Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 64: Para onde voltar

Ventos fortes balançavam bruscamente as árvores no pequeno monte. Eu tinha uma bela visão do reino, das carruagens barradas no grande portão central. Era longe o suficiente para treinar longe do som das vielas e perto para voltar em caso de emergência. Voltando o olhar à espada, a lâmina possuia rachaduras devido ao uso excessivo de mana acrescida de fogo. A katana de meu pai não só resistia, mas também interagia com a magia. É de doer que eu a tenha perdido junto com uma pedra em potencial em um lugar onde ela jamais seria achada.

 

Spectro treinava movimentos com seu machado, dava golpes pesados contra o tronco. Ele chegou a derrubar uma árvore de tanto atacar, e o seu consumo de fogo era menos desgastante para mim. O problema se tornou a temperatura que descia cada vez mais, os fortes ventos e as chuvas. Lutar sob essas condições reduziram meu tempo de poder para poucos minutos, eu não podia depender só das chamas. 

 

O topo do castelo parecia inalcançável. Muralhas protegiam a cidade, com arqueiros e magos prontos para atacar. Era um reino. O reino número sete. Mas eu não enxergava mais este lugar como seguro, o mundo, para mim, tinha menos cores agora. 

 

Letholdus entraria neste lugar apenas com seu poder. Se os Ritualistas viessem em peso, seria impossível defender.

 

Ao menos o pôr do sol era esplêndido daqui.

 

— Falta emoção nesse seu rosto — disse Spectro, seus olhos verdes afiados se destacavam no lugar. — Se sente bem para prosseguir?

 

— Estou pronto para o que vamos enfrentar — respondi, seco. — Vamos conseguir.

 

Spectro recolheu a espada e o machado do chão e foi para a trilha de descida. Antes de eu segui-lo, deixei a mana correr pelo meu corpo. Lancei meu olhar sobre os animais pelos restos de madeira e permiti que minha pressão de aura os atingisse. Os esquilos e alguns pássaros apenas entraram em estado de alerta, e eles logo voltaram a focar no que estavam fazendo. Dois besouros próximos se sentiram assustados por um momento, mas não durou muito.

 

Estava errado, não devia ser difícil. A pressão de um Laiky podia literalmente me esmagar.

 

Então pense, Kai, onde melhorar?

 

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Um silêncio feroz habitava nosso jantar. Às vezes o queimar da lareira, o balanço das janelas. Mas por mais de dez minutos nenhuma palavra foi dita. Neste dia, a comida não parecia tão gostosa. Deixando parte da comida no prato, fui ao terraço de casa. Ventania forte, jarros quebrados no chão. Kanro e Amice logo vieram, e, apoiando minhas costas no pequeno muro, eu disse:

 

— Eu vou partir amanhã cedo. E logo devo ir para o castelo para passar a noite lá.

 

— Faça o seu melhor como sempre faz — disse Kanro, suas mãos na cintura. — E você também — Ele olhou para Spectro. — Faça bom uso do que te ensinei.

 

— Eu vou — respondeu Spectro. — Protegerei Lumi de todo o mal.

 

Amice me deu um abraço apertado. Seu calor confortante, suas mãos em minhas costas, seu queixo sobre meu ombro… Passei meus dedos sobre seu cabelo e apoiei minha cabeça na dela, fazendo-lhe um cafuné, deixando-a me apertar. 

 

— Volte bem — sussurrou Amice. — Por favor…

 

— Eu vou, sim, mãe — respondi baixo. — Eu prometo.

 

Ela se afastou e colocou a mão no ombro de Spectro, dando-lhe um olhar confiante.

 

— Seja forte. — Ela disse, e Spectro estufou o peito orgulhoso.

 

— Você vai voltar, hein — Emy disse ao pular para me abraçar, e um aperto surgiu em meu peito. 

 

Emy e o Spectro apertaram as mãos, e ela, Amice e Kanro foram rumo para dentro de casa. Meu pai, no entanto, virou para me dar um último olhar, seu semblante sério. Eu apenas balancei a cabeça em resposta, e ele fez o mesmo antes de entrar. Meus olhos, então, foram ao topo do castelo, minha mente já tinha o objetivo de chegar até lá. Dei dois passos para o muro e pulei em cima dele, pronto para tomar o caminho mais rápido, mas Spectro me impediu de avançar. 

 

Seus olhos mais semelhantes com os do goblin que matei. 

 

— Você não está bem.

 

— Eu posso muito bem-

 

— Na missão — Ele me cortou. — você não pode recuar. Você se dá conta disso?

 

— Tenho total ciência do que vamos fazer, Spectro. 



