Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 67: Montanhas nevadas, parte 3

Meus olhos mal piscaram até que o sol nascesse. A mana continuou em meu rosto, o fluxo foi contínuo em meu corpo até os primeiros raios de sol surgirem. Era preciso olhar para todas as direções a todo momento, um deslize e a missão seria comprometida. Voltar não era uma opção, não tínhamos suprimentos para isso. Eu sentia medo de andar e ser incapaz de vê-lo, de senti-los. O Olhar da Aura só me alertava quem estivesse perto o suficiente, a camuflagem deles no ambiente era sem igual.

 

O grupo estava com um semblante cansado, sua aura menos clara. Uma viagem dessas sem descanso e no clima frio era mais do que qualquer um de nós podia lidar. Mesmo Katsuo e Anny com certa experiência com o gelo tinham dificuldade de se manter cem por cento ativos. Eu mesmo queria deixar meu corpo desabar no chão, meus olhos estavam pesados demais. Qualquer som, no entanto, fazia meu coração acelerar. De acordo com o mapa incerto, se essa era realmente a trilha correta, chegaríamos hoje à noite. Apesar de termos mudado algumas vezes a direção devido a criaturas e parte do caminho destruído, me guiei por onde o sol ia nascer. 

 

Alcançar a Fortaleza era uma esperança que crescia cada vez mais. 

 

Pouco mais de uma hora no total silêncio da floresta — já distante dos últimos vestígios da neve — encontramos árvores destruídas no meio da estrada. Trucidadas, a madeira mordida. A destruição se estendia para o meio da floresta, formando um caminho para um ser grande passar. Havia rastros de garras no chão e nas árvores inteiras ao redor. Um leve receio nasceu em mim ao imaginar o que poderia ter causado isso, rastros de magia densa estavam por toda parte. Ativando o Olhar da Aura, olhei o mais além que pude.

 

Muitas auras distantes estavam se camuflando no ambiente, e na direção do caminho destruído floresta adentro havia uma aura poderosa. Imensa.

 

— Eu não queria esbarrar com a criatura que fez isso — disse Elliot. — Sinto que minhas flechas de metal não teriam chance.

 

— Nós vamos chegar antes da noite? — falou Winnie, seu olhar preocupado, suas olheiras grandes. — Eu preciso descansar…

 

— Talvez possamos escolher um lugar para descansar nesta noite — disse Katsuo, ele olhou para as árvores destruídas. — Não poderíamos vencer algo assim no estado em que estamos. 

 

— Vamos manter o ritmo — falei, ainda olhando para frente. — Se não pararmos, chegaremos antes do pôr do sol.

 

Prosseguimos novamente com a jornada. O tempo passava, e a tensão em mim crescia. O silêncio era falso, os monstros podiam se camuflar. De repente, meus pelos se eriçaram. Olhei às pressas ao redor, meu coração já acelerado. Os cavalos estavam mais lentos devido a exaustão, mas não estávamos devagar. Apenas árvores jaziam à minha vista, o som da minha respiração cada vez mais audível. Essa sensação era semelhante quando eu estava prestes a esquivar de última hora…

 

Algo estava aqui nos observando.

 

Apenas ordenei que seguíssemos. Comemos o que sobrou das rações em cima dos cavalos, parar era inviável. Durante o percurso, passamos por outras árvores caídas e trucidadas. Reduzi o ritmo, analisando o padrão de destruição e para onde se seguia. Os outros pararam atrás de mim, seus olhares preocupados. Katsuo falou sobre sua suspeita sobre o caminho que tomamos, e Anny e Elliot sacaram suas armas. Ergui a mão para o grupo e me preparei para usar o Olhar da Aura de novo.

 

Até que uma dor irradiante surgiu em minhas costelas, e eu simplesmente vi o mundo girar enquanto vomitava saliva. 

 

Meu corpo ultrapassou três arbustos e colidiu com uma árvore. Minha visão turva me mostrou um dos monstros azuis se aproximando com suas garras na direção do meu pescoço. Antes que eu pudesse sequer reagir, Spectro, com a minha espada, rebateu as garras da criatura. Me pus de pé e puxei com raiva o machado em minha cintura, cravando-o no braço do ser azul. Ele rosnou e se afastou, meu machado estava preso nele. 

 

Dei uma rápida olhada em Spectro e depois na estrada. O grupo estava de frente para duas criaturas do meu tamanho, outros dois com mais de dois metros de altura e um tipo especial de canino. Todos estavam com armas apostas.

