, a segurança dobrou, Lumi e o grupo foram tirados de mim e de Fent e Brigitte. 

Ainda desacordados, ferimentos expostos em carne viva, ossos amostra… Podiam ser os melhores curandeiros do reino, mas o desconforto não iria me largar tão cedo. 

Às pressas nós fomos a uma das salas mais seguras, todo o som ensurdecedor estava parando. Mas era indiferente. O que eu faria se um deles não saísse vivo dessa?

Eu não fui machucado o suficiente para ficar parado, não demoraram muito a me cobrirem com alguns remédios e pomadas. 

Em nenhum momento eu me senti apto o suficiente para suspirar com calma, para me deitar e fechar os olhos até que todo o sono acumulado me levasse para longe desse caos que fazia minhas mãos formigarem. 

Pouco depois dos curandeiros dizerem algo sobre descanso necessário, eu corri para o corredor onde jaziam as salas de Lumi, Katsuo, Elliot, Anny e Winnie. 

Guardas com armaduras que mostravam apenas seus olhos apontaram suas lanças para mim, mas as abaixaram quando se deram conta de quem eu era e se curvaram. 

Ignorei-os, o peso em meus ombros cresceu… não me perdoaria se saísse daqui e os deixasse desprotegidos. Eu os mandei para lá. Eu os mandei. O melhor grupo que eu tinha perdeu, a relíquia fora roubada e a Fortaleza, capaz de suportar ataques de incontáveis seres, destruída. 

Mas o que caralhos era aquela criatura e por que estava ali? Não, não podia ser da Fronteira.

Ou eu só não queria acreditar nisso. Nada daquele lugar devia fugir para cá…

Aerin me acolheu quando eu era fraco, quando eu era incapaz de defender a quem eu amava… Lumi era como eu, mas com um imenso potencial. Ele podia ser incrível- Não, ele já era incrível. 

E talvez nunca mais possa lutar por minha causa.

Brigitte e Fent estavam bem o suficiente para ficar de pé depois de todo o caminho, preocupação forte em seus rostos quando me encontraram em frente a sala de Lumi. As horas seguintes pareceram dias enquanto tentavam — sem parar — mantê-los vivos. 

Não tive estômago para degustar de nada. Nem ao menos tomar qualquer líquido. Rezei para que sobrevivessem e pudessem ter boas vidas depois disso, mas um pesar sempre me alcançava quando um Ritualista irradiava em minha mente.

Quando o Obscuro de máscara laranja atracava em minhas lembranças.

 

Dez longas horas finalmente se passaram. 

Winnie levaria dias para sair da cama, mas conseguiram cuidar de seu ferimento, deixando uma imensa cicatriz no lugar. Era o suficiente, ela iria ver mais um dia

Katsuo tinha boas chances de se recuperar, o homem sempre foi um dos mais duros e persistentes que eu já conheci. Não me impressionaria se ele acordasse hoje e fosse verificar os outros do grupo. 

Anny, segundos os curandeiros, fora surrada várias vezes, espancada até alguns de seus ossos quebrarem. Era inacreditável que ela ainda estava viva e com chances de voltar ao normal algum dia.

Elliot… Sua perna se fora de vez. Mantê-lo vivo fora complicado. Ele era um jovem promissor com capacidade de dominar o metal. Depois que saiu de seu vilarejo, aumentou suas habilidades em um ritmo superior aos outros do mesmo nível de Aura. 

Sei que vai sair dessa.

Alyssa passou ao meu lado, sua mão escorreu sobre meu ombro, e entrou na sala de Lumi. Infelizmente eu não consegui dar o passo, não consegui acompanhá-la. 

Eu estraguei a vida dele. 

Até que um grupo veio do corredor, e uma mulher de cabelos ruivos passou por mim. Kanro Kai congelou ao meu lado, seus olhos estavam bem abertos, seu queixo baixo. 

A aura dele estava agitada, incerta, insegura. Trocamos um rápido olhar e o ar pesado da sala finalmente nos atingiu — me atingiu. 

Dos três curandeiros que estavam na sala apenas um ficou. Amice ajoelhou próximo ao Lumi e desabou em choro, suas mãos seguravam a mão pálida do guerreiro caído. Kanro ainda estava paralisado do meu lado, algumas lágrimas escapavam. Ele parecia não se importar com isso; ou não perceber. 

Alyssa finalmente se deixou chorar.