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 O vento que assoprava com força minhas vestes se tornara comum, eu já me adaptara a este clima, a sensação de tristeza e solidão que ele me passava. As ruas estavam vazias, algumas luzes apagadas. Eu sabia dos guardas na muralha, sabia da proteção do reino, mas já não me sentia tão seguro quanto antes. Nem mesmo com Letholdus preso em Tera, nem com alguém como Hiroki aqui. Desconhecer a força do inimigo quando tudo tendia a piorar apenas abastecia minha insegurança. 

 

Eu me questionei se realmente podia fazer algo mediante a tudo. Era difícil, mas não podia deixar meus sentimentos se manifestarem agora. Nem durante a missão. Tudo precisava correr bem.

 

— Lumi — disse Spectro ao passarmos pelos portões do castelo. — Nós- — Ele hesitou. — Nossa batalha contra Emeru, sabe? — Direcionei meus olhos a ele quando pisei no primeiro degrau para dentro do jardim. — Ele disse que eu era um… Erokai. Ele citou sobre você ter vestígios da energia das almas, só pode ser a energia da pedra. — Seu olhar baixo junto aos seus ombros, seus lábios curvados para baixo. — E se eu não tivesse para onde voltar, como sentia, mas fosse apenas uma alma morta e presa naquela pedra por alguém? Eu fico confuso-

 

— Spectro… — Cerrei os punhos, lembranças das almas no fogo da espada de Emeru vieram.

 

Ele não podia simplesmente ser uma daquelas centenas de almas. Ele… ele era alguém. Ele era meu amigo. Eu não entendia sobre aquele poder, mas não queria acreditar que cada uma daquelas coisas já fora humano algum dia. Podia ser um poder, um feitiço preso ali, invocações. Qualquer coisa. E se fosse, como alguém tiraria ele de lá? Quem teria o colocado? Eu queria levá-lo para um lugar onde ele possa ser feliz. Ele não sabia se tinha um lar, se tinha realmente uma família. Tudo que ele tinha era a ligação comigo e mesmo assim não desistiu, investiu com todas as forças. 

 

— Eu sinto o seu vazio às vezes, mas tem horas que o que me mantém treinando não é apenas querer te manter vivo — Lágrimas em seus olhos. — É porque eu também me sinto sozinho, sabe? Eu posso não ter para onde voltar. Eu não devia ter sentimentos, não é? Podia ter virado um monstro horrível, como o que quase te matou. Talvez um erro. Uma falha. 

 

— Eu- — interrompi minha frase, apenas me aproximando dele para envolvê-los em meus braços sob toda essa ventania. — Eu sei… Eu estive tão focado em tudo que está acontecendo que nem ao menos cogitei perguntar como você estava com toda a situação. Me desculpa por isso, você tem sido meu maior aliado e apoio para tudo sem eu te dar a devida atenção — Spectro colou o rosto no meu casaco, suas garras recuadas no meu braço, suas lágrimas começando a sair. — Está tudo bem, estou com você — Um berro, suas garras em meus braços. — Não precisa ter pressa — Gotas do céu. — Eu estou aqui.

 

Minutos e minutos se passaram antes de seguirmos rumo para dentro do castelo sem dizer uma palavra a mais.

 

O lugar estava quase vazio, com apenas alguns empregados indo para lá e pra cá. Poucos guardas, menos luzes espalhadas. Não demorei muito até chegar no lance de escadas. Frio e escuro, os únicos sons presentes eram nossos passos, que ecoavam por todos os andares. Chegamos no décimo primeiro andar, onde havia poucos quartos e o chão era um completo tapete vermelho. As luzes de mana em lamparinas chiques, armaduras nos cantos entre as colunas do corredor, um silêncio absoluto. Respirei fundo antes de andar até as portas de Lotier, logo bati três vezes.

 

Aguardei alguns minutos, mas nada. Não via ninguém com o Olhar da Aura, apenas uma estranha assinatura de mana nas portas. Até que a porta esquerda do corredor se abriu, levando toda minha atenção. Um guarda de armadura de metal e uma lança surgiu e parou em posição de guarda entre mim e a escada. Atrás dele, veio uma mulher de cabelo castanho claro, olhos azuis cristalinos, uma coroa e um manto vermelho sobre os ombros. Seus olhos encontraram os meus e eu rapidamente me ajoelhei. Spectro fez o mesmo. 

 

— Pode se retirar, Saul, preciso falar a sós com o representante de Lotier — Sua voz suave, ela sinalizou com a mão para que o guarda se retirasse. 

 

— Sim, majestade — Os olhos afiados do guarda, a única parte do corpo que aparecia da armadura, fixaram-se em mim. — Estarei a seu dispor nas escadas.

 

O guarda marchou para as escadas as quais eu vim, e a rainha Alyssa se aproximou de mim.

