Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 59: Por ela

 



A mana se movia com fluidez da aura para o meu corpo. Era um fluxo leve e agradável, como um rio com sua fraca correnteza em um dia de sol. Quanto mais forte essa correnteza ficava, mais difícil era de estabilidade este “rio”. Manter a água dentro do canal exigia muito esforço físico e mental, porém o desperdício estava muito, muito menor. Pelo que entendi através da explicação nas aulas, eu usava a magia com o rio transbordando, mais semelhante a uma explosão de poder desordenado do que um ataque altamente concentrado. 

 

O assunto era mais complicado quando se tratava da minha energia para o Spectro. A aura dele sugava a magia da minha para se manter, então o estado puro da minha mana podia ser usado por ele. Quando eu transformava meu poder em fogo, já era um processo feito na saída da mana da aura, podendo ser usado fora do meu corpo. Diferente de quando me fortaleço internamente com aura. Nosso laço, o fio que nos ligava, era muito semelhante ao céu estrelado, como uma corrente de mana de várias cores. Mesmo com o Olhar da Aura eu podia ver pouco, eu sentia que não vislumbrava como deveria tamanha perfeição da magia. Através desse fio que ocorria nosso processo de compartilhamento, foi a brecha que a mana esverdeada também o afetava. Aparentemente, a tal magia estranha me rejeitava e, ao mesmo tempo, identificava o Spectro como uma extensão da minha magia. 

 

Mínimas gotas de energia escaparam do nosso fio, quebrando lentamente o fluxo contínuo através de pequenas “rachaduras” que nos impedia de compartilhar mais poder. Senti meu maxilar doer quando forcei a mana a voltar a seguir o fio, mas o rio já estava transbordando. A magia se espalhou como uma pequena explosão, e eu e o Goblin caímos de bunda no chão. A exaustão na aura trazia ânsia e sono no início, e Spectro não ficava de fora. Com dificuldade e sentindo o gosto de bile, eu levantei, meus joelhos tremiam. Spectro ficou de frente para mim, seus pés tentavam evitar os livros e papéis de cálculos pelo chão. 

 

Bem, nós cansamos de estudar. Treinar um pouco da teoria parecia uma ótima ideia. Como eu tinha que ver os livros toda vez que falhava, pensei: por que guardá-los?

 

Tocamos as mãos e, novamente, eu o senti. Deixei uma quantidade maior de energia desta vez, enquanto Spectro tentava usar da melhor maneira no corpo dele. Quando tocávamos as mãos, era menos difícil manter a mana no fluxo. O problema era que não podíamos ficar de mãos dadas em uma luta. Juntos, nos afastamos um passo. Rapidamente os efeitos vieram: dor de cabeça, coração acelerado. Foi como se tivesse largado um peso sobre meus braços, um peso líquido. Spectro fez luvas de aura em suas mãos, e eu transformei lentamente minha magia em fogo. Ele disse que não sentiu o poder das chamas, então a tentei mover para o fluxo. O goblin chegou a cobrir seu corpo inteiro com a mana que usávamos.

 

Que desperdício nosso, pensei, e uma risada escapou.

 

Quando queimei mais energia, no entanto, ele disse que sentiu o calor. A habilidade dele de cobrir o corpo com mana era superior a minha, isso facilitava na hora de evitar desperdiçar, pois ele só precisava fortalecer sua defesa. Até chegar no limite. Com o excesso de magia, ele fez pequenas explosões de aura nas mãos, e um vento quente atingiu o meu rosto, balançando o meu cabelo. Quando ele puder acrescentar o fogo às explosões de mana…. Faíscas surgiram na testa do goblin, e eu lentamente abri os olhos. Eu estava encharcado de suor. O mínimo de fogo se formou ao redor do Spectro, sem danificar a aura protetora dele. 

 

Um sorriso se formou no rosto dele, e eu mentiria se dissesse que não é recíproco. Com sua empolgação, ele deu um passo à frente.

 

E havíamos esquecido que o quarto estava cheio de livros. 

 

Quando o primeiro livro pegou fogo, nós gritamos em desespero. Tentei separar o livro quente dos demais, mas minhas mãos continham faíscas, e o fogo se alastrou para quase metade do quarto. Falhei ao tentar me cobrir com mana e caí de joelhos com toda a fumaça, meus olhos lacrimejaram e minha cabeça doeu. Com a voz abafada, Spectro disse que ia pegar algo.

 

Esse idiota ainda estava em chamas.

 

Kanro surgiu na porta e apontou a palma das mãos para o quarto, criando braços de água que, com cuidado, apagaram tudo. Spectro voltou com um balde e Emy com outro, e Kanro lançou a rajada de água neles dois.

