Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 65: Montanhas nevadas, parte 1

Cinco cavalos prontos no estábulo estavam a nosso aguardo, o sol mal aparecera entre as montanhas, o céu ainda com uma tonalidade azul alaranjada. Os animais de carga eram um pouco diferentes do que eu esperava ou costumava ver. Eles tinham uma circulação de mana impressionante pelo corpo, uma pelagem marrom e branca e pelos grossos como os de um casaco quentinho. Perfeitos para ir em ambientes frios. Coloquei meus suprimentos na bagagem, logo a capa do Lotier e a roupa de frio. A espada especial já estava em minha cintura ao lado das adagas, o machado de Spectro em minhas costas. O bracelete, por mais que eu não soubesse usar, e o escudo estavam em meus antebraços. Durante os treinos de representante no castelo, Lotier providenciou um Petrom para mim. Como a de Arvid, bastava eu quebrá-la para eu saber que tudo deu errado e que eu precisava de reforços. 

 

Esse item, em específico, não sairia do meu bolso. 

 

Subi em meu cavalo de neve e abri o mapa. A Fortaleza ficava distante da estrada desenhada, um pouco depois das montanhas com vários pontos sinalizando mudança de percurso e possíveis monstros grandes. Mudança de percurso? Um frio na barriga me alcançou ao ver as vinhas desenhadas levando pessoas para as cavernas. O mapa nos levaria até certo ponto, depois disso…

 

— Lumi Kai — disse Katsuo, já em cima do seu cavalo. — Estamos prontos para partir. 

 

Elliot, Winnie e Anny estavam no aguardo logo atrás de Katsuo, todos com seus olhos em mim. 

 

— Vamos — falei, e logo fui na frente.

 

Os guardas rapidamente abriram o portão do castelo, eu podia ouvir meu grupo atrás de mim. Procurei conhecer o mínimo deles ontem a noite, o suficiente para ver que podem conter variações de técnicas fortes o suficiente para nos livrar de enrascadas. Quanto mais próximos chegávamos ao portão de saída da cidade, mais essa missão parecia real para mim. Quando saímos, no entanto, fiquei com um leve desejo de vê-los lutar.

 

E esperava mais do que tudo que não precisasse sacar minha arma. 



Nos distanciamos de modo veloz, mas mesmo assim o reino sete demorou a se encolher na minha visão. Outrora gigante e imponente agora era coberto pelo meu dedo, como se fosse incapaz, fraco. Mais adentro da trilha, das montanhas, monstros inofensivos podiam ser vistos. Sobre as árvores, próximas da trilha. Eles mostravam medo, alguns apenas corriam e tentavam se esconder. Raramente duelavam entre si. Até que a visão que eu tinha do reino sumiu, e eu sabia que não daria para voltar. 

 

A trilha ao norte era bem feita, dificilmente eu via uma planta — ou uma árvore destruída — no caminho. O ambiente até então era tranquilo demais, apenas sob o som do nosso próprio cavalgar. Paramos em um pequeno campo próximo a estrada para o café da manhã depois de algumas horas. Winnie, a menina maga de cabelo castanho claro com pontas amarelas, disse que precisava comer. Elliot, de cabelo preto penteado para trás e um arco em seu peito, concordou com a ideia. Katsuo e Anny eram um pouco mais sérios, centrados. A magia deles era diferente, a maneira como se comportavam e analisavam o ambiente, ou como colocavam seus cavalos ao meu redor quando uma criatura diferente aparecia perto da trilha. 

 

Nós seguimos por mais algumas horas antes da parada do almoço. Depois disso, seguimos sem parar até que o sol estivesse se pondo, e nuvens carregadas podiam ser vistas nas montanhas nevadas distantes. 

 

Local onde devíamos ir. Sem olhar para trás.