 

— Vamos fugir ou lutar!? — exclamou Katsuo. 

 

Muita informação, eu só queria descansar! Chegar a Fortaleza era prioridade, mas não sabia se seria possível fugir deles e…

 

— Ah! — gritei. — Lutem!

 

Spectro jogou a espada para mim e eu arremessei as adagas para ele. O monstro veio furioso. Eu e o goblin nos afastamos, cada um para um lado, e enfiamos nossas armas na pele azul dura como pedra. Reforçar meus braços com mana não foi o suficiente para causar dano, e uma aura azul cristalina cobriu todo o corpo da criatura quando ele abriu os braços e gritou.

 

Algo como uma explosão da aura gelada me lançou para longe, danificando boa parte da minha armadura. 

 

Novamente minhas costas encontraram, a toda velocidade, uma árvore, e minha visão ficou escura por alguns segundos. Como esses monstros podem lutar assim? Parecia que eu estava encarando pessoas! Com várias armas em seu corpo, ele me lançou aquele olhar medonho. Flashs de lembrança de ontem fizeram minhas pernas tremerem enquanto ele andava em minha direção. Enfiei minhas unhas no chão gelado, mas meu corpo se recusava a se mexer.

 

O monstro do meu tamanho parecia imenso agora, cada vez mais perto, salivando cada vez mais… Por favor, se mexam! Até que ele ficou a um passo de distância e parou. As folhas começaram a cair, e o monstro olhou para cima. Ele foi recebido pelas garras do goblin mágico direto naqueles olhos medonhos. Spectro puxou os olhos dele para fora, deixando-os pendurados sob um fio nojento e azul. O goblin foi recebido pelo sangue que jorrou para cima antes de cair contra o chão, e a criatura bateria de forma aleatória enquanto gritava. 

 

Ataques aleatórios. Eu era capaz. 

 

Corri para cima, desviando do que quer que vinha me acertar. Com um giro no ar após desviar de um chute, puxei minha espada com toda força e aterrissei no chão, enfiando minha espada no céu da boca desse desgraçado. Fui banhado pelo seu sangue e parte do seu cérebro quando tirei e enfiei a espada novamente. Seu corpo caiu de joelhos no chão, e um som de magia levou minha atenção para a estrada. 

 

Katsuo estava com suas foices de correntes presas no pescoço de um grandão, eles estavam disputando força. Elliot estava com sua lança de dois lados enfiada no pescoço do canino, prendendo-o no chão sem vida. Winnie usou magia de terra para prender as pernas do ser que disputava força com Katsuo, e as foices começaram a tirar sangue do pescoço dele. Quando o outro grande tentou se intrometer, Anny usou sua fumaça congelante. A velocidade dele era cada vez menor, até que foi totalmente congelado. Katsuo conseguiu arrancar a cabeça do primeiro gigante, enquanto Elliot, com suas flechas de metal, destruiu o que fora congelado por Anny. Havia sangue para todo lado, misturando-se com o que já não tínhamos de suprimento.

 

— Lumi — disse Elliot, ofegante. — Os suprimentos e os colchões foram destruídos. Um dos nossos cavalos foi mordido até a morte — Ele apontou, e eu quase vomitei ao ver suas entranhas do lado de fora. — Não teremos o que comer ou o como dormir.

 

Olhei para os demais membros. Todos estavam exaustos com a respiração pesada, o corpo coberto de sangue. Eu não sabia o que fazer, mesmo olhando para frente eu não tinha certeza se podíamos chegar lá. Faltava pouco, mas parecia tanto. Não íamos sobreviver comigo como líder nesse lugar, a culpa era minha por isso ter acontecido com eles! Cerrei os punhos com força, mas de repente Winnie caiu de joelhos no chão, sangue saindo de sua boca. 

 

O que?

 

Elliot e Anny disparam para segurá-la, foi então que percebi. Anny tinha vários cortes congelados pelo corpo, sua roupa estava muito rasgada. Elliot tinha o braço direito roxo totalmente exposto, metade do seu rosto também estava tomando a mesma tonalidade. Katsuo estava com um corte no olho e um sangramento nas costelas, mas continuou de pé, esperando que eu fizesse algo. Alguns segundos parados até que Anny gritasse para eu fosse buscar o que sobrou dos primeiros socorros. Passei minhas mãos pelo sangue no chão, não encontrei mais que uma atadura e um remédio com o vidro rachado.

