Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 57: Olhar violeta

 

Uma bolsa média de moedas de ouro foi o que meu pai entregou a Aldara. Senti no coração ao pensar que Kanro havia pagado cinquenta moedas de ouro para que eu pudesse estudar em umas das melhores escolas do país, porém, ao olhar para as largas costas dele, uma dúvida me atingiu com força; quanto dinheiro ele teria para pouco se preocupar com isso? Gwendolyn, a secretária, podia ter se mantido neutra quando peguei meu uniforme e dois livros básicos para as aulas de hoje, mas eu pude sentir sua desaprovação. Se eu fosse levado a secretária e dependesse da aprovação dela, certamente esperaria minha expulsão. 

 

O uniforme se resumia a uma calça azul de um tecido tênue com dois bolsos, sapatos pretos e uma blusa azul com o colarinho dourado — e um bolso no lado esquerdo — muito semelhante à parte superior de um terno. A calça era um tanto apertada e meus bíceps se sentiam sem espaço, porém teria que servir porque só havia este tamanho no momento. 

 

Kanro parou em minha frente, próximo ao portão de saída, e se virou para mim. 

 

— Quero boas notas — disse ele, calmo. — Sei que com seu esforço você consegue. Você representa um rei, Lumi, mantenha suas atitudes de acordo agora. 

 

— Entendido — respondi, e o soar de um sino veio da direção do centro da escola. — Vou me acostumar com a rotina, apesar de eu querer treinar o meu físico.

 

— Se pensar em melhorar sua magia como o físico, vai conseguir um pouco mais que só aumentar sua quantidade de mana.

 

Nós tocamos os punhos e Spectro foi com Kanro, enquanto inúmeros alunos com o mesmo uniforme que o meu saíam dos prédios. Eu me sentia… igual a todo mundo. Não era a melhor sensação, mas deixei um sorriso escapar ao pensar na dificuldade que um Ritualista teria ao tentar me matar no meio de todos eles. Enquanto andava lentamente, olhei o papel da minha escala para a metade do dia. As aulas começavam às sete horas da manhã e iam até às quatro horas da tarde. Uma diversidade de conteúdos que eu nem imaginava o que eram estava escrito aqui, mas parecia ser fácil. Era só decorar o que eu ler e escrever em outro papel, por que as pessoas achavam tão difícil?

 

Indo na direção oposta de todos, ouvi sussurros um tanto desagradáveis em relação ao meu cabelo cheio e mal penteado. Cortar seria uma de minhas prioridades quando acabasse o dia. A aula era de Teoria da Magia Um, e o relógio acabara de dar meio-dia. Sozinho, cogitei seguir para onde todo mundo foi. A não ser que fosse um enorme grupo de estudos, eles estavam indo para o almoço. Guardei o papel no bolso da calça junto de minhas mãos e andei, até ouvir uma voz familiar falar:

 

— A aula de Teoria da Magia vai te dar uma ótima visão sobre a mana, ou só vai te deixar mais confuso. Acho que depende de como você vê — Bruno falara, lançando-me um sorriso gentil. — Bom te ver aqui, representante do Lotier. Quer me contar como evoluiu tanto?

 

Gritando o nome de meu amigo, apontamos as mãos, e eu logo o abracei. Queria tê-lo visto após a competição. Depois que sobrevivi a missão de Alatar eu não o vira mais, nem a Alice ou a Áki. E mais tempo ainda me separava de João… desde a época da academia. 

 

— Bem-vindo a hora do almoço — O uniforme de Bruno era esplêndido. Tomado por um preto com bordas tão douradas quanto ouro, sapatos com pequenas linhas representando os símbolos do Reino Sete e um colarinho com leves detalhes de um azul tão claro quanto o céu. — Vamos juntos ao refeitório. 



A caminhada trouxe-me um conforto peculiar. As árvores acompanhavam a trilha rumo ao refeitório, algumas, eu pude comprovar e provar, eram até mesmo frutíferas. Mesmo debaixo do sol, um leve tremor chegou ao meu corpo quando uma brisa me atingiu. Parei para admirar o lugar enquanto falava com Bruno, e tinham vários bancos de madeira espalhados pelo pátio. Com o sentimento nostálgico me atingindo forte ao ser um pequeno chafariz, fiz questão de nos fazer parar. 