 

— Eu compreendo a formalidade que precisamos manter, mas eu adoraria um abraço do menino que considero como meu filho. Só estamos nós aqui. 

 

— Eu senti sua falta — falei, ficando de pé e aceitando o abraço dela. — Desde que saiu de Karin — Ela fez um cafuné em meu cabelo. — Eu tenho aventuras mais divertidas para te contar desta vez. 

 

— Eu sei que tem — Ela deu um passo para trás e pôs as mãos em meus ombros. — E eu adoraria ouvir, fazer um lanche, ver Amice e Kanro… Bruno falou muito de você quando voltou para o reino, da jornada que teve com Alatar e de toda a luta que você participou. Eu fiquei muito orgulhosa de ver como você cresceu — Ela me deu um fraco sorriso. — Mas você precisa me ouvir agora — Sua expressão parecia… entristecida. — Eu tenho pouco tempo aqui, mas precisava dar o recado eu mesma. — Ela olhou para Spectro. — E para você também, goblin. 

 

Spectro se pôs de pé e gesticulou com a cabeça, e os olhos de Alyssa voltaram para mim. 

 

— Lotier teve uma urgência no Reino Nove e partiu ontem com Fent — continuou ela. — Aparentemente, não podemos confiar em qualquer um. Há itens que vão ajudar você em sua missão dentro da sala do seu rei, itens os quais eu e ele providenciamos para você.

 

— Tia Alyssa, está tudo bem? Eu posso ajudar você? Por favor, me con-

 

— Nada que possa me abalar, querido. Eu quero que mantenha seu foco na missão. Nunca ficamos mais que três dias sem receber sinal da Fortaleza, e o contato com ela é crucial para a proteção da fronteira e de itens mágicos que não podem cair nas mãos dos Ritualistas — Ela olhou de relance para trás ao ouvir o eco de passos na escada, troquei olhares com Spectro e ele se manteve de guarda. — Evite conflitos, guarde suas energias e a do grupo apenas para a viagem. A Fortaleza te dará abrigo por alguns dias, mas o caminho para lá é árduo. Os cavalos e o grupo estarão no estábulo às seis horas amanhã à sua espera — Passos mais próximos. — Caso queiram conhecê-los, vá ao quinto quarto do terceiro andar.

 

— Alyssa — disse um homem da porta das escadas, seus olhos bem abertos e fixos em nós, depois no goblin. — Essa reunião não pode esperar mais.

 

A aura dele era… ruim. Sua roupa preta com símbolos dourados dos reinos, uma espada curvada de ouro em sua cintura.

 

— Não preciso que lembre a mim — disse Alyssa, se virando. — Eu sou a Rainha, a reunião começará quando eu chegar lá. 

 

— Eles não gostam de esperar — Foi tudo que ele disse antes de voltar.

 

— Lumi, às chaves — Ela arremessou para mim, meu semblante preocupado. — Vá. Rápido. — E ela se foi.

 

E meu coração parecia cada vez mais pesado.

 

Abri as portas do quarto com Spectro ainda em guarda, e uma estranha camada de magia surgiu. Quando entrei nos aposentos do rei, elas se fecharam sozinhas, cobertas, novamente, com uma camada de magia. Como eu não percebi isso todas as outras vezes que vim aqui? Fechei os olhos e puxei todo ar que pude. A janela enorme sempre me impressionava. Era possível ver a cidade inteira, as montanhas distantes, a chuva sobre o vidro… Estava um pouco frio, e a janela começou a se esbranquiçar. Eu queria apenas ver os itens em paz…

 

Mas a cena da conversa de Alyssa com o tal homem não saía da minha cabeça. Se fosse um servente dos Sangues de Luz, a mãe do meu melhor amigo não estaria segura. E eu não sei se poderia agir contra autoridades maiores que um rei.

 

Até que um som de arma sendo desembainhada ecoou pela sala, e eu me virei para ver Spectro segurando uma espada com uma tonalidade azul. 

 

— Ela é gelada — Ele testou alguns movimentos, quase potencialmente derrubando a mesa. — Leve, sinto magia nela. O bilhete na mesa diz que é para você.

 

Foco, Lumi. Entender os itens é crucial para vencer. Alyssa é forte, ficará bem. 

 

Peguei a carta sobre a mesa e li em voz alta:

 

— “Saudações, Kai! Se está lendo isto, é porque eu parti. Nessa época do ano, o caminho para a fortaleza costuma ser mais frio que as demais regiões do reino, devido a magia e a localidade, então solicitei alguns equipamentos para você e o goblin que fala”.

 

— De novo ele com esse apelido.

