Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 4

Capítulo 71: Brasas na escuridão



A maioria dos corpos estavam semi congelados, cobertos de moscas e vermes nas regiões expostas. O medo ficara estampado em seus rostos até após a morte, suas mãos para cima em rendição. Eram vidas de soldados e magos que eu mesmo enviei para cá, cuja proposta eu lancei às suas famílias; a quem um dia eu disse que iriam retornar. 

Maravilhados por serem escolhidos por um rei, estar na Fortaleza era uma experiência única para diversos níveis de pessoas. 

Mas aqui estavam, seus sangues secos sob meus pés. 

Uma brisa solitária agitou meus fios e minha capa, o silêncio perante a neblina se alastrara por todo o campo, preenchendo o vazio que eu não sentia há tempo. Desde que cogitei rejeitar ser rei, mesmo que isso trouxesse minha própria morte. 

Monstros e humanos massacrados com mordidas grandes em partes aleatórias do corpo, o mesmo padrão de tamanho e dentes. Não havia um monstro tão forte a ponto de derrotar todos da Fortaleza e do ambiente. Dificilmente um nível alto poderia sozinho. 

Talvez o lugar tenha mudado, talvez um deles tenha vindo de fato. 

Um buraco no muro, uma barreira de mana rachada. Como um monstro seria capaz de atravessar isso? Não era para ser possível, haviam tantos feitiços de defesa ali… 

Um calafrio, um tremer. Eu já não tinha mais certeza se podia vencer o que entrara lá; o que talvez matara meu grupo e representante. Um pequeno acúmulo de mana chegou aos meus olhos, minha aura liberou uma circulação preparada para um feitiço. 

Fechando os olhos, consegui ouvir os gritos, senti em meu coração o terror dos que lutavam na vanguarda. Aos poucos, minha mente ia para outro plano, para o feitiço em que eu falhara miseravelmente em compreender. Deixei que o poder fluísse, minha consciência já não estava mais em meu corpo. 

— Recuem! — gritou o indivíduo cuja minha mente foi parar. A visão estava escurecida ao acessar essa última lembrança, mas eu podia ver claramente uma silhueta gigante destruindo tudo com suas garras; seus rosnados assombrosos. — Ele vai entrar! Preparem-se para bombardear o puto com tudo que vocês, trasgos, tem!

Um grito de guerra de todos que “eu” comandava, porém o tremor nos joelhos e o coração acelerado não me passavam confiança.

A criatura segurou a silhueta de um monstro grande e o rasgou em dois, todos seus órgãos caíram sobre outros guerreiros. Abrindo a boca mais do que parecia possível, ela devorou lentamente todos presentes. 

Às vezes pernas, braços, estômago. 

O ser, ainda escuro em minha visão, sempre deixava suas vítimas vivas, agonizando do chão, espumando e implorando para morrerem. Os monstros tentaram fugir, mas nenhum conseguiu sair ileso do terror e do poder da silhueta que os massacrava. 

Um grande rugido tremeu toda a muralha, “meu” corpo não parava de tremer, o queixo já caira há muito tempo. Nenhum grito de guerra, nenhum discurso encorajador. Apenas via a esperança se afastar.

Ofegante e suado, voltei ao silêncio que me aguardou pacientemente. Eles não tinham chance, essa coisa diabólica devia ser da Fronteira! Mas o que estaria fazendo aqui? A relíquia? Não, como os Ritualista trabalhariam ou controlariam um ser desses? Ignorando o medo que cresceu em meu coração, virei-me para Fent e Brigitte, que mantinham suas feições calmas e pacientes. 

— Teve a visão novamente? — perguntou Fent, surpresa nascendo em seu rosto. 

— Precisamos ir agora.

Passando pelo buraco da muralha, a qual a barreira de mana se tornara inútil. Havia mais corpos entre a muralha e o portão para o centro, esmagados e ainda abertos. Brigitte desviou o olhar, escuridão em seu belo rosto; Fent deixou o vômito escapar, enquanto eu lutava para segurar o meu. 

