Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 68: Montanhas nevadas, parte 4

 



A batalha ficava mais distante da minha visão a cada segundo, o alce mágico apenas corria sem parar em sua alta velocidade. Socos, chutes, mordidas, nada foi capaz de me desvencilhar dele. Minhas mãos ficaram vermelhas de tanto atacá-lo, o ódio se tornava mais forte à medida que as lágrimas apareciam em meus olhos. Eu havia falhado como líder. Enquanto Winnie estava sendo levada, Elliot ficou gravemente ferido. Ratsuo e Anny não tinham mana suficiente para lidar com aquelas criaturas. Ratsuo sabia que era impossível vencer, mas eu queria ter ficado mesmo assim. Eu queria lutar até morrer, droga.

 

Talvez ele tenha priorizado a missão melhor do que eu. Essas emoções desgraçadas sempre me retardaram.

 

— Você vai ser mais útil se conseguir chamar a porra do reforço! 

 

— Eles podem morrer antes dos reforços chegarem!

 

Então a luz azul gélida do alce começou a perder seu brilho, e a criatura pareceu sofrer. O ser de magia se desfez como fumaça, os pontos de magia no ar pareciam lindos flocos de neve quando meu corpo alcançou o chão. Meu braço fora arrastado, meu rosto, já ensanguentado, de encontro com a terra. Várias cambalhotas, nada no caminho para me parar. Com dores por todo o corpo, meus joelhos tremeram para se levantar. Os últimos vestígios da magia de Ratsuo estavam passando pelo meu corpo como inúmeros pequenos pontos azuis de mana. Passando pela minha palma como água, logo entre os meus dedos, até sumir por completo. O vento tenebroso balançou violentamente às árvores ao redor, o alce me trouxe para uma curva onde eu não podia ver a batalha. 

 

Ele…

 

Minhas roupas rasgadas, minha armadura destruída. Se eu soubesse usar a porra desse bracelete… A Fortaleza estava próxima, era uma reta a qual eu podia correr em disparada por alguns minutos para chegar. Ela parecia… diferente. Fumaça saía do topo, havia bastante luminosidade ao redor. Mas a névoa — que surgiu ao redor da Fortaleza com o cair da noite — me impedia de ver com clareza o que estava acontecendo lá. Era a única chance que eu tinha de salvá-los, eu precisava, a todo custo, chamar reforços. Quando dei um passo, no entanto, me vi incapaz de priorizar a missão. 

 

Não fazia mais sentido restaurar o contato se eles estivessem mortos. 

 

Queria vencer com todos. Pensei que se ficasse mais forte eu poderia evitar mortes. Meus pés andavam em direção a Fortaleza, meu olhar tenso e pesado no pouco que eu conseguia ver do lugar. O mundo se tornou mais escuro quando ativei o meu poder, qualquer coisa que entrasse no alcance da minha visão seria recebida com meu fogo. Esses seres não eram como os espantalhos. Cada um agia e lutava conforme a situação mudava. Se eu não conseguia nem enfrentá-los direito, como venceria um Ritualista? Como representaria Lotier se precisasse encarar aquele guerreiro de Balnor?

 

Alatar salvaria esse grupo inteiro, Miguel teria mais poder de ataque do que eu!

 

Não era hora para isso!, pensei, rangendo os dentes. 

 

Apesar de não haver neve, o ar estava cada vez mais frio. Meu pulmão começou a doer, meu corpo pedia calor e misericórdia. Nada disso ia me parar, eu chamaria o reforço a todo custo. Passei por troncos destruídos no caminho, dilacerados como nada. Nessa área, a própria trilha tinha marcas de batalha pelo chão. Até que os arbustos balançaram, e eu xinguei por estar tão perto da única luz presente em todo esse nevoeiro. Quando me virei para trás, olhos azuis me seguiam. Passos na frente. Rapidamente me virei para correr, mas fui recebido por um soco no queixo que me lançou a dois metros no chão e me girou no ar. Caí com a cabeça no chão, um zumbido tomou conta do meu ouvido. Por alguns segundos minha visão estava turva e escura, eu não via nada além de um borrão esverdeado enquanto me recuperava. Fechei os olhos e respirei fundo, gemendo por causa da dor. Aos poucos, eu consegui ficar de pé, com uma dor aguda latejando em minha cabeça. Sangue e suor pingava do meu corpo, enquanto eu tentava entender como eles nos cercaram. 

 

— Recua, Lumi — Spectro disse em minha frente sem se virar, mas, por um breve instante, eu vi as costas de Cirlan. — Seguro eles aqui. — Suas adagas em mãos. 

