Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 61: Esfera de chamas

 

Cada golpe era carregado o suficiente de mana para causar um corte raso e veloz, com a meta de nunca deixar o tronco “respirar”. A pressão precisava ser mantida, meus braços e o meu pulmão precisavam aguentar. Um passo para a esquerda, uma esquiva para a direita. Imaginar meu adversário era simples, basicamente o método de treino que me tornou mais veloz que antes. Seus ataques, embora nunca chegassem, eram reais para mim.

 

O ritmo da Academia G-Kliwell ainda era insano, porém eu pude acompanhar. Com o passar das semanas, eu vi que era possível. Eu me fiz acreditar que era possível. Durante as aulas, aprendi a controlar o fluxo de mana pelo corpo enquanto prestava atenção na teoria. Isso tornou minha circulação mais leve, mais precisa e mais potente. Apesar de minhas notas estarem relativamente na média, era de se comemorar. 

 

Cada gota de suor que escorria do meu rosto me tornava mais feroz para manter o ritmo de ataque. Sem descanso, eu golpeava a árvore com minhas lâminas cobertas com uma mini camada de mana. Mantive o ritmo por cinco minutos e deixei que minhas armas tocassem o chão enquanto eu deitava meu corpo sobre a grama balançada pela brisa. Spectro treinara na próxima árvore, seus pulsos de mana tornavam suas adagas armas letais se acertadas no ponto certo. Spectro se tornou mais veloz do que eu em seus ataques, até que faíscas surgiram de suas lâminas, cobrindo-as com um fraco fogo amarelado. Gastava uma quantidade imensa para manter o poder, então precisaríamos praticar muito para conseguir usar em batalha. 

 

Mas ao menos tínhamos uma nova carta na manga.

 

Novamente ataquei o tronco com minhas armas, mas desta vez concentrei mana em minhas pernas e deixei o poder fluir com mais velocidade pelo meu corpo. Ataque e defendi o adversário imaginário com tudo que pude lembrar da arte das duas espadas. Era incomum ver um usuário mestre nesse estilo, essa seria a brecha para eu subir de nível. Tornei pontos de mana densos em meus joelhos e cotovelos, logo nos ombros e punhos. Os cortes foram fundos, quase rasgando a madeira, mas meus músculos e articulações sentiam o peso de usar tanta carga de poder. A concentração tinha que ser mantida, às vezes eu perdia o foco da luta. Caso contrário, desperdiçaria mana. 

 

Simplesmente joguei as espadas para o lado e apontei a palma da minha mão para frente, segurando o punho com a outra. Concentrei toda minha magia em um único ponto, forcei a mana, até minha aura “doer”, para a palma da minha mão. Meu braço tremia, mas pequenas faíscas de fogo se formaram. Mesmo com os músculos chorando, eu mantive o foco; nem ao menos pisquei quando as faíscas de tornaram uma bola de fogo do tamanho da minha unha. A bola se expandiu até atingir o tamanho da minha palma, e o calor, mesmo com minha proteção de aura, fez a minha mão arder. O consumo era maior do que a maioria dos feitiços que eu podia tentar conjurar. Com um longo suspirar, eu disparei o ataque para cima. Conforme subia, mais perdia sua forma. Até que a esfera de chamas se dissolveu no ar, a pouco mais de vinte metros do chão. 

 

Devia ter ao menos explodido.

 

— Temos uma possível fonte de energia a mais em você. Eu sei que não conseguimos nem tocar, mas poderia ser nosso trunfo — disse Spectro enquanto eu descansava, leves chamas circundavam seu corpo. — Ou você pode ter nascido simplesmente com uma mana não compatível com você — Ele desativou a magia. — Deveríamos pedir ajuda. Levar choque e bater em troncos é como andar em círculos.

 

— Tudo bem — suspirei. — Vou falar com alguém sobre isso. Ela é incomum nos livros que eu li. Se for um segundo elemento, eu adoraria ter água.