Doía cada vez que eu pisava no sangue meio seco e molhado, em algo gosmento e irregular. A Captação não ajudaria em nada aqui. Dentro não era diferente; mais mortos. 

Alguns no teto com as próprias armas cravadas em si, outros ainda de pé com lanças atravessadas pelo corpo. Havia apenas um corredor escuro desta sala, as outras portas foram cobertas por destroços. 

Mas no início do caminho havia remédios abertos e ataduras manchadas de sangue no chão.

Corri para o corredor, Fent e Brigitte acompanhavam-me um pouco atrás. A parede estava praticamente rasgada com lâminas, o chão era todo desregulado, com buracos fundos e uma diferença grotesca na altura dos pisos a cada sete passos. 

O fim parecia não chegar, eu queria sentir qualquer coisa que dissesse que eles estavam vivos… Qualquer coisa. Ser rei me deixava a frente, de certo modo, para tornar o país um lugar melhor. Mas o cargo exigiu muito além do que eu podia dar. 

Fent escolheu me acompanhar nessa jornada que não parecia ter fim, assim como Lumi… que queria apenas ser forte para proteger quem ama. Quando tudo isso chegasse ao fim, se chegasse, e bem, eu teria uma família como você desejava, mãe.

— Isso… — A voz de Fent ecoou na escuridão. — Não creio que possamos vencer o que fez isso. Fazia tempo desde que eu não sentia… medo de lutar.

— Desde que virei Aurora, nunca me deparei com uma situação assim. Apenas os boatos dos que escolheram ir para a Fronteira se assemelham. 

— Sim, Brigitte, a Fronteira é definitivamente pior do que aqui.

Criei uma pequena esfera de mana para iluminar o lugar, mais rastros de batalha foram vistos com precisão, mas nada que se ligasse aos remédios e ataduras. Era uma energia ruim, completamente diferente de quando vim antes. Mortes, medo, ódio. Um desejo de não estar aqui nasceu contra a minha vontade. Eu sentia os mortos, suas almas assombradas. 

Calafrios agora, Lotier? Foque-se, pode haver perigo!

— Como é lá, rei Lot? — perguntou Brigitte, seus olhos ainda a frente. — Há pouco conhecimento sobre. Mesmo os boatos, que são mínimos, nos dizem que a Fronteira possui diferentes e específicos monstros e um fluxo incomum de mana pelo terreno. O Reino Um é como um mistério para a população… Há alguma lei que impeça que as informações saiam de lá?

— Não há boatos precisos porque muitos dos que têm a coragem e a loucura suficiente para estarem lá não retornam — Desviei de uma pedra que despencou do teto esburacado. — Não há pesquisados ou aventureiros para escreverem um livro ou fazer um mapa. Os próprios guerreiros que vivem lá sabem que sairão recheados de traumas e horror. Os que conheci jamais falaram uma palavra sequer do que presenciaram. — pulei sobre um amontoado de pedras. Fent me olhava com mais atenção do que o comum quando me virei para trás. — A própria entrada nele é… um tanto incomum.

Fent e Brigitte se olham por um momento, trazendo a fofa visão de um casal que eu gostaria de ver no futuro neste momento de crise. Eles pararam e seus olhos vieram a mim. Apenas trouxe a esfera de mana para a palma da minha mão e aguardei que falassem.

— Você devia, ou podia, estar nos contando isso? Aerin Morwen já nos marca como alvos há um tempo por várias questões. Justas, eu sei, saímos bastante da lei. Se for uma informação sigi-

— A- Aerin Morwen!? — O rosto de Brigitte perdeu a cor. — Um Sangue de Luz falou pessoalmente com vocês? 