 

O goblin se jogou no meio de seis criaturas, girando com seus cortes que soltavam faíscas. Ele desviou de dois ataques seguidos e conseguiu usar cortes rasos no peitoral dos inimigos, mas foi atingido por uma mordida na perna. Spectro gritou, sua mana fraca por causa de meu pouco poder. Spectro cobriu o corpo com uma leve camada de mana e atacou de novo com um grito gutural, fincando suas adagas na barriga de um dos seres azuis. Mas as adagas dele ficaram presas, e meu amigo ficou sem reação. Olhando para a direção da Fortaleza, eu ainda teria que passar por mais seis deles para fugir. Ir para a floresta não era uma opção, precisava ser aqui e agora. Eu não conseguia me mover, minhas pernas não queriam reagir. Droga, meu amigo estava sofrendo por minha fraqueza! Spectro levou uma joelhada no ouvido e caiu de joelhos, logo as criaturas começaram a espancá-lo enquanto riam. Não, por favor, meus dentes estavam cerrados. Spectro se escolheu, ele tentava se defender. Porém mais eu sentia sua exaustão através do nosso fio enquanto meu companheiro era recebido por vários golpes brutais. Sacando a espada de Lotier, eu gritei para atacar. 

 

E fui recebido com um soco no estômago, que me fez cair de joelhos. A espada caiu ao meu lado, e eles pararam de bater em Spectro, seus olhos em mim agora.

 

Spectro estava repleto de sangue, não conseguia abrir um dos olhos e nem se levantar do chão. Ele estendeu sua mão para mim, e, através do nosso fio, ouvi ele dizer “corra”. Novamente, as criaturas começaram a pisoteá-lo. 

 

Não, por favor. Se mexa, droga! Eu preciso salvar ele! Por favor! 

 

Ele cuspiu sangue e começou a gritar, seus olhos pedindo para parar, suas mãos tentando os fazer parar. A criatura próxima a mim ergueu seu braço, sua garras pronta para o abate. No meio de tudo, eu havia ficado sem reação. 

 

E o vazio finalmente chegou ao meu peito.

 

A criatura pisou em minha cabeça e segurou meu rosto, abrindo meus olhos com suas garras geladas, que arranharam minha pele, para me obrigar a ver o que estava em minha frente. Meu amigo não merecia isso, mas ele escolheu estar comigo por ser a única opção. Até que largaram Spectro no chão, destruído, ensanguentado, como se não fosse nada além de uma presa brutalmente abatida. Quando um outro ser veio me finalizar, eu me lancei para frente, e as garras rasgaram parte do meu rosto. Meus olhos apenas em Spectro, nada ao redor era importante.

 

Desculpa, amigo, eu vou tirar você daqui. 

 

— Eu estou cansado — sussurrei, as criaturas pararam para me observar. — Vocês me irritaram demais — O sangue quente escorria do arder em meu rosto. — Espero que tenham aproveitado — Peguei calmamente a espada de Lotier e a cobri com fogo o suficiente apenas para esquentar o ferro. 

 

A primeira criatura berrou, mas minha espada adentrara em sua boca. Seus olhos ficaram vermelhos, a fumaça saía de suas orelhas. Ele começou a se debater, suas garras rasgando a carne dos meus braços enquanto ele tentava se desvencilhar da minha espada quente, que aos poucos alcançava o cérebro dele. 

 

A dor não era mais relevante, e meus sentimentos também não.

 

 Atravessei a cabeça dele com minha espada em chamas, e seu corpo parou de reagir. As outras criaturas deram um passo para trás, dúvida habitava em suas faces. 

 

— Vocês merecem o pior — Meu tom vazio, o corpo do primeiro foi ao chão. — O que há? — Fios de chamas azuis surgiam ao redor da lâmina, o poder embutido antes se misturava ao meu. 

 

Uma aura assombrosa repleta de sede de sangue, pesada como a de um assassino encapuzado, pairou sobre todos os seres ali. Alguns caíram de joelhos, outros simplesmente se encolheram no chão e posição fetal. Um medo profundo nasceu no semblante de cada monstro aqui, os olhos tremiam, eles não conseguiam olhar diretamente para os meus olhos.

 

— Nenhum de vocês sairá com vida — falei, logo, com um passo rápido, enfiei a lâmina na garganta de outro ser, deixando se debater enquanto implorava para morrer. — O que foi? A resistência de vocês está sendo ruim?

 

Larguei a espada e pulei para outro, meus dedos enfiados nos olhos da criatura. O sangue espirrava, sujava todo meu rosto. Mas senti um sorriso alcançar os meus lábios enquanto eu continuava a perfurá-lo com meus polegares banhados de sangue. Arranquei os malditos olhos, deixando-os pendurados sob um fio nojento azul, e a criatura saiu de joelhos no chão. Um sorriso escárnio escapou de mim ao ver o olhar de medo deles, então ataquei novamente. O ser ergueu as mãos para bloquear meu soco, mas segurei com força sua língua e deixei minha mão queimar. Ele tentou fincar suas garras em minha garganta, mas as enfiei contra seus próprios olhos.