 

— … então você treinou por meses com duas pessoas que conheceu em uma missão? 

 

— Tínhamos objetivos em comum, e a situação meio que… que nos permitiu isso. Eu acho — ponderei por um momento, com a mão no queixo, as minhas atitudes. — O que você fez depois? Encontrou João de novo? Kashi? Amara?

 

— Minha mãe ficou extremamente preocupada por eu ter me envolvido com o Letholdus, ele estava na mira de investigação dela há tempos. Creio que era um dos com mais potencial para a energia- — Bruno parou, como se não quisesse falar algo, e voltou a andar. — diferente. Então eu precisei voltar às pressas para o reino. Porém sim, eu visitei Karin. Descobri que João pretendia buscar missões com Sander, Kashi e Aria. Depois disso, fiquei atolado aqui.

 

— Desde que cheguei, achei o reino cheio. Tem pessoas por todo lado o tempo todo. Karin não chega perto. 

 

— Isso é devido aos representantes. Famílias nobres de outras regiões e até os reis viajam para cá. Como consequência, o comércio cresce exponencialmente por um período. Costuma levar algumas semanas para tudo voltar ao normal. Agora me diga, como você chegou lá? Você usou magia! Você e Lotier planejaram o suspense?

 

— Eu tive a mesma reação quando descobri a magia em mim! E, bem… Lotier não me disse nada sobre isso, mas chegar de dragão foi a coisa mais incrível que fiz na minha vida  — falei, entrando no corredor que levava ao refeitório, passando pelas várias colunas cinza polidas. — Durante minhas experiências de luta, a magia despertou. É complicado. 

 

Finalmente chegamos ao local, e o cheiro de alho frito, feijão e arroz me levaram flutuando para a fila. O refeitório era grande, vários lances de mesas com mais de vinte lugares, janelas imensas que bloqueavam o sol de alguma forma, aparelhos nas paredes que levavam vento para todo o lugar. Peguei meu prato e, na primeira mesa que passei, coloquei frutas nele e uma na minha boca. Fui repreendido por Bruno, que disse que eu devia ter mais modos para comer. Basicamente com a maçã enfiada na minha boca, eu a coloquei de volta no prato, e a menina atrás do Bruno olhou para mim enojada e perplexa.

 

Até que as portas, do lado oposto do que vim, se abriram bruscamente, e cinco pessoas com um uniforme mais luxuoso entraram. Todos os alunos que estavam transitando ou pegando comida com as cozinheiras saíram da frente, criando um corredor. Uma pressão forte fez meus joelhos tremerem de leve, com o Olhar da Aura eu percebi que era intencional a exibição de poder. Para alguns alunos próximos era impossível esconder a tremedeira e o suor, já outros apenas olharam para baixo. Eles receberam pratos já montados, com especiarias que não estavam disponíveis para os demais alunos. Sussurrando para Bruno, a fim de evitar o silêncio que invadira o lugar, eu falei: 

 

— Quem são esses? 

 

— São os cinco maiores — sussurrou de volta. — Melhores até que os próprios professores. Eles são basicamente os reis da escola e- Para de mastigar de boca aberta!

 

Quando eles saíram, o clima voltou ao leve que estava, e aos poucos os alunos voltaram a seus almoços. Estiquei o prato para a cozinheira e lhe dei um cumprimento gentil, que foi recebido por um olhar estranho da moça. O principal do almoço era posto por ela e mais duas pessoas; arroz, feijão e atum, nesta sequência, os demais alimentos para o almoço ficavam em mesas separadas.

 

— Eles são mais fortes que você? Sempre achei incrível a forma como você usa a água.

 

— Sim, são muito mais fortes do que eu — disse Bruno ao pegar o atum, depois pegou dois pedaços de mamão. — Eles… — Bruno se aproximou. — surraram Miguel uma vez. — Deixando-me para refletir, ele saiu andando. — Você é um destaque aqui por ser representante. Por favor, Lumi, pelo seu bem, evite-os ao máximo. 