Longos minutos se passaram. Kanro consolou Amice durante todo o tempo, e Alyssa se aproximou de mim. As palavras se enroscaram em minha garganta. O peso do silêncio era pior do que qualquer monstro que já enfrentei. Pior do que desafiar um superior ou estar próximo da morte. O representante estava ali, todo enfaixado.

Por minha causa.

A dor de uma mãe ao perder sua criança, perder quem cuidou e pretendia amar até o último dia de sua vida. Ver uma vida partir nunca fora simples, mas isso… Eu não podia-

— Ele… — sussurrou Amice, ainda com a cabeça abaixada. — vai acordar?

— Majestades — Ele olhou para Alyssa e para mim, logo para Kanro e, por fim, Amice. — Ele teve muitos danos nos músculos e rachaduras nos ossos que considero impossível sua reabilitação total — Um baque, um choque. — Mesmo com tratamento especializado, magia ou exercício, ele jamais terá metade do poder que um dia já teve. As cicatrizes são grandes e notáveis, tudo que conseguimos fazer por sua visão direita foi restaurar o mínimo do olho para aparência. A perna direita destruída foi outro grande empecilho que tivemos para mantê-lo vivo. Graças aos esforços de Lotier e seu grupo, conseguimos mantê-lo vivo. Mas acordá-lo… — Um murro, Uma lâmina atravessando meu coração seria muito mais fácil de resistir. — Ele se forçou tanto magicamente, que nem sua aura será a mesma. Sem feitiços, sem lutar. Essa vida acabou para ele.

Amice pôs as mãos na boca, as lágrimas não paravam de escapar. Isso era como… morrer. Eu nunca deveria tê-lo enviado! Porra, porra! Ele e o grupo não mereciam nada disso. 

Quem foi o desgraçado? A morte dele levaria muito tempo em minhas mãos. Desgraçado! 

Amice desabou em choro de novo. Meus olhos apenas arderam, a dor de perder um filho era algo muito além do que eu já sofri, muito além de entrar em uma luta a qual não sabia que voltaria vivo. 

Kanro se ajoelhou ao lado dela, a envolvendo em um abraço lateral. Quanto mais tempo passava, mais a dor crescia. Alyssa nunca esteve com um rosto pior. Nenhuma autoridade ou raiva, só… tristeza.

Seus olhos fechados, deitado sobre a cama. 

— A previsão é de que ele nunca acorde — disse o médico. — Não sabemos como ele ainda está vivo. A primeira semana será como uma guerra que definirá se ele permanece ou… — A sala parecia escura. Sem vida. — A teoria é que Lumi teve a aura danificada pelo excesso de esforço. A esfera de Lu’ir detectou um nível de aura Dilúculo, mas é algo muito complexo para analisarmos. Pode conter rachaduras que o impeça de usar qualquer magia novamente. O maior milagre, no entanto, é sua vida. 

Ele alcançou o nível Dilúculo, pensei entre choro, entre minhas próprias lágrimas fugitivas. 

— Farei de tudo para que ele continue vivo — O curandeiro se curvou e saiu da sala.

Após muitos minutos, Amice se ergueu. Seu olhar vazio e profundo me encontrou. Desviei o olhar de primeira, encarar ela era como uma-

— Saia. — Um gelo no meu corpo. 

— Amice, peço perdã-

— Saia! — Cerrei os dentes. Ela tinha razão. — Saia! Saia! Saia! 

Fent me aguardava fora da sala, mas apenas dei um vago olhar e passei por meu amigo. Não demorei muito até chegar as escadas, o eco dos meus passos era minha única companhia nessa merda de situação. 

A única que eu merecia ter. Minha cabeça latejava, mas do que importava? Nós perdemos muito nesta batalha, não poderíamos lidar com uma guerra. 

Os fortes ventos atingiram-me com força quando alcancei o topo do castelo, meus cabelos voaram para trás, meu manto voou como um pedaço de folha qualquer. Era alto o suficiente para ver além das montanhas, além das fronteiras do reino sete. 

As nuvens carregadas distantes, a cidade a qual devia ser protegida. Mas o que eram esses muros perto do que derrubou o Lumi? Tamanho poder tornava todo este lugar uma simples casa de madeira que, com um pouco da força deles, cairia no primeiro ataque. 

Um reino todo a proteger, a paz devo manter.

Era impossível, a guerra a qualquer momento ia chegar. Tínhamos péssimas relações com outros países devido a nosso histórico de ataque e dominação. 