 

A estrada estava mais fria, mais desgastada. O ambiente já não era mais o mesmo. As criaturas ao redor eram diferentes, agora possuíam garras, olhos ferozes, mas nenhum ousou nos atacar. Cavalgamos até um pouco depois da base da montanha, onde chegamos alto o suficiente para ver o horizonte, mas ainda muito longe do topo. A lua já estava no céu, era um destaque entre as nuvens que corriam furiosas. Era longe das criaturas, então perfeito para acampar. Até que…

 

Eu baforei? Fumaça? 

 

Lembranças da missão de Alatar vieram. Olhando para a mata escura, desejei que nenhum ser humanóide me perseguisse e depois desaparecesse. Até hoje eu não havia visto nenhum relato das criaturas que me seguiram lá. Mas pensando bem… eram como sombras. Sem rosto, medonhas. Ignorando o arrepio na minha espinha, voltei meu olhar a Katsuo, que montava sozinho as duas barracas. Ele era alto com um porte físico mais forte que o de Kanro, em sua cintura havia duas pequenas foices com correntes azuis. O fluxo de mana perfeito. Anny e Winnie organizaram as rações que íamos consumir hoje. Winnie, de vez em quando, ria sozinha e sentia medo dos chiados noturnos. Me lembrava do Faime na missão contra Letholdus. Ele e Gina avançaram bastante na luta de Emeru. Me perguntei se estavam bem. Anny, mesmo perto de Winnie, era sempre séria. Seus olhos basicamente analisavam o lugar a todo segundo, enquanto sua aura…

 

A aura dela continha algo a mais, algo que eu não podia ver. Como um poder oculto podia sair ileso da minha visão?

 

Elliot se encarregou de dar água e comida para os cavalos de neve, que estavam mais tranquilos com a temperatura do que nós. Sua lança de metal em sua mão, ele trouxe madeira. Organizei os pedaços que ele trouxe no chão e os cerquei com pedras, logo os posicionei para cima. Ficando de pé, abri a mão e deixei que uma pequena bola de fogo saísse. 

 

E a pequena fogueira se acendeu. 

 

— Lumi — chamou Katsuo, o velho com as foices. — Você tem algum outro elemento para usar nesta jornada? 

 

Balancei a cabeça negativamente.

 

— Vocês serão o meu poder de fogo nessa jornada — Meus olhos nas chamas, meu tom sereno e calmo. — Invocar as chamas em temperaturas baixas exige mais do que eu tenho a usar. 

 

Anny, a mulher de cabelo prateado, sentou ao meu lado. 

 

— Darei meu melhor para lutar ao seu lado — Suas palavras frias. — Não se preocupe com o poder de fogo. 

 

Até que Elliot também sentou próximo a fogueira, seus olhos desviaram de mim três vezes antes de ele finalmente falar:

 

— Representante. Kai. Você pode… nos falar da sua luta contra o Príncipe Miguel? — Anny, Winnie e Katsuo olharam para ele. — Contar como se esquivou daquela forma e sobre aquela invocação única? Parecia que vocês… conversavam. 

 

— Eu também nunca vi uma igual — disse Winnie, sua voz doce. — Eu pesquisei para tentar descobrir alguma coisa, mas só aprendi sobre invocações inteligentes e monstros de mana na batalha. É diferente.

 

— Principalmente quando os dois surraram em perfeita sincronia o arrogante do Miguel — falou Anny, e Elliot e Winnie pareciam surpresos. — O que foi? Não gosto daquele menino. O representante não parece ser o mesmo tipo de pessoa. — Ela olhou para mim, seu olhar frio me trouxe um certo arrepio. 

 

Quantos todos olharam para mim, mantive meus olhos no fogo. 

 

— No início da minha jornada, as esquivas foram como uma válvula de escape. Mesmo que Cirlan tivesse me aceito no grupo, eu era fraco e incapaz. Lutar contra um simples goblin, ou até mesmo insetos grandes, não era uma opção para mim. Ela me salvou da morte várias vezes, inclusive na luta. E a invocação — Verifiquei Spectro concentrado na aura. — é, sim, peculiar. Nunca vi ninguém como ele. 