 

Enquanto eu ficava preocupado com os livros que não havia acabado de estudar…



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O ar frio alcançou meu peito quando abri a janela do quarto e admirei a rua completamente enfeitada, acompanhada de um céu alaranjado com poucas nuvens. Este lugar à noite devia ficar uma obra prima. Meu velho casaco cinza continha mais buracos do que eu me lembrava, e minha calça preta fora rasgada durante as corridas no reino. Claro que como representante eu comprei as mesmas roupas em um tamanho maior. Penteei meu cabelo para trás e guardei algumas moedas na carteira. Emy podia querer algo. Ela estava na sala, com seu vestido vermelho e sapatilhas pretas, com uma pequena tiara dourada. Seu cabelo fora feito com uma trança para cada ombro, e ela levava uma espada de brinquedo na cintura. 

 

— Mãe, pai — chamei. — Vou sair com a Emy. A gente volta mais tarde.

 

Meu pai desceu as escadas em um charmoso e elegante terno preto com a gravata vermelha, um relógio marrom com bordas prateadas estava em seu pulso. Fui recebido por um enorme sorriso.

 

— Eu sempre soube que você ia ficar musculoso como o pai — Apertamos as mãos, depois ele afofou a cabeça de Emy. — Essa é minha garota.

 

— Querido, pode levar Emy? Nós vamos em um… jantar romântico. 

 

O cabelo ruivo e ondulado caía sobre suas costas e ombros, seus olhos verdes fixaram-se em mim com incerteza quando meu queixo caiu. Ela usava um vestido de pano vermelho que deixava um decote ousado e um corpete marrom que continha pequenos adornos dourados. 

 

— O que foi? Eu estou feia?

 

— Sim, filho. Eu tenho essa mesma reação para sua mãe desde quando nos conhecemos.

 

— Você está ótima, mãe. Eu vou sair com a Emy, sim. 

 

Kanro e Amice seguiram rumo ao restaurante, enquanto eu, Emy e Spectro ficamos a mercê de uma grande cidade para explorar. 

 

Spectro vestiu uma calça de couro marrom e um grande chapéu, o qual me perguntei se era o motivo de minhas moedas terem sumido. A noite caiu, e eu fiquei admirado com as luzes. Havia linhas entre os telhados das casas com bandeiras pequenas com vários símbolos diferentes, algumas tinham até mesmo lamparinas azuis e amarelas, outras vermelhas e verdes. As pessoas na rua estavam vestidas de acordo com o evento, e minhas bochechas coraram quando percebi que era o único com uma roupa casual. Emy comentou sobre seus dias na escola, os quais ela aperfeiçoou sua magia de ar e o “poder secreto” que queria me mostrar um dia. Aparentemente, ela estava indo muito melhor do que eu. 

 

— Lumi, olha aquele urso! — gritou Emy, disparando para uma das barracas. — Eu quero. Vamos pegar!!

 

A moça da barraca se aproximou enquanto mascava um chiclete, que logo caiu de sua boca quando percebeu quem eu era. Seus olhos se arregalaram, e ela gritou por seu outro funcionário; um garoto um pouco mais alto do que ela. Varri meu olhar pelos prêmios nas prateleiras. Emy havia apontado para um enorme urso marrom com uma coroa na cabeça, considerado o prêmio mais difícil de pegar. Uma música começou a circular pela rua, e eu voltei meu olhar aos dois à minha frente.

 

— Senhor representante! — disse a menina. — A que demos a honra? Você deseja algo?

 

— Olá. Minha irmã gostaria daquele urso ali — apontei. — Como faço para pegá-lo?

 

— Eu-eu posso explicar! — falou o rapaz, o suor visível em sua testa. — O senhor só precisa pegar uma dessas maçãs — Ele moveu uma espécie de baú com água gelada cheia de maçãs para perto de mim. — com a boca. O senhor terá três tentativas — Ele me olhou um tanto tenso. — Precisa conseguir seis maçãs para ganhar o urso.

 

Duas maçãs por tentativa. 

 

— Eu quero ir primeiro! — falou Emy, e eu deixei o valor que vi no cartaz na mesa. A menina pegou com receio, e o garoto disse que Emy podia começar.

 

Ela abaixou para pegar, porém mal tocou a língua na água e recuou, dizendo estar muito gelado. O menino notificou que havia apenas mais duas chances, e Emy olhou para mim com preocupação.

 

Eu precisava pegar aquele urso.