Ritualista junto dos encapuzados, um Laiky falante que podia estar em qualquer lugar dos dez reinos, ataques de monstros longe de alrofys e dungeons… Sem o líder, sem Gilmour.

Um passo atrás, uma garrafa de rum jogada em meus braços.

— Eles precisam de um tempo, Lot — Rainha Alyssa. Um longo silêncio veio em seguida. — Você não tinha intenções ruins com ele, todos sabiam disso. Mesmo quem não o conhecia. — Arremessei a tampa longe e bebi o máximo que pude. Alyssa fez o mesmo. — Você não pediu por este cargo, e ainda assim lidou da maneira como foi possível. 

— Talvez seja o que mais tenhamos em comum — Meu olhar apenas vagava de morro em morro, de nuvem em nuvem. — O foco deles não é nos derrubar. Acredito que não seja derrubar nenhum de nós — Alyssa sentou ao meu lado, confusa, e tomou outro gole. — Com o poder de ataque que usaram na Fortaleza, e a instabilidade dos reinos, podiam manipular Balnor e fazer frente a um ataque, mas não o fazem. Estamos separados, nossas prioridades nunca foram tão diferentes — Bebi metade da garrafa. — Gilmour não aparece há quase dois anos, e Lumi parece ser um tipo de impedimento para o objetivo do líder dos Ritualistas. Ou parecia ser. E ainda parece que, ao mesmo tempo, ele não era uma prioridade.

Acabei com a garrafa, e Alyssa me lançou mais uma.

— Tentaram matar ele algumas vezes, Arvid investigou para mim desde o incidente do goblin, em Karin. Bruno o salvou uma vez de um tal de Grannus. Ele disse ter ouvido algo como o epílogo ser naquele dia com a morte de Lumi Kai. Se o fim dele encerra algo… — Cerrei meus olhos ao ver Alyssa falar. — Em todos os lugares que Lumi foi atacado o nível de perigo aumentou. Precisei proibir a passagem do comércio em alguns deles. Manipular monstros e um lugar inteiro… Não é possível, é? Eu só vi isso nos Contos de Lu’ir, um livro que dei para ele em uma das vezes que visitou a enfermaria. Um homem de luz, salvador contra um ser fora desse mundo — Ela bebeu a garrafa inteira. — O livro parece bobo, mas se fosse real, se existisse mesmo outras magias que não podemos compreender? 

Ela bebeu outra garrafa e bocejou.

— Eu queria entender um pouco mais das escrituras antigas. Sabe, Lu’ir foi um salvador, tinha uma imagem que parecia uma mulher com asas e- — Um soluço. — Humanos não sentiam a magia de pura luz, até achei que esse fosse o motivo de não entendermos as relíquias — Ela riu enquanto tomou outro gole. Mas nunca vi um bêbado formular frases tão úteis como estas.

Balnor teve atividades com o inimigo e Trea conseguia usar vestígios de luz. Eles tinham conhecimento e entenderam parte das escrituras antigas que levaram de mim! Mas nada justificava o fato de ser luz, para mim e os outros eram apenas pedras referentes a tecnologia. Não era possível entender tudo com apenas as cinco escrituras que levaram, precisariam ao menos ter mais alguns que indicassem o que fazer e o que significava os símbolos isolados. 

— As relíquias podem sim ser de outro ramo da magia, Alyssa! — Virei rápido para ela. — Ele pode querer trazer esse ser para cá. E se as relíquias fossem uma espécie de âncoras!? Eles podem ter as adaptado de um jeito que conseguissem usar com sua própria mana, semelhante a uma combinação. Grannus é conhecido por sua mana de aspecto sólido e bruto, e os Obscuros usam a magia de forma única! — Ela soluçou, olhando-me confusa. — O objetivo dele não nos envolve porque não sabemos como-

— Lotier — disse ela, apoiando a mão em meu ombro. — Considerar tudo isso é como aceitar a existência daquele que sorri — Ela deu uma risada medonha e bebeu. — Não é? — Antes do medo me atingir com força, eu bebi o mais veloz que pude. Assim as coisas faziam mais sentido. — Considerar que o Caminho Branco é real, hahaha.

— Eis a questão, Rainha Alyssa — Meu tom… Droga de rum. Por que acabaste? — Toma — Entreguei um pequeno desenho a ela, e sua seriedade voltou como um raio atingindo o chão, levando consigo um medo surreal. — Foi a última coisa que minha visão me trouxe, como posso negar estar ficando louco assim?

 



Comentários