 

— Você é árduo e frio como os jornais mostraram — disse Katsuo, seu olhar curioso, e logo ele e Winnie também se sentaram. — Em meio todo aquele sangue… suponho que não tenha dado tudo de si contra o príncipe.

 

— Infelizmente aquele foi meu máximo alcançado. 

 

Apesar de haver alguns monstros distantes nos vigiando, conseguimos comer e conversar ao redor da fogueira sem nos preocupar. Estava um pouco mais frio que o normal, mas, perto do fogo, não era nada tão alarmante. A comida era boa, duas sopas e alguns pães recheados. Eles pareciam se dar bem, apesar de Elliot e Katsuo discutirem às vezes, meio que Anny os lembrava o porquê de estarmos viajando. Winnie era realmente muito na dela, mas discutia quando era preciso. Cerca de meia hora passou enquanto descansamos, e o silêncio no ambiente começou a me incomodar. 

 

— … e então Lotier nos reuniu há um tempo atrás — disse Katsuo. — Não éramos bem um grupo, mas nosso trabalho em equipe nos destacava mesmo ao lado de grupos individualmente mais fortes. Quando a proposta de ajudar você — Ele olhou para mim. —, o representante, chegou a mim, posso dizer que a empolgação de lutar ao lado de alguém com técnicas únicas nasceu em mim novamente, até saber o grupo que o rei formou…

 

— Você diz como se não gostasse de trabalhar conosco, Katsuo. — disse Elliot. — Todos falavam da sua luta contra o príncipe Miguel, Lumi. Acredito que qualquer um aceitaria te ajudar em uma missão. Porém eu concordo com Katsuo. Eu não sabia que me encontraria com o grupo de novo.

 

— Talvez Lotier estivesse planejando isso há tempos — disse Anny. — Ele parece desleixado, mas não chegou a posição de rei à toa. Ou, quem sabe, Fent não tenha dito a ele para nos chamar.

 

— O homem da magia de som… — sussurrou Elliot, seus olhos na fogueira. 

 

— Não li muito sobre essa magia. Ele pode simplesmente manipular o som? Como lançar ondas sonoras? — perguntei.

 

 — Ela é tão rara quanto magma ou metal — Ela trocou olhares com Elliot, depois voltou a mim. — Uma anomalia que o faz mover o som. Mesmo sem um treino certo ele já poderia ser considerado perigoso. Pelo que vi, ele tem uma variedade de técnicas sonoras. Como imitar vozes, usar ondas poderosas para destruir muros, confundir o inimigo, criar barreiras as quais até mesmo a magia não consegue penetrar… Dominar outros elementos pode ser possível dependendo da afinidade do usuário com tal, mas o som não se encaixa nisso. Assim como o raio, o metal, o magma. Nenhum deles pode ser dominado caso não seja de nascença.

 

— A aura de Fent sempre me impressionou, mas não imaginava de forma clara o poder dele. — falei. — O elemento luz se enquadra nisso? De não poder usar?

 

— O elemento luz… se conhece pouco, como deve saber — disse Katsuo. — Boatos dizem que pode ser de nascença, outros que é preciso buscar conhecimentos proibidos para aprender. A única certeza que tenho, que eu mesmo vi, foi uma usuária de luz do reino de Balnor. Não sei muito de lá, mas acho que eles têm um certo conhecimento sobre isso. Se a situação com eles fosse melhor…

 

Seria a Trea?

 

— Fico grato por me informarem sobre isso.

 

— Não precisa agradecer, eu que sou grata por estar em uma missão importante contigo — disse Anny. — O nosso foco aqui é levá-lo de qualquer maneira a Fortaleza que protege o item sagrado.

 

— Sim — disse Winnie. — Você vai chegar lá a todo custo.

 

— Mesmo que tenhamos que ficar para trás — Katsuo. — Seria uma pena para os monstros terem que me enfrentar. Ha ha ha!

 

Passos. Arbustos. Rapidamente me pus de pé, meus olhos bem abertos para a mata.