 

— Eu voto em terra.

 

— Bem, continue praticando — Me levantei. 

 

— Aonde vai?

 

— Lotier quer me ver — falei, apontando para o topo do castelo no meio da cidade a qual estávamos distantes, sob a lua minguante entre as nuvens escuras.



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Com um simples aceno, os guardas me deixaram passar. Não importava quantas vezes eu viesse, ainda me impressionava com o tamanho do castelo da rainha Alyssa. Os jardins eram imensos, havia um mar de flores de várias cores. As árvores frutíferas próximas aos muros estavam agitadas, a brisa mais forte que o normal trouxe uma onda para o mar de flores. Passei pela enorme sala da entrada do castelo e entrei nos corredores de tapete vermelho, onde havia luxuosos lustres de ouro e mana. Todas as janelas do corredor começaram a tremer devido ao vento, o assobiar era cada vez mais alto e o céu, mais escuro. Quando me virei para as escadas, vi Bruno descendo um amontoado de livros. Cumprimentei meu amigo e segui meu rumo, até passar pela cozinha; onde havia pessoas comendo e lendo ao mesmo tempo. Os empregados me cumprimentaram assim que me viram, apesar de eu não exigir tais formalidades, sabia da importância de mantê-las. Fent fez questão de colocar a força tudo de importante na minha cabeça. 

 

Havia apenas um guarda no andar superior, o qual não se importou muito com a minha presença. Bati na porta de Lotier e falei brevemente que iria entrar. Me curvei para Lotier e Fent e me sentei no sofá vermelho. Fent acenou de relance e continuou na mesa com alguns papéis, enquanto Lotier sentou-se em minha frente, seu olhar tranquilo.

 

— Bem, me conte. Como está na escola? E com a Ellie? — Senti minha bochecha corar, e Fent abafou a risada. — O dia de conhecer Hiroki ficará cada vez mais próximo se sumir com ela depois da aula.

 

— Ele é um cara prático — disse Fent, e ambos riram.

 

— Como vocês- Ah, deixa para lá — Peguei uma xícara com café. 

 

— Já treinamos todos os tipos de modos possíveis, tanto em reuniões quanto em jantares, danças… — disse Lotier. — Já estudamos o suficiente sobre relações com o exterior para você entender como o assunto é suscetível a conflitos e por que a aliança dos dez reinos é importante — Lotier deu um leve sorriso. — Nos resta praticar em reuniões oficiais. Com reis, com generais — Senti meu coração acelerar de leve. — Mas infelizmente isso vai ter que esperar. Você precisa fazer uma missão específica para mim. Não falo de rodear o reino com guardas ou ir destruir alguns monstros de novo.

 

Me curvei no sofá, logo ele continuou.

 

— O que vou te dizer é de extremo segredo até mesmo entre os de alto nível — Nossos olhos se encontraram, e Lotier tomou uma expressão séria, mudando até o seu tom de voz. — Há uma fortaleza entre as montanhas, na fronteira entre o meu reino e Kaloar, responsável por guardar itens e decidir a situação dos refugiados. Essa fortaleza, apesar de estar na fronteira, não é de conhecimento geral. Fica em um espaço entre montanhas de difícil acesso, onde ocorrem relatos, sem parar, de monstros novos que podem até evoluir. Claro, alguns são para causar medo. Já outros — Lotier trocou olhares com Fent. — eu vivenciei. Colocar ou tirar um item de lá é burocrático até para mim. Pense que eles tem uma aliança com os reinos ao invés de servi-los. 

 

Fent parou de escrever e passou a nos observar.