— É, passamos por situações assim. Apesar de não ser nada comum ver um Sangue de Luz cantarolando por aí, ela tem sido uma pedra em meu calçado — Voltei a andar, a esfera de mana brilhou de novo acima de nós. — A essa altura já não importa o que falo a vocês ou não. Se morrermos daqui a dez passos, prefiro que seja sanando as curiosidades que eu puder. A Fronteira é o lar dos monstros, sim, mas particularmente nunca passei dos muros de-

Não pude evitar os arregalar de meus olhos quando chutei sem perceber um pedaço de metal. Com um passo carregado de mana, lancei-me para o pedaço de espada azul que eu dera a meu representante. Forjada em Camelot, capaz de potencializar o fogo dele… 

As lágrimas apenas desciam conforme eu a segurava e ficava de pé, um desconforto descomunal me atingiu. Ele… ele não poderia ter morrido pelo ser brutal, não é? 

A arma podia torná-lo forte, eu queria vê-lo reagir a tudo que um dia o pôs de joelho, vencer essa luta injusta em que sua vida foi posta. Desde o minotauro ele tinha a coragem, a determinação. Ele-

Não, por favor, não. 

— É a es-espada que dei a ele — Palavras difíceis de sair. Dei um rápido olhar para eles, seus semblantes se comparavam ao meu. — Você não perdeu, não é… — Olhei para a frente escura de novo. — Lumi?

Chegamos a um ponto onde o chão fora completamente destruído. Substituído por um buraco o qual era impossível ver o fundo. Uma mínima brecha nos mostrava o céu, trazia o vento congelante para dentro. 

O buraco fora feito onde todas as salas se ligavam… A relíquia ficava logo abaixo. Espero que esse idiota não tenha dado sua vida pela relíquia. Que pegassem o item. Que pegassem a droga do item, se ele ainda permanecesse vivo com todos. 

Mantive meu olhar firme por vários minutos enquanto Fent e Brigitte procuravam pelo que restou das salas. Firmeza, evite o tremor. O tempo não passava, havia congelado nesse momento infernal onde as todas minhas esperanças foram embora. 

As três barreiras da Fortaleza foram ineficazes contra a grande criatura. Lumi e o grupo provavelmente estiveram aqui defendendo a relíquia junto a todos os outros. Era egoísmo, mas queria que tivessem fugido. Ele, o grupo, os soldados. Aquele ser infernal ao lado do inimigo mudava tudo; Fosse de Balnor, do outro continente, dos Ritualistas. 

Fent me trouxe o escudo de metal de Spectro completamente destruído, e eu estava finalmente pronto para me deixar cair de joelhos. Era culpa minha que tivessem perdido suas vidas lutando, sofrendo… Que fosse a merda a postura de um rei. Antes de tocar o chão, eu vi.

Eu vi que um ponto de fogo surgiu em meio ao buraco sem fim.

Dei o grito gutural mais alto que pude quando me lancei a ele. Brigitte e Fent gritaram por mim, mas deslizei pelos escombros e corri para as chamas. Lancei a esfera de mana para cima com tanto poder que toda a sala ficou clara como o dia. 

Seis corpos de Zolares empilhados, mordidos e esfaqueados. Em cima deles, um pequeno goblin sem o braço direito e com o esquerdo quebrado. 

Uma adaga enferrujada e rachada em sua boca, seus olhos repletos de ódio e sangue; e ao mesmo tempo vazios e ausentes de vida. Seu corpo todo destruído, com buracos e a pele rasgada. Um de seus olhos arrancado, seus ossos mágicos expostos. 

Mas ele estava ali, de pé, rosnando como um verdadeiro monstro quando tentei me aproximar. Um misto de sentimentos nasceu em mim, deixe-me rir e chorar, me desesperar e agradecer. 

— Saiam todos daqui — berrou ele com a adaga na boca, seu olhar desfocado. — Vou continuar matando cada um de vocês, porra! Saiam daqui! Seus desgraçados, seus desgraçados! — A voz rouca, sua respiração pesada. 