 

Respirei fundo, cobri meu rosto com a mana, tentei até mesmo fortalecer os meus dentes, e afundei meu rosto na água. Gelo. Recuei rapidamente com apenas uma maçã na boca. Emy, que havia levantado as mãos em torcida, baixou os braços, seus dentes cerrados. Olhei com ódio para as maçãs que algumas pessoas ao redor ficaram preocupadas. Minha pressão de aura escapou, fazendo um esquilo próximo, de alguma forma, rir. Quando fui tentar novamente, no entanto, senti uma mão em minhas costas.

 

— Espere um pouco, meu amigo — disse Spectro. — Você já tentou — Seu socado estava diferente, sua voz grossa. — Agora é minha vez.

 

Spectro afundou a cabeça na água. Os poucos segundos que se passaram enquanto ele ficou submerso pareciam uma eternidade para mim, Emy chegou a roer as unhas. Até que o goblin levantou com seis maçãs na boca, e a menina trouxe o urso para nós. Com minha maçã “bonûs”, peguei uma rosa sem espinhos e a guardei com cuidado. Deixando uma risada maligna escapar, saímos para as próximas barracas.

 

Vimos um show onde um grupo de aventureiros dançavam com seus animais mágicos enquanto outros tocavam música com seus instrumentos. Eu sempre quis entender como um som tão belo podia sair de um violão de madeira e cordas. O homem que tocava movia os dedos em uma velocidade incrível, e cada vez que ele afundava a corda em outro ponto do braço do violão um som diferente vinha. Ele fez isso várias vezes! Emy acabou com o sanduíche de caranguejo que dei, e eu comi cerca duas mesas de frios. Quando Spectro foi explorar a cidade, eu e Emy conversamos passando por muitas e muitas barracas, até paramos em algumas delas.

 

Minha irmã era mais divertida do que eu me lembrava, e fiquei orgulhoso de mim quando ela disse — casualmente — que eu era uma inspiração como o papai. Ela se esforçava muito no dia a dia para tentar ser como eu e enfrentou o medo de dormir sozinha quando treinei por meses com Breaky e Sairon. Minhas mãos formigaram quando pensei no tempo em que podia estar com ela, ou nas vezes que quase a abandonei para sempre. Eu queria estar aqui. Eu treinava até meus músculos estourarem para ver esse sorriso mais vezes. Para ouvir seu dia a dia na escolinha, para tomar café da manhã ao lado dela. 

 

Jogando os pensamentos ruins de lado, eu apenas sorri e segui minha irmã pela rua, entre as duas fileiras de luzes amarelas que saíam do chão e iam aos céus, e mal percebi quando os fogos começaram. 



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— … um monte de pessoas ali — disse Emy, apontando para a multidão reunida. — Vamos ver o que é?

 

Nos aproximamos do local. Havia uma espécie de ringue de pedra, um tanto pequena, com quatro barreiras de mana o espreitando. Um feitiço, vindo de uma das pessoas de dentro, colidiu com a barreira, fazendo-a tremer. Emy disse que não conseguia ver — na verdade, nem eu conseguia — e coloquei-a em minha cacunda. 

 

— Estão lutando com feitiços muito rápidos — disse Emy, de cima. — Tipo você e Miguel. 

 

Deixei uma risada escapar. Ellie comentara dos duelos. O ringue era bonito, e o apresentador vestia um terno cabuloso. Os sussurros começaram sobre o representante estar aqui, e Emy riu de mim, dizendo que eu era famoso. Quando tomei uma boa posição, notei que os feitiços eram usados apenas em forma de corda e continham o mínimo de mana possível para se estruturarem. Era um duelo específico, ambos os duelistas estavam suados e ofegantes quando pararam no centro e me encararam. 

 

Droga. 

 

— É uma grande honra ter o representante de Lotier em meu humilde duelo! — berrou o apresentador. 

 

— Eu só vim ver-

 

— Venha para cá e nos mostre suas habilidades, por favor! 

 

— Eu não sei como o duelo funciona, eu vim apenas assistir — falei, dando-lhe uma risada sem graça. — Por favor, continue. 

 

Quando o olhar do apresentador varreu a todos, o público gritou em uníssono:

 

— Lumi, Lumi, Lumi!

 

— Eu quero ver você lutar, vai sim — disse Emy. 

 

— Tudo bem. Para você. — Acrescentei mana na ligação com Spectro, e ele rapidamente veio. — Cuide dela. — falei para Spectro, deixando o casaco com minha irmã.

 

— Sim, capitão. 

 

— Boa sorte — disse Emy, e nós tocamos os punhos.

 

Andei sem pressa para o ringue, pude sentir a felicidade do apresentador e do público quando subi as escadas. Fiquei de frente para os dois duelistas que já estavam aqui e os encarei. Quando liberei minha pressão de aura, eles ficaram confusos.