 

No resto do almoço, Bruno explicou que havia a possibilidade de eu conseguir um dormitório na escola. Eu morava perto o suficiente para vir correndo, porém fiquei curioso para passar um tempo aqui. Ele comentou sobre o horário da janta, que ficava disponível para os que fizessem atividade extra na escola. Esses alunos saiam por volta de nove ou dez horas da noite. O que devia ser o meu caso, eu nem comecei a estudar e estava devendo matéria. Eu devia ter prestado atenção na explicação da Aldara. O lugar estava mais vazio, estávamos de volta ao pátio. Ele alertou para eu tomar cuidado com as aulas práticas.

 

Seria interessante ver quantos aqui queriam ganhar de mim. Eu não conseguia me acostumar a ser visto como “O Representante do Rei”, minha mente apenas me mostrava “O Lumi”.

 

— Bruno — chamei, e ele virou para mim. — Está tudo bem aqui? Em relação aquilo?

 

— Está — Ele baixou o olhar — Ainda discordam da minha mãe ter assumido o trono, mas aqueles caras não tentariam nos matar de novo assim. Pelo menos não de forma imprudente. Não se preocupe, você vai precisar se concentrar nos seus estudos.

 

— Eu sempre me preocupo, irmão.



-------------

 

Caminhei até o segundo andar do terceiro prédio depois do pátio, precisei perguntar para alguns alunos sobre como chegar aqui. Quando me aproximei, eles se endireitaram e me cumprimentaram curvando a coluna, porém eu logo disse que precisava apenas de uma informação. A fama de representante era… difícil de entender. Alguns queriam me enfrentar, outros sentiam medo. A porta da sala estava aberta, e todos os cinco alunos presentes cravaram o olhar em mim quando entrei. Fui recebido por uma brisa de ar frio que vinha da enorme janela da lateral da sala; um ótimo lugar para me sentar. As cadeiras estavam enfileiradas e viradas para frente, onde havia um quadro negro de parede a parede e a mesa de professor, que continha três livros grossos, muitos papéis, uma caneta e uma maçã mordida de cima para baixo.

 

Os alunos aos poucos chegavam, porém todos falavam sussurrando. Quando um cara alto e musculoso entrou na sala — e usava um monóculo —, todos se aquietaram, e a brisa pôde ser claramente ouvida por toda a sala. Após me encarar com o rosto neutro, ele foi breve nas palavras: precisávamos começar a leitura no capítulo quinze e acabar em cerca de dez minutos todas as páginas. Abri o livro às pressas — como todos os outros alunos — e comecei a ler. Eu não tinha exatamente essa prática, então resolvi me apressar. O capítulo se resumia ao elemento água e em como criar formas variadas a partir dos feitiços, tanto para defesa quanto para ataque. Enquanto eu lia, o professor escrevia no quadro como alguém que queria ir embora o quanto antes. Os alunos já estavam copiando.

 

Todo mundo já acabou?

 

Cheguei à parte onde havia figuras de exemplo mostrando os feitiços que poderiam ser feitos a partir da água; réplicas perfeitas das mãos humanas, armas de qualquer tipo de tamanho, escudos circulares que desviavam ataques. No fim, tinha três parágrafos que ensinavam a aproveitar a mana ambiente. Havia mana em tudo, e ela podia ser usada por nós. Comecei a copiar apressadamente o quadro que já fora totalmente preenchido, até que o professor começou a falar:

 

— Dominar um elemento depende do quão grande é sua afinidade com ele, porém, em situações mais específicas do que podem compreender no momento, é possível dominar um elemento de modo “Bruto” a partir de uma mínima afinidade com o mesmo — Alguns alunos levantaram a mão, mas ele ergueu o braço e sinalizou para que esperassem. — Para entenderem melhor, usemos a mana pura como exemplo — De sua mão, um fio de areia surgiu, transformando-se em uma esfera. — Ela se transforma no elemento que deseja com o que vocês imaginam e podem controlar, da mesma forma que a mana pura pode ser usada. Porém ela exige mais controle e atenção, mais maestria. Muito mais que apenas cobrir o corpo uma simples e mísera camada dela. 

 

Com suas palavras circulando na minha mente sem que eu pudesse raciocinar nada, ele permitiu que os alunos perguntassem; e a aula se tornou um bombardeio de perguntas. Nas anotações do que entendi, estava que o elemento era mais maleável que a mana pura, porque quando ele entrou na criação de feitiços eu não entendi nada. Podíamos usar o poder de maneira abrupta, como soltar fogo pelas mãos apenas por soltar, e usar com conhecimento, como atirar fogo com as mãos. Um feitiço exigia entender como ele funcionava. Minhas explosões. Eu consegui levar o poder para os punhos na hora do impacto e liberar a energia quando atingisse o pico.