Dei um único passo a frente e ele voou em minha garganta. Desviei, segurando com delicadeza seu corpo e neutralizei a lâmina de sua adaga com uma pitada de magia. 

— Está tudo bem! Sou eu, Lotier! — Ele se debateu, suas pernas rasgando a carne das minhas coxas, sua cabeça deslocando lentamente meu nariz a cada golpe. 

— Sai! Sai! Sai! 

Seus golpes doíam cada vez menos, Brigitte e Fent já estavam rondando o lugar. O baque da adaga ao tocar o chão tornou o corpo do goblin mole. Lágrimas surgiram em seus olhos quando ele os revirou e deixou sua consciência. 

Mantendo-o em meus braços, corri para onde os dois foram. Uma grande esperança nasceu em mim, felicidade e tristeza se tornaram um único sentimento borbulhante quando alcancei finalmente as cinzas do que um dia já fora uma fogueira. 

Cerrei os dentes em dúvida e medo e pressa, Winnie e Elliot estavam enrolados na capa que entreguei a Lumi, extremamente feridos, com ataduras mal feitas e remédio usados de qualquer forma. 

As lágrimas só fugiram… Eles respiravam. Eles respiravam! Eles respiravam!

— Eles estão respirando! Caralho! Vão logo!

Brigitte foi sagaz ao usar os equipamentos curativos que trouxe. Próximo aos dois, em uma pilha de roupas velhas e rasgadas e cobertores furados e sujos, Katsuo e Anny descansavam. 

A pele pálida e fria, a respiração fraca, cortes fundos no rosto… Anny estava roxa e com calos gigantes na testa. Fent usou o pouco de magia de cura que era capaz com o livro de feitiços básicos, já se preparando para utilizar todas as ataduras e remédios que tinha em posse. 

Brigitte me alertou sobre a alta febre de Winnie, a falta de nutrientes, o ferimento inflamado que podia matá-la… Elliot havia perdido uma perna. O jovem de metal teria dificuldade de andar mesmo com a melhor das próteses. 

Mas estava vivo. Ele estava vivo. 

Espalhados pela sala, remédios em pote de vidro rachados, água em tigelas sujas e copos imundos. Senti minha boca abrir ao olhar o goblin desmaiado em meus braços.

— Você os manteve vivo para que eu chegasse? — falei em baixo som, tentando acreditar nas minhas próprias palavras. — Você precisa voltar para o Lumi.

Brigitte tornou-se responsável por medicar o incrível grupo de Dilúculos quando Fent veio com ele nos braços; o menino Kai, um buraco no lugar do olho direito e sem a perna do mesmo lado. 

Ferimentos roxos com algumas moscas, ossos quebrados, cortes inflamados, hematomas gigantes, um osso exposto… 

Fent engasgou nas palavras e eu segurei Spectro em meus ombros. Evitando parar — eu não podia parar, não agora — coloquei a mão no sangue em seu peito. No meio dos ossos moles e músculos estourados eu senti o coração de Lumi Kai bater. 

Lumi Kai estava vivo com todos esses ferimentos, por todos esses dias. 

— Ajude ele… — Não entendi o porquê, mas a surpresa grudou em meu rosto como uma maldita sarna. Meus lábios se recusavam a fechar, meus olhos não deixavam de estar arregalados. Como era possível que tivesse sobrevivido a tanto… 

Por algum motivo, com esse poder de visão que eu não conseguia entender, eu sentia que esse garoto era um monstro.

Brigitte listou com precisão tudo que precisava para que talvez sobrevivessem até a chegada no reino de Alyssa, mas meus olhos fixaram-se no menino Kai. 

Fent pôs Lumi no chão e iniciou a cura. Meus olhos foram de Lumi para Spectro e vice-versa algumas vezes. Eu podia não saber como, mas vocês sobreviveram. Então eu ordeno que cheguem vivos ao reino e me contem tudo o que houve.

O que fez isso com vocês jamais saíra ileso. Vocês precisam viver.














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