 

— Nossa, pelo visto você já sabia que só é permitido usar pouco poder — disse o apresentador, e eu apenas concordei com as bochechas coradas. — No geral, se você cair fora da arena, perde. Se for acertado três vezes, perde. Só é permitido o mínimo de proteção de aura, como você acabou de fazer — Novamente, senti meu rosto queimar. —, e magia leves! O objetivo é empurrar o adversário para fora, que vale cem pontos. Caso ele caia com as costas no chão dentro do ringue, é uma derrota por vinte pontos. Se levar três golpes, derrota por vinte pontos. O contato físico é permitido quando o sino tocar, até lá é apenas um duelo mágico.

 

— Entendi. — comentei e comecei a saltitar, os dois duelistas mostraram os dentes de forma confiante quando foram para o outro canto da arena.

 

Dois contra um? Seria uma boa preparação para derrotar certo grupo de indivíduos que andam em cinco. 

 

Fazia um tempo que eu não praticava assim. O número de pessoas duplicou ao redor enquanto eu me aquecia. Cumprimentei brevemente os adversários e o apresentador iniciou o duelo.

 

O menino de azul cruzou os braços, e três fios de água surgiram de seus dedos. Vieram até mim com uma velocidade razoável, incapazes de sequer me tocar quando me movimentei entre eles. Porém meu senso de esquivas me fez ativar o Olhar da Aura, e uma rajada fina de ar — capaz de rasgar minha blusa — quase acertou meu ombro. Uma distração. Os fios de água vieram de novo, desta vez, eu olhei com cautela para a mana que se formara na direção deles. Desviei dos três fios e girei no ar quando o ataque de ar veio. Antes de tocar no chão, criei uma bola de fogo, pouco maior que minha unha, na ponta do dedo indicador. Aterrissei no chão com uma perna enquanto lançava o tiro, que foi facilmente bloqueado com uma fina parede de água. 

 

O sino tocou.

 

Ambos disparam em minha direção, lançando-me socos e chutes desordenados. Um braço para cada foi o suficiente para defender seus golpes. Por mais que fosse simples, ter os dois em ataque constante me dificultou na reação, e eu fiquei cada vez mais próximo da borda da arena. Até que meu coração gelou quando eu não senti nada ao tentar andar para trás. Me desequilibrei, e fui recebido com um soco na barriga. Meus olhos foram para o céu. Eu girei no ar de novo e me agarrei às bordas da arena com os dedos, rapidamente voltando para o jogo.

 

— Lumi Kai leva um ponto! 

 

O público parecia tenso, e o sino tocou. Os fios de água vieram acompanhados de cinco rajadas de ar. Eu não podia depender só das esquivas. Eu não queria. Respirei fundo e deixei que todo o som do evento, até mesmo dos ataques, fossem embora. Esquivei dos fluxos de água e agachei dos de ar. Prestei atenção no mundo com menos cores, onde havia apenas a aura de cada um presente aqui. A aura se movia nos meus adversário e se condensava em um ponto no antebraço, transformando-se no elemento. Eu podia ver de forma rasa, mas era o suficiente para me antecipar.

 

Dando-me um sorriso malicioso, eu bloqueei um fio de água com o braço. 

 

O menino do ar se preparou para atirar sua rajada, porém, antes que erguesse o braço, atirei minha mini bola de fogo em seu tríceps. Ele grunhiu enquanto recuava. O menino da água juntou as mãos e eu me aproximei o suficiente para assustá-lo e impedi-lo de atacar, atirando uma mini bola de fogo em sua barriga. Ele se desequilibrou, e o sino tocou. Com um passo rápido, dei um chute giratório, e os dois garotos foram ao chão. O público comemorou, e ideias voavam pela minha mente.

 

Para usar isso em batalha, eu precisaria ser mais veloz que o meu adversário e saber o que ele iria usar para me atacar. Eu não conseguia diferenciar bem os elementos no plano da aura, então esperar um ataque sem saber qual é me deixaria apenas na esquiva novamente.

 

— Me pergunto como você conseguiu prever o golpe dele antes de ser lançado — Uma voz familiar veio de trás, e um sentimento eufórico me atingiu. — Emy cresceu bastante. Ela já está mais forte que você? 

 

Me virei, e um largo sorriso surgiu em mim e no menino à minha frente. João estava bem mais alto do que eu, seu cabelo batia no ombro e seus olhos eram mais claros do que antes. A mana estava agitada no seu corpo, quase que condensada nas pernas. 

 

— Eu posso ser um adversário se você me permitir, senhor Lumi. — Meu amigo se curvou enquanto ria.

 

E eu senti minhas mãos formigarem para o combate.

 



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