 

— … por isso dominar o raio sempre foi e ainda é raro até hoje. Os que dominam não entendem a capacidade do poder. 

 

— E sobre a luz, professor? — perguntou um aluno. — Tem poucas informações sobre ela nos livros da biblioteca.

 

Trea usava! Tinha essa magia na guerreira de Balnor!

 

— Isso vai um pouco além dos meus conhecimentos, Arthur. Ela sempre foi um mistério. Creio que seja um pouco mais que apenas um elemento usado a partir da magia conhecida.

 

Triste, saí da sala com o livro e o caderno na mão. 



-------------



O corredor rapidamente se esvaziou quando todos entraram nas devidas salas. Acreditei ter dormido por alguns minutos na aula de meditação profunda, e o último desafio que me aguardava era “Domínio Elementar Três”. Entretanto, no caminho da aula, o baque de espadas atingiu com força meus ouvidos, fazendo minhas mãos formigarem. Uma espiada, apenas. Sozinho no corredor que começara a ficar escuro, cheguei a uma porta entreaberta, e um fio de luz trazia cor ao corredor. Prendi a respiração e me aproximei, logo olhei com apenas um olho pela brecha. 

 

O choque das espadas vinha de um elemental de água e de uma mulher que usava mana pura. Eles eram velozes. Ambos se distanciaram e voltaram com força para o centro do tatame, quando uma onda de ar fez meus pés deslizarem para trás e a porta se abrir. 

 

Eles emitiam mais energia que Miguel, eram dois dos cinco.

 

Eles pararam depois do choque e olharam diretamente para mim. Tentei sair do feixe de luz, mas uma voz grossa e maliciosa surgiu:

 

— Como eu não o vi aí antes? — Sentiram minha presença? — Seu lugar não é aqui, representante. 

 

— Deixe-o entrar — A menina da mana pura disse, e eu fui devagar até a porta de novo. 

 

— Vamos ensinar ele a não bisbilhotar — O homem trocou a espada de mãos e me lançou um sorriso maníaco.

 

— Eu- — pausei por um momento, sua aura era grande. — Preciso ir para minha aula.

 

Quando me virei, no entanto, esbarrei em alguém. Seus olhos azuis maldosos fixaram-se em mim, precisei inclinar meu pescoço para cima para encará-la. Seu cabelo ruivo caía sobre os ombros, e uma espada ondulada estava em sua cintura. Ela deu um passo para frente, suas mãos em meus ombros me empurraram para trás. Ela não sorrira, não demonstrara nenhum tipo de emoção. Apenas disse com uma voz serena, trazendo o ar de ódio para mim:

 

— Tome seu lugar, representante. Nós mandamos aqui.

 

“Evite-os”, a voz de Bruno ecoou. Eu apenas abaixei a cabeça e me desculpei. Ignorando a zombaria dos outros membros, eu segui para fora da sala. Não tinha porque me envolver com eles. Afinal, eu desconhecia seus poderes, nem possuía conhecimento sobre suas famílias. Lidar com os cinco juntos, quando eu não podia vencer ao menos um, estava fora de cogitação. Porém eu iria me informar, precisava saber quem eram, mesmo que por hora fosse evitá-los.

 

Um certo sentimento veio do meu âmago quando me virei para trás. Os olhos violetas da menina que usava mana pura fixaram-se em mim, sua pressão de aura vinha como uma onda capaz de agitar as paredes. Ela não demonstrara exatamente ódio, muito menos superioridade. Parecia um desafio, uma afronta, e ao mesmo tempo passava curiosidade. No entanto, no centro de sua demonstração de poder, eu não cedi e permaneci de pé, virando-me de costas. Disposto a melhorar, eu corri para a próxima aula. Precisava me adaptar a essa rotina o quanto antes para ir ao treino físico. Eu havia me esquecido, mas…

 

Quem eu queria superar se escondia atrás de um capuz. Como poderia temer perante isso? 



Comentários