 

Anny deitou Winnie no chão. A menina reclamava de dor, lágrimas surgiam em seus olhos. Havia um corte ao lado do seu estômago ainda com estacas de gelo presas. A ferida estava piorando porque ainda havia mana no lugar corroendo seu corpo, congelando seu sangue. Troquei um olhar rápido com Anny e ela acenou positivamente. Com cuidado, retirei as estacas de gelo um a um enquanto Elliot estancava o sangramento. Winnie gritava e se debatia, ela não conseguia parar de chorar. 

 

Não pode ser real.

 

Tirar o gelo pareceu uma eternidade. Elliot deu um pano para que ela mordesse, mas o sofrimento ainda não tinha acabado. Ela apertou meu braço ensanguentado com suas mãos, implorando para parar. Meu coração apertou, eu ia ceder, mas Anny segurou a menina e disse para continuar. E foi o que fiz, até não sobrar nada. Eu fiquei completamente suado quando me deixei sentar no chão, Winnie finalmente estava ficando mais calma quando Elliot e Anny estancaram o sangramento. 

 

Não, por favor, não.

 

— Tem mais por vir — disse Katsuo, com seus braços cruzados. 

 

— Não temos como mais lutar…

 

Peguei Winnie com calma no colo e andei até o meu cavalo. 

 

— Não vamos parar até chegar lá! Precisamos de segurança e repouso!

 

Elliot, Anny e Katsuo olharam para mim e gesticularam positivamente. Subi em meu cavalo, deixando Winnie em minha frente apoiada em mim. Até que a viagem começou, e estávamos mais rápidos do que antes. Mantive o Olhar da Aura ativo o tempo inteiro, não importava o gasto ou a minha exaustão, qualquer coisa viva que cruzasse meu olhar iria sentir o fio da minha espada. Poucos segundos se passaram desde que saímos, e as criaturas já devoraram os restos de um dos nossos cavalos. 

 

Que lugar medonho de merda. Tínhamos que chegar antes do anoitecer, era a última chance. 

 

— Desculpa… — sussurrou Winnie. — Eu estou com medo de morrer… Eu não quero isso — Sua voz trêmula.

 

— Você vai sobreviver — Eu sabia que não era uma garantia e passei a me odiar por ter dito isso a ela.

 

Algumas horas se passaram. A dor em minha cabeça latejava, meu estômago roncava. Os restos que comi eram insuficientes, o remédio que Winnie tomou logo perderia o efeito. Ainda estávamos sujos de sangue, o odor fazia meu nariz arder.  

 

— Lumi — Spectro disse da minha aura. — Eu estou morto. A aura está exausta de tanto usar mana! 

 

— Eu sei, droga!

 

Os últimos raios de sol começaram a deixar o céu, e o medo passou a me corroer por dentro. Até que o mínimo de esperança nasceu em minha visão…

 

Quando eu pude ver o ápice da Fortaleza. 

 

Estava longe, bem longe. Mas ela estava lá, grandiosa mesmo entre as montanhas. Não demoraria para chegar, nós poderíamos nos salvar. O céu cada vez mais escuro, o clima cada vez mais frio e tenso. O silêncio, no entanto, foi embora. Passos eram audíveis o suficiente para deixar todos aqui nervosos. Winnie começou a arfar em meu peito, sua testa estava muito quente, a mana em seu ferimento ainda a afetava. 

 

— Precisamos chegar lá. Nós vamos chegar a tempo — gritei.

 

Os monstros estavam próximos, acompanhavam o ritmo dos cavalos no meio da mata. Anny e Katsuo tomaram os meus lados, enquanto Elliot se manteve atrás de mim. A noite já havia chegado, a lua estava plena no céu na brecha entre as nuvens. 

 

— O conflito é inevitável — disse Anny, seus olhos tensos, sua calma se fora. — O que faremos?

 

— O foco — disse, meu tom baixo. — é manter Winnie viva — Olhei para a menina lutando contra o sono em minha frente. — A todo custo. A Fortaleza não está longe.

 

A fumaça saía do topo do nosso abrigo, da nossa esperança. Eu desejava mais que tudo que fosse apenas as lareiras acesas, mas estava longe demais para ver a causa. Até que um monstro do meu tamanho estava parado na estrada em nossa frente, o que nos fez parar bruscamente com os cavalos. A criatura me encarava fixamente com um leve sorriso no rosto, seu corpo carregado de aura. Uma espécie de armadura de gelo surgiu ao redor de seu corpo, e seus olhos se tornaram grandes. Meu coração estava a mil, ninguém ousou se mover por alguns segundos. Chiados próximos, as árvores balançavam. Nossa única chance acabara de ser impedida por ele e pelos que estavam por vir. 