 

E fui banhado novamente por uma rajada de sangue que me fez rir.

 

Peguei a espada do que se debatia no chão, liberando novamente a grande pressão escura que os causava horror. Os monstros vieram no desespero para mim, mas os três primeiros que se aproximaram perderam os olhos com um corte da minha lâmina de chamas vermelhas azulada. O poder era capaz de feri-los. Conforme vinham, eu sentia uma emoção nascer em mim. Arrancava seus braços, suas pernas, suas cabeças. Sempre os mantinha vivos para morrer devagar, para entenderem que eles não eram capazes de me vencer.

 

Cortei as estranhas de um dos seres e as banhei com chamas, sua resistência não o permitia morrer imediatamente, então seus órgãos eram pisados enquanto a criatura se debatia no chão. O lugar estava um nojo, repleto de membros, sangue e todo tipo de órgãos que esses desgraçados tinham. Mas a melhor parte era que estavam vivos, agonizando devagar, desejando morrer. O último estava sem braços, parado com as costas em uma árvore. Dei-lhe um sorriso maníaco enquanto me aproximava com minha lâmina ativa, a pressão de aura o mantinha parado. 

 

Um corte, metade do seu rosto se fora. Outro ataque, suas entranhas caíram sob meus pés. Outro corte, seu coração estava visível.

 

Continuei batendo até depois que seus gritos pararam. Apenas atacava sem parar, minha espada já destruía a árvore, mas eu não conseguia parar. Todos eles deviam morrer, todos eles deviam sofrer. As chamas partiam quase metade do tronco, a árvore começava a balançar. Comecei a sorrir enquanto atacava, meus pensamentos envoltos em destruir o que eu atacava.

 

— ... Lumi, já acabou. 

 

Por que parar? 

 

Um soco alcançou minha ferida nas costelas, me fazendo cair de joelhos.

 

— Eu vou matar todos — falei rindo, rapidamente me levantando. — Você não pode me parar!

 

— Temos que concluir a missão, você não está em si! — O goblin obliterado me empurrou.

 

Esse infeliz achava ter chance contra mim?

 

— Eu quero matar, farei o mesmo com você se for preciso — Meus dentes rangiam, eu me sentia rugindo. 

 

— Você está muito semelhante ao Letholdus, seu desgraçado! — resmungou o goblin ao me dar um empurrão de novo. — Esqueceu do seu grupo? O que você veio fazer aqui? Porra!

 

Meu coração pareceu se acalmar, minha respiração acelerada se regulando, e eu logo olhei para a trilha de corpos que fiz. Para os ossos, os órgãos e as cabeças espalhadas pelo chão. A noite ficou silenciosa quando paramos de gritar, minha mente tentava processar o que aconteceu. Estava tudo tão barulhento para mim enquanto os atacava e…

 

Um vômito. O que foi que eu fiz? Eu- eu não era brutal assim. Outro vômito. Meu corpo havia tomado um banho de sangue, e eu cada vez mais esfriava. 

 

A raiva foi embora, mas um medo surreal fez todos os pelos do meu corpo eriçarem.

 

— Parabéns, você conseguiu usar a pressão de aura, mas não parece ter sido bom. A sede de sangue me fez querer correr também… — Seu brilho estava mais fraco. — Eu também estava com raiva do que aconteceu, de ser fraco e não conseguir te proteger. O que aconteceu com você agora?

 

— Você é fraco porque eu sou fraco — disse baixo, ainda de joelhos, sentindo outro vômito chegar. — A culpa é minha por ter perdido a pedra. Era minha chance de me fortalecer também — Fiquei de pé, um vazio estranho em meu coração. Nada estava entre mim e a Fortaleza agora, precisei ignorar o olhar de dúvida de Spectro ao fazer a pergunta. — Precisamos ir.

 

— Ei, por que não usa logo essa Petrom? Não aguentamos outra luta.

 

Parei sobre alguns corpos.

 

— Se eu usar, Lotier será alertado e vai parar o que estiver fazendo para buscar me ajudar. No momento, nossa linha de reforço é a Fortaleza. 

 

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Era difícil caminhar, meu pulmão estava em seu limite. O ar, o esforço. Eu só queria cair, preservar o que sobrou da minha mana. Finalmente cheguei próximo aos muros do local, restava passar apenas por algumas árvores no meio do caminho. Passei entre os galhos, e o crepitar alto alcançou os meus ouvidos. Com o coração acelerado, eu ultrapassei o último tronco.

 

Meu queixo caiu, e as minhas mãos afrouxaram a espada, deixando-a cair. Spectro não se movia, seus olhos arregalados e seus joelhos tremendo. 