 

— Aqui fala que vamos enfrentar alguns monstros com características únicas — Meus olhos no papel. — e que precisamos de armas capazes de perfurá-los. A pele deles é encouraçada com gelo, e a espada, essa em sua mão, Spectro, pode cortar eles. Também está escrito que foi embutida magia de gelo, mas que provavelmente não vou conseguir usar — Virei para o goblin. — O fogo também não será uma opção no frio, devemos evitar ao máximo qualquer conflito.

 

— Só precisamos chegar lá, certo? Vamos tomar a rota mais segura de acordo com esse mapa aí — Spectro apontou para a mesa. — Apesar de estar meio… rabiscado.

 

— O mapa constantemente rabiscado por Fent. O caminho muda por causa da neve, mas se seguirmos mais ou menos a linha e os pontos destacados nele, podemos evitar problemas — dei uma rápida olhada na carta. — Tem duas adagas de corte raso para você na bolsa.

 

Spectro embainhou a lâmina azulada e puxou suas adagas da bolsa. Olhei para o bracelete dourado em meu braço. Este item já me salvou algumas vezes, mas eu ainda não sabia como ativá-lo. Já o escudo de metal… arremessei para Spectro. Lotier deixará cavalos capacitados para percorrer grandes distâncias, de oitenta a cento e cinquenta quilômetros em uma dia, suplementos para mim e para o grupo, roupas de frio e uma armadura de pano e metal para mim. Já fazia tempo desde que eu não usava uma, elas sempre quebravam quando eu era lento demais para desviar. No fim da carta, Lotier dissera que no grupo havia um duelista de gelo, duas magas e um arqueiro de metal e que conhecê-los durante a viagem podia ser uma boa cartada para pôr em prática a liderança. 

 

De repente, uma letra escrita em negrito apareceu no papel, dizendo que Lotier precisou confrontar Alud sobre certas atitudes relacionadas a magia Ritualista. O papel começou a esfarelar, mas eu acelerei o processo queimando. 

 

Spectro testava movimentos com a adaga, parecia feliz com o equipamento. Novamente, me vi parado de frente para a janela, admirado com as estrelas. Eu amava vê-las em minha infância, mas, agora, pareciam menos mágicas por algum motivo. Fui em direção a porta, e Spectro logo veio atrás de mim.

 

— Aonde vamos?

 

— Hora de conhecer nosso grupo.

 

Usei a escada em espiral novamente para descer os oito andares. Eu não tinha pressa neste lugar, era como se ouvir meus próprios passos ecoarem fosse um momento de descanso. Me distraia, mas acabara assim que eu entrei no andar. O corredor era um tanto extenso, havia várias portas de madeira, o tapete era azul com detalhes dourados e estava cheio de empregadas limpando e entregando comida. Poucas lamparinas iluminavam, mas o foco se dava inteiramente nos dois lustres de mana branca que iluminavam praticamente todo o corredor. Chegando ao quinto quarto depois de desviar três vezes de pessoas, pude ouvir vozes. Pessoas discutiam atrás da porta. Coloquei a mão no olho mágico e suspirei, falando para mim mesmo:

 

— Não estou pronto para lidar com pessoas. 

 

— É preciso. Eles vão te ouvir. Eu acho. 

 

— Você é como uma voz na minha cabeça, Spectro.

 

— Ás vezes eu literalmente sou.

 

Movi lentamente a maçaneta e empurrei a porta. À primeira vista tinha dois homens gritando um com o outro, suas expressões furiosas. Atrás deles, uma mulher de cabelos prateados sentada na cama debaixo de um beliche com as pernas cruzadas. À direita do quarto eu vi outra mulher sentada em uma cadeira com um cajado de madeira escura no colo. Todos pararam o que estavam fazendo quando entrei, uma expressão de leve surpresa surgiu em seus rostos. Os dois homens se curvaram, depois da mulher da cama e a da cadeira. 

 

— Representante, perdoe-nos — disse a de cabelos prateados. — Pensamos que o veríamos apenas amanhã. 

 

— Está tudo bem, podem se erguer — falei, Spectro ao meu lado, eles levantando devagar. — Lotier me falou pouco de vocês, então gostaria de conhecer melhor cada um antes de iniciarmos a missão.

 

— Será uma honra trabalhar ao seu lado — disse o homem barbudo. — O rei não nos falou claramente sobre a missão que faríamos, ficamos na esperança de você nos dar uma luz.

 

— O que ele disse a vocês?

 

— Que deveríamos ajudar o representante a chegar em um lugar altamente perigoso — respondeu a mulher. —, o qual devemos, a todo custo, evitar conflitos. 

 

Dando uma breve olhada para cada um eu deixei um suspiro escapar. Seus olhares atentos em mim foram para um de dúvida em Spectro. 

 

— Temos um tempo — falei, fechando a porta, todos atentos às minhas palavras. — Vamos bater um papo.

 

Eles precisavam saber um pouco no que iam se meter.



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