 

Ativei o Olhar da Aura. O ambiente logo se tornou mana pura, cada ponto mágico podia ser visto. Anny e Elliot tomaram a frente, cajados e arco apontados para a direção a qual eu encarava. A mana pronta para ser disparada. 

 

— Não precisa lutar, representante — disse Anny, sua voz afiada. 

 

Eu não conseguia entender o que via… Era um ser inteiramente de mana? Sua aura era perfeita, como se fosse uma pessoa adulta. Mas não havia partes escuras, onde indicava o corpo, era apenas magia. A coisa levantou seu braço e acenou, e eu senti como se ela estivesse sorrindo. Até que, aos poucos, aquele acúmulo de mana desapareceu. Sumindo como fumaça, desaparecendo completamente da minha vista.

 

Como aquelas coisas que me perseguiram na missão de Alatar. Não, essa era diferente.

 

Eu não sentia intenções ruins na aura. 

 

— Era só um nativo — disse, desativando meu poder. — Não se preocupem, ainda estamos seguros. Vou ser o primeiro da guarda nesta noite, um venha comigo.

 

— Eu o acompanharei — disse Katsuo, levantando a mão. 

 

Winnie, Anny e Elliot apenas acenaram em concordância, e logo arrumaram-se nas barracas. Peguei as adagas de Spectro e pus em minha cintura, então andei próximo a mata, perto o suficiente para chegar às barracas antes de qualquer criatura. Meu olhar foi às montanhas, ainda tão pequenas e incapazes. Graças aos cavalos especiais conseguimos andar muito em apenas um dia, mas não parecia ser nem a metade do caminho. Ainda estávamos na trilha do mapa, o problema seria quando eu precisasse sair dela. Verifiquei Spectro na minha aura ainda concentrado e dei mais uma volta no acampamento. Katsuo estava do lado oposto.

 

O que era uma relíquia e o que ela poderia fazer? Os Ritualista estariam dispostos a tentar invadir a Fortaleza para tentar recuperá-la? Ou inibir os meios de comunicação para enfraquecê-los? Pelo que Lotier me disse, não conseguiriam invadir. Talvez mantê-los isolados fosse um meio de vencer. Eu apenas torcia para que a Fortaleza estivesse intacta, ir e voltar sem descanso e reabastecer os suprimentos iria levar eu e meu grupo a óbito. 

 

— Sei como se sente — Katsuo se aproximava, mana reforçada por todo seu corpo, seus olhos com uma forte tonalidade azul escuro. — Assumir o comando assim, uma missão direta de um dos dez reis. A preocupação está visível em seu olhar — Quando abri a boca para falar, ele continuou. — Não se preocupe, só eu percebi. Não tem problema se sentir inseguro em situações assim. Você certamente tem um propósito maior para estar fazendo isso, não? 

 

Olhei para baixo e depois para ele.

 

— Qual é o seu?

 

— Proteger minha neta e minha filha — Seus olhos foram para o horizonte, além do topo das montanhas geladas, próximo ao céu estrelado na brecha das nuvens. — Preciso sobreviver a essa missão e voltar para elas. Infelizmente eu não pude fazer o mesmo com a minha esposa…

 

Seus olhos ainda estavam fixos no ambiente quando o encarei, um pesar que eu não via antes apareceu. 

 

— Eu sinto muito — falei, sentindo tenso por lembrar de Emy e minha mãe. — Como-

 

— Não se preocupe, senhor Kai. — Ele olhou para mim. — Darei tudo de mim para concluir essa missão ao seu lado e voltar para elas. Sei que você pretende fazer o mesmo.

 

Revezamos durante a noite com os outros membros do grupo. Aquela coisa não voltou a aparecer, nenhum monstro chegou perto e o tempo permaneceu bom para acampar aqui. A noite foi mais tranquila do que o esperado, mas eu sabia que isso iria mudar. Era apenas o começo do mapa, longe das regiões onde os problemas poderiam acontecer. Aproveitando o máximo que pude do tempo de descanso, o sol finalmente apareceu ao longe…

 

E nós apenas partimos depois do café da manhã.





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