 

Um pedaço do muro fora destruído. Corpos de soldados, ainda com as armas em mãos, estavam espalhados por toda parte. Poças de sangue em todo canto, refletindo a suavidez do fogo que, aos poucos, tornava os corpos cinzas. Cheiro de carniça queimada, um odor insuportável. Porém, no meio disso tudo, havia diversas criaturas. Trucidadas, em pedaços, com apenas o cérebro aberto. Raramente eu via um corpo humano ou monstro inteiro, todos foram brutalmente danificados. Monstros esmagados, humanos com apenas metade da cabeça. O gosto de bile estava cada vez mais presente em minha boca. Eu não conseguia me mover, minhas pernas estavam receosas. 

 

O que mais me incomodou, no entanto, foi ver o que eles tinham em comum.

 

Marcas de mordida de uma mesma dentição, que lhes arrancara membros inteiro, espalhando seus órgãos pelo chão. Tanto em monstros quanto em humanos, havia um ser que não estava em nenhum dos lados dessa guerra.

 

Um bocado de vômito foi ao chão. Ao me desequilibrar, pisoteei restos de estômago e ossos espalhados pelo chão. Novamente abri a boca para vomitar, mas nada saiu desta vez. Isso não parecia real. Não podia ser. Spectro estava paralisado, algumas lágrimas surgiram em seus olhos arroxeados pelas pancadas. Jogando para longe qualquer emoção que queria se manifestar em mim, respirei bem fundo e me mantive de pé. Ignorei o aspecto gosmento do chão, o líquido presente em minhas botas rasgadas. O que parecia ser algo mole entrou no meu calçado quando eu andei sob esse terreno. Ossos estalando, corpos queimando. 

 

— Precisamos entrar — falei, e Spectro voltou a minha aura sem dizer uma palavra. Peguei a arma de Lotier e segui para dentro. 

 

As muralhas eram imensas, cobriam todo o espaço que devia haver entre uma montanha e outra. Imponente, poderosa. Era o que ela me fazia pensar. A Fortaleza não ficava atrás, suas muitas janelas e comprimento se assemelhavam ao castelo do reino sete, com a diferença que todos os andares ocupavam o mesmo perímetro que os muros, sendo completamente grandes e extensos. 

 

No buraco do muro havia uma espécie de barreira mágica, a qual os monstros não conseguiam passar. Seus corpos estavam apoiados no escudo de mana vermelho, nem sequer suas garras puderam o perfurar. Cada vida perdida aqui, cada monstro trucidado… O que realmente aconteceu?

 

Uma leve dor me atingiu quando pensei na possível família de cada um presente aqui.

 

Na parte de dentro da primeira muralha, só haviam corpos humanos no chão. Mas agora todo o dano que receberam era de mordidas. A mesma mordida que atacou os monstros e as pessoas lá fora. Minhas pernas tremiam, minhas mãos formigavam, mas eu não conseguia parar de olhar. Se nenhum monstro da região conseguiu entrar, o que os matou? O que atacou todos os seres vivos daqui? Os corpos morreram com medo no rosto, sem e com armas, as mãos estendidas para frente em misericórdia. As mordidas eram aleatórias, e os corpos estavam inteiros. O que atacou eles não queria se alimentar. Partes das armas pelo chão foram destruídas, e eu finalmente cheguei no lance de escadas que levava para dentro da Fortaleza.

 

O portão de madeira e ferro estava entreaberto e também possuía a barreira de magia, mas nem sequer um monstro conseguira passar da primeira muralha, quem diria chegar aqui. Com passos lentos, entrei pela pequena brecha do portão, mas agora… a derrota atingiu com força o meu peito. Meus pés foram banhados com sangue. A primeira sala da Fortaleza tinha vários corpos abertos ainda pingando sangue. Uns pendurados nas paredes com as próprias armas, outros no chão. O padrão da mordida se repetiu apenas em alguns, principalmente na pilha de corpos criada não muito distante da porta.

 

Cada passo em direção ao centro da sala era como estar em rio calmo, o único som presente foi o uivar do ar alcançando o portão. Não sabia como reagir, não conseguia sentir mais nada. Não conseguiria voltar para casa, não era capaz de enviar reforço para o grupo. O vazio me alcançou de novo, meus olhos sem vida para um crânio aberto no chão. Minha pegada ficou frouxa na espada quando me deixei cair de joelhos, minha mente vazia, minhas pernas encharcadas.

 

Não fazia mais sentido lutar, eu só queria deixar meu corpo cair ao lado dos outros. Eu levantei, devagar.

 

E o único som presente quando fechei os olhos foram as batidas aceleradas do meu coração. Nem as lágrimas em meus olhos eu pude segurar.







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