 

— Nós recuperamos um item que os Ritualista estavam buscando em uma Alrofy perto das terras de Balnor — Meus pelos se eriçaram. — Tivemos mais baixas do que podemos lidar. Eu fui incapaz de mostrar o que restou dos corpos de alguns dos nossos para suas famílias. O item, na verdade, é uma relíquia morta. Os Ritualistas conseguem fazer coisas… que nós não compreendemos com essas relíquias. Mesmo a que obtemos estando morta, precisei colocá-la lá para evitar que caísse nas mãos deles. Se a queriam, é porque há alguma utilidade. 

 

— Um ponto importante, Kai — ponderou Fent, eu e Lotier olhamos para ele. — Há relatos de uma criatura branca humanóide que devora humanos próxima às montanhas da fortaleza. 

 

Eu simplesmente comecei a tremer com as lembranças do Laiky. O trauma de ver Cirlan quase morto, o olhar de desgosto de Cacele e Kaled, de ter visto o olhar daquele monstro e por ter sido espancado ainda me afligia. 

 

— Não tema — disse Lot. — Os cidadãos que sobreviveram foram evacuados para Tera, para o vilarejo erguido pelos moradores que você salvou com Alatar. Sua maior preocupação deve ser evitar o grupo chamado de Obscuros. Eles não agem há anos, mas é real quando digo que são uma ameaça maior que os Ritualistas. Infelizmente temos imagens da recompensa de procurados de apenas dois, mas tenha em mente que o grupo é maior. O chamado de Sangue fica em primeiro lugar nos que deve evitar. Eu não entendo a magia dele, mas sei o que pode fazer com ela — Lotier suspirou. — Apenas evite a máscara laranja. 

 

As batidas foram do meu peito ao ouvido.

 

— Os reinos não são mais seguros e você sabe disso. É a hora de você começar a se envolver. Enviei quatro soldados para a fortaleza, a fim de verificar o estado da relíquia e negociar levar ela para o reino nove. — O silêncio levou pouco mais que dez segundos, mas com o latejar em minha cabeça pareceu horas. — Perdemos contato total com eles ontem.

 

— Quatro soldados escolhidos por você não retornaram. Os Ritualistas podem estar lá! Não podemos enviar um Voin especial? Um dragão? Eu precisaria ir com um batalhão-

 

— Temos traidores — sussurrou Fent, quase que inaudível. — Alud está corrompido, e infelizmente não podemos provar ainda — Perplexo, meu queixo caiu. — Desde de quando ele tentou o prender, nós já sabíamos. Não temos muito mais em quem confiar, e os reinos superiores não entram em contato há tempo. Gilmour deve estar ocupado nos protegendo da fronteira, e mesmo nesta situação estamos ficando sem guerreiros dispostos.

 

— Devemos esperar sete dias devido às condições climáticas. Se o contato não chegar, agiremos — disse Lot. — Eu queria, sim, enviar mais membros. Ou até mesmo ir junto — O olhar dele baixou. — Um grupo selecionado por mim irá o acompanhar nesta jornada, e você será o capitão deles. 



Os ventos neste andar atacavam ferozmente as paredes, fazendo-as tremer, um prelúdio para a tempestade. Com minhas mãos nos bolsos, me protegi das brisas que adentravam nas janelas, as quais os empregados davam a vida para tentar fechar. Comandar pessoas… Eu tive muito treino com Lotier e Fent, até liderei grupo de ronda no castelo. Mas nada se comparava a isso. Uma missão perigosa com um peso muito maior do que tudo que já fiz. Um peso sobre meus ombros. A prioridade era apenas restaurar o contato, eu podia evitar todos os conflitos, mas sabia que era impossível tudo ocorrer como planejado. A região por si só era medonha e recheada de mistérios, ataques de monstros sem sentido, rotas alteradas pelo “clima”. Os Ritualistas queriam a relíquia para que-

 

Minha pernas cambalearam, e meu rosto ficou a um palmo da parede antes que eu impedisse o impacto com as mãos. Um frio na barriga me atingiu, meu olhar vazio encarava fixamente as pernas, uma pergunta explícita em meu rosto.