 

Que merda de lugar era esse? Uma ameaça para os reinos… Por isso ninguém cruzava a fronteira por aqui, por isso os relatos eram confusos.

 

Descemos dos cavalos às pressas. Certificando-me que Winnie estava segura, deixei Spectro sair também. Elliot mirou o arco antes mesmo da criatura se mexer, acertando duas flechas de metal na armadura da criatura. Mas não surtira efeito. O ser apenas olhou para o ataque e depois para Elliot. A criatura ergueu o braço e uma esfera azul de gelo começou a circular na palma de sua mão, transformando-se numa espécie de martelo gigante. 

 

E ele segurou a arma com as duas mãos, pronto para nos esmagar. 

 

Coloquei mana em minhas pernas e peguei Winnie do cavalo, minha mente vazia como o vento. O chão foi simplesmente estourado, jogando os cavalos para cima, afastando Anny, Elliot e Katsuo de mim. Spectro saiu da minha vista enquanto eu caía com a menina nos braços, até meus músculos cederem e a deixarem ir. Fumaça para todo lado, estava apenas eu e ela. De repente, os cavalos correram da fumaça, fazendo o caminho de volta, passando em meus lados. Meus olhos se arregalaram quando vi os outros dois animais brutalmente esmagados, seus corpos viraram uma mistura de ossos e órgãos colados no chão. 

 

Um zumbido veio ao meu ouvido quando feitiços foram disparados para todos os lados

 

Mais monstros haviam chegado, e Spectro rapidamente me levantou. O caminho para a Fortaleza estava infestado, lutar era a única opção. Seria impossível que todos fugissem. Quando a fumaça baixou por completo, vi Elliot arremessar duas flechas de metal no ser com armadura, que foram facilmente rebatidas com o braço. Novamente, o martelo foi levantado. Elliot tentou defender com estacas de metal, mas o ataque do inimigo destruiu tudo.

 

Inclusive sua perna, que já não parecia mais a parte de um corpo humano. Por algum motivo, eu pude ver lentamente a perna dele ser esmagada. 

 

Ele gritava, berrava, chorava e babava. Elliot tentou agarrar pedras, gravetos, mas não conseguia se livrar da agonizante dor. Até que um fraco ataque de magia veio de minhas costas, acertando o monstro de armadura sem causar dano. Quando me virei, Winnie estava de pé, mas, das sombras, foi acertada com uma pedra no ferimento que recebera antes.

 

Não, por favor.

 

Ela começou a chorar e caiu, e a criatura segurou seu braço, congelando-o aos poucos. Um baque. Spectro segurava o martelo que tentava esmagar Elliot com a própria força bruta, o escudo de metal o auxiliava com um toque de magia. A criatura levantou o martelo e Spectro correu com o corpo de Elliot antes do ataque, que destruiu parte do chão. Com a palma da mão aberta, lancei uma bola de chamas enfurecida na criatura que segurava Winnie, mas foi bloqueada pelo ser. Ele arrastou minha companheira, enquanto o inimigo do martelo chamava mais duas criaturas gigantes. Não, não, não.

 

— Desgraçados! — berrei, minha espada com um brilho azul. — Eu vou destruir você-

 

Rastuo e Anny tomaram minha frente, ofegantes e com vários cortes no corpo. 

 

— O que vocês pensam que-

 

— Não é a primeira vez que me deparo com um cenário caótico — disse Katsuo, calmo, seus olhos nos monstros. — Você precisa concluir a missão e notificar aos reinos o que acontece aqui para que ninguém mais passe por isso. — Ele me olhou, seus olhos se despediam. — Precisa ser você, neto de Kanro. Você me lembra muito ele.

 

Anny lançou uma bola de magia para o céu, que trouxe um clarão atordoador em todos os inimigos. Katsuo uniu as mãos e um alce de gelo mágico surgiu, atravessando o meu corpo, prendendo-me em seu centro. Spectro voltou a mim, e o alce começou a correr. Katsuo voltou a batalha, e a última coisa que pude ver — antes de ficar muito longe — foi um grande brilho glacial surgir. Não importava o quanto eu me debatia, chorava ou gritava, eu não conseguia me desvencilhar deste maldito alce. Ele não devia ter feito isso, eles não vão escapar de lá. 

 

Esse lugar é amaldiçoado, desgraçado.

 

Eu queria matar todos, para mim nenhum deveria sair vivo.






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