Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 48: Um motivo para ficar de pé



O espantalho superior ativou a densa aura e três almas passaram a circular o seu corpo. Emeru estalou o pescoço e cobriu o corpo com uma camada leve de mana. Ele sozinho era tão perigoso quanto Letholdus ou Grannus, e o abismo entre nossas forças era cada vez maior para mim, por mais que minha mente se recusasse a aceitar isso. Trea via Cecília partir para longe, seus olhos ainda calmos. A aura amarelada de Trea tomou conta de suas pernas, logo do seu peitoral e por último de seus braços. Porém era de um brilho peculiar, uma fluidez diferente de como a mana geralmente funcionava. O poder era puro, belo, refinado. Fiquei contente com o Olhar da Aura me permitir ver isso.

 

— Posso lidar com a velocidade — disse ela. — Mas por pouco tempo.

 

— Magia do elemento luz — Sairon falou, seu queixo levemente caído. 

 

Elemento luz? Mais rara que o raio e o magma?

 

— Pensei que ninguém mais podia usar — Breaky comentou, seus olhos arregalados. — Que ensinamentos o rei Balnor possui?

 

— Os servos de Lu’ir deixaram ensinamentos — Ela disse séria, e sua energia brilhante alcançou a sua espada.

 

Trea desapareceu, e uma forte corrente de ar quase me tirou do chão. A espada de metal coberta por mana colidiu com a arma mágica do espantalho. O baque deles rasgou parte do chão, e os movimentos a seguir eram mais rápidos do que meus olhos podiam acompanhar. Era como se eles tivessem, literalmente, desaparecido durante a luta. Um raio de luz aqui, um rastro verde ali. Que nível de poder era esse? 

 

— É familiar para mim — sussurrou Spectro. — Eu acho que… — Seus olhos encontraram os meus. — eu já vi esse poder. 

 

Eles finalmente voltaram a aparecer. O espantalho lançou as almas em Trea, mas elas apenas circulavam ao redor dela. Os movimentos de ataque, defesa e esquiva eram perfeitos. A espada dela era mais fina que as demais, no início eu achei que seria inútil, mas ela simplesmente era intocável e conseguia acertar mais de três ataques seguidos entre os passos. Novamente o espantalho cercou Trea com as almas, que apenas circulavam o corpo da menina.

 

Elas não tocavam a luz. 

 

— Eu sei que é incrível apreciar e estudar a luta dela, mas — disse Sairon, apontando para o inimigo se aproximando. — temos tarefa.

 

Emeru vinha com uma expressão furiosa. Seus cortes se fechavam lentamente, e sua espada parecia arder como nunca. Breaky tomou a frente, seu único braço bom segurava a enorme espada rajada. O bíceps dele devia ser maior que a minha cabeça.

 

— Vou manter o foco dele na minha arma.

 

— E eu vou retardá-lo — respondeu Sairon, que ficou em minha frente. — Lumi, use isso — Ele me entregou suas duas adagas. — Vocês precisam atingi-lo. 

 

O material dessas armas era incomum. Pareciam densos e hiper leves se comparados a qualquer espada que eu já tenha usado. Dei uma para Spectro, e ele apertou firme o pomo dela. Breaky foi na frente já preparando seu ataque lateral. Sairon e Spectro foram logo atrás, e eu dei uma última olhada para a luta de Trea. Ela sozinha encarava um espantalho superior em uma luta tão rápida que, até com o Olhar da Aura, eu sentia dificuldades em acompanhar. 

 

Como inimigos fortes assim…

 

Me aproximei de Spectro. Breaky tentou um corte lateral, mas Emeru bloqueou com a espada de chamas e tentou partir Breaky em dois. Correntes vermelhas o impediram de completar o movimento e Breaky se afastou.

 

Eu perderia se estivesse sozinho.

 

Emeru se soltou das correntes e avançou contra Sairon, porém o meu goblin enfiou a adaga em seu joelho. Emeru gritou de agonia, mas quando tentou pegar Spectro, ele passou por debaixo das pernas dele em um rolamento. Antes que Emeru conseguisse se virar, minha lâmina fez um rasgo em sua barriga. 

 

Talvez eu não precise pensar em matar Grannus sozinho, afinal.

 

Ergui meus braços e a pressão do soco de Emeru fez meus pés deslizarem. Meus antebraços tinham uma tonalidade roxa agora, a dor era semelhante a quando Grannus rachou meu osso com um chute. Trea se manteve lutando no ritmo insano, usando magia em uma mão e a espada sem aura na outra. Eu só podia torcer para a mana dela durar até o fim. Nós mantivemos a formação por vários minutos, e a energia do grupo descia ao decorrer. Emeru era esplêndido quando se tratava de se soltar das correntes de Sairon e bloquear de um a quatro golpes, deixando passar, de vez em quando, apenas dois ataques nossos. Cada ataque dele era preciso e causava um dano significativo em nós, então bloquear já era inviável. Porém nem sempre se esquivar era possível.

 

Essa espada do inferno continuou dando energia para ele, suas feridas, por mais devagar que fosse o processo, continuavam a se fechar. Breaky havia levado vários golpes, a força com que segurava sua arma já não era mais a mesma. Spectro brilhava muito menos do que antes, pois eu estava além do limite da minha mana. Sairon parecia esgotado, e, por mais que mantivesse o ritmo de luta, eu podia ver o físico dele a poucos minutos de desmaiar. Emeru tinha gastado boa parte da energia física, mas me enganei ao pensar que ele cederia antes de nós. Se eu tinha cem de energia, ele tinha dez mil. Então nossas definições de exaustão foram um ponto que desconsiderei na luta. 

 

Meu mundo estava ficando escuro, eu estava com falta de ar. Era difícil me manter de pé, meus membros estavam lentos e reagiam a apenas alguns comandos. Emeru rebateu a espada de Breaky para cima e conseguiu acertar seu enorme punho de mana em Sairon. Meu amigo foi amassado no chão, seus olhos perderam o brilho e sangue jorrou de sua boca. Spectro pulara atrás de Emeru, mas o vilão girou e o acertou com o cotovelo. A adaga de Spectro se partiu, e ele saiu girando no ar até atingir o chão. Um joelho meu cedeu, e Emeru parecia duas vezes maior quando surgiu com a espada levantada em minha frente. A espada de Breaky, destruída, caiu ao meu lado.

 

A formação se quebrou, mas eu não iria parar.

 

— Ataque do Spectro! — gritei.

 

Emeru sorriu e me atacou. Cobri meus braços com uma camada extra fina de mana, deixei um pouco de energia para a adaga de Sairon e peguei o resto da espada de Breaky. Em uma tentativa fútil de amenizar o dano, coloquei as lâminas em minha frente. A espada de Emeru as destruiu e alcançou o meu peitoral. Lentamente eu senti o metal aquecido rasgar a minha pele, e meu corpo logo foi ao chão com um zumbido irritante em meus ouvidos. Todo meu poder restante havia ido para o meu companheiro, e correntes vermelhas prenderam os braços, as pernas e a espada de Emeru, deixando-o irritado. 

 

Que posição vergonhosa eu tomei. Se Ellie estivesse olhando, eu ia querer dar o golpe final. 

 

Emeru tentou socar Sairon, que estava dando o melhor para ficar de joelhos no chão, mas Breaky usou um passo de ar e surgiu como um vulto ao meu lado. Ele pegou a espada destruída no chão e deu outro passo de ar, ficando entre Emeru e Sairon, bloqueando o soco.

 

Como eles podiam ser tão mais rápidos do que eu? Quem liga? Emeru estava retido.

 

As correntes o deixavam imóvel, mas Sairon estava caindo aos pedaços. Breaky o impedira de usar a única mão livre, mas também estava à beira de ceder. Apoiei meus braços trêmulos no chão e levantei meu rosto. Vomitei um bocado de sangue, minha visão já estava vermelha. Gritei com todas as minhas forças: 

 

— É agora ou nunca! 

 

Spectro surgiu atrás de Emeru e sorriu. Sua mão estava coberta por uma aura branca ofuscante; os últimos vestígios da minha energia. Emeru virou minimamente o rosto, mas eu conseguia ver o que esse desgraçado estava sentindo. Desgosto e medo tomaram conta da face do inimigo, e Spectro afundou seu punho no crânio dele, trazendo um som desconfortável aos meus ouvidos. Emeru grunhiu de dor e sangue começou a escorrer de sua boca, seus ferimentos haviam parado de se fechar. Spectro tinha um dos olhos coberto de sangue verde e seu corpo estava repleto de ferimentos. Mas ainda assim ele prendeu Emeru em um mata leão, usando suas garras no pescoço e na nuca dele. Emeru tentou soltar as correntes de Sairon, gritou de dor e tentou se debater, mas Spectro não largava. Os braços de Breaky tremiam com a reação de Emeru, e as correntes estavam cada vez menos brilhantes. 

 

— Venha aqui! — gritou Emeru. 

 

Minha surpresa ficou estampada em meu rosto. O espantalho havia perdido um braço e a metade do rosto, seu corpo estava todo esburacado. Ele disparou na direção de Emeru mais rápido do que antes com uma alma atrás dele. Foi quando eu vi Trea. Ela estava ofegante, um de seus olhos fora acertado por um corte que vinha da testa, suas pernas tremiam e tinham vários hematomas, o braço que segurava a espada tinha várias partes em carne viva e a mão do outro braço tinha três dedos quebrados. O horror atingiu meu coração, fazendo respirar fundo apressadamente. O olhar exausto de Trea estava em mim, buscando o mínimo de esperança que eu sabia que não poderia dar. 

 

Eu simplesmente gritei e fiquei de pé. Fortes dores de cabeça fizeram-me cambalear, e toda a dor no meu corpo me deixou com vontade de morrer. Tudo estava vermelho, e a alma se aproximou de mim tão rápido que-

 

Eu fui atingido, e meu corpo voou longe.

 

Emeru empurrou a espada de Breaky com um grito gutural, a quebrando em vários pedaços, e meu amigo foi ao chão. Emeru puxou Sairon junto com as correntes, segurou sua perna e bateu em Breaky. O espantalho pulou para Emeru e teve a cabeça segurada, e logo esmagada. A energia do espantalho correu pelos braços de Emeru, e cinco ilusões do Emeru surgiram, cada uma com seis almas em suas costas. 

 

Metade do meu rosto estava no chão, sujo pelo meu próprio sangue. Eu fiquei sem reação. Havia cinco dele agora. Eu tinha certeza que alguns dos meus ossos estavam quebrados e outros rachados. O zumbido em meu ouvido crescia exponencialmente, a escuridão tentava a todo custo me levar. Eu não tinha uma gota de mana no corpo, meus amigos estavam destruídos no chão, até mesmo Trea estava paralisada ao ver a situação. Emeru segurou Spectro pelo pescoço, a energia do meu amigo lentamente desaparecia. Tudo estava perdido, então por que…

 

Por que eu sentia tanta vontade de me levantar?

 

— Pelo visto — disse Emeru entre arfadas. — eu terei mais que a minha recompensa. 

 

Ele estava gastando muita energia para manter as ilusões, mas a espada estava repondo. Spectro buscava socorro em mim, seus olhos me diziam que ele não queria morrer. 

 

Eu não iria deixar.

 

— É um ser interessante para estudar, entende? — Emeru olhou Spectro. — A energia deles não é deste mundo. 

 

Aos poucos, eu me ergui. Apoiei na árvore. Mesmo sentindo o sangue escorrer pela minha testa, mesmo sentindo que cada parte do meu corpo protestava em se mover, eu havia escolhido levantar. Cada passo trazia um estalar nos meus joelhos, mas meus olhos permaneciam fixados em Emeru. A pequena mana que se carregava em minha aura apareceu, distraindo-me do latejar em meu cérebro. Eu estava longe de ter um poder para me salvar, e mais ainda de ter forças para vencer. Mas eu tinha o Olhar da Aura e o Reflexo. 

 

Eu podia adivinhar qual era o real.

 

— Você está péssimo — Emeru riu, e todos os cinco me cercaram. — Você consegue adivinhar qual é real?

 

Umas das ilusões arremessou o corpo de Spectro no chão, que tinha o corpo quase inteiramente transparente. 

 

Eu só precisava sentir.

 

Fechei meus olhos e respirei profundamente. Só havia um Emeru no plano da aura, e ele estava tão esgotado quanto eu. Ele ergueu sua espada, pronto para cortar a minha cabeça.

 

— Me pergunto como os