 

Você está com medo? Eu estou com medo?

 

Um grupo de pessoas se aproximou e me saudaram formalmente. As saudei de volta, ainda sem nenhuma emoção em meu olhar. Eu sentia meu coração se apertando em minha caixa toráxica, como se estivesse com medo do que está por vir. Corri até um corredor com imensas janelas. As rajadas de ré fizeram-me deslizar para trás, o assobio dos ventos nunca estiveram tão altos. 

 

Eu precisava melhorar muito minha magia. Eu podia não sobreviver.

 

Conforme descia os andares, mais precisava me esforçar para espantar os pensamentos. Mesmo quando vi Bruno estudando com um grupo de pessoas, passei sem parar. Finalmente passei os dois guardas do portão do castelo, e fui recebido pelas nuvens completamente escuras. Respirando o mais fundo que pude, apenas fechei os olhos. 

 

Eu queria a voz novamente para me guiar.

 

— Você parece um pouco aflito, jovem — Era Gerould.

 

Direcionei meu olhar ao velho, e Ataz veio logo atrás.

 

— Ele só cresceu. Está com algum problema?

 

— Bom ver meus velhos guardas-costas. Eu estou precisando extravasar — falei com pressa, mas suspirei antes de continuar. — apenas.

 

Eles se entreolharam, e Gerould falou:

 

— Se lembra de ser humilhado constantemente por bonecos de madeira?

 

— Como eu esqueceria, Gerould? 

 

— Você pode extravasar em um… um treino específico. Que tal?

 

— Não esqueça que ele vai ter companhia.

 

Confuso, apenas os segui quando simplesmente andaram na direção oposta à minha. Chegamos a uma área de campo aberto dentro das muralhas do castelo, longe de qualquer árvores ou flores, casas ou guardas. Parecia que o campo fora especialmente feito para este tipo de situação. Ataz sentou no chão, e Gerould disse que ia buscar alguém. No meio de trovões, adentrei em minha aura. A mana verde era sempre densa e agitada, eu poderia mesmo usar isso como uma cartada a mais? Spectro falou sobre incompatibilidade, e eu concordei com o fato de estar cansado de ser arremessado. Ao menos minha mana branca havia crescido bastante desde o início.

 

Quando voltei ao mundo, a menina de olhos azul claro se aproximou rapidamente de mim. Seu arco preso sobre o corpo, sua aljava próxima a cintura. Seu cabelo escuro saltitou quando ela parou em minha frente, um sorriso de canto em sua boca.

 

— Não vejo você desde a missão do Alatar — Ela me olhou de cima a baixo. — A parte mais impressionante de você ter duelado contra Miguel é ter ficado mais alto — Ela aproximou o indicador dos lábios. 

 

— Bom ver você, Áki — falei, dando-lhe um sorriso gentil. — Soube que está em missão com um grupo.

 

— Sim, eu vim com eles para o reino, mas só eu fiquei aqui para treinar — Seu olhar colou no meu, e ela me deu um soquinho no peito. — Desanimado assim você nunca vencerá da Ellie. — Abri a broca para refutar, mas ela continuou. — Eu preciso de um alvo difícil para atirar minhas flechas, e Gerould disse que você é como um mestre em desviar. 

 

Áki deu passos para trás sem pressa enquanto sacava o arco, seu olhar ainda no meu. Gerould arremessou uma espada para mim, que peguei sem dificuldades.

 

— Mostre-me o quanto avançou, rapaz — disse Gerould, antes de lançar um olhar assustado para Áki, que mirava em mim com sangue no olhar. — Não creio que tenha outra opção.

 

Cravei a espada no chão e ativei o Olhar da Aura, logo saltitei algumas vezes para aquecer os músculos. Quando fixei meu olhar na ponta de flecha de Áki, todos os pensamentos desapareceram.

 

E era tudo que eu queria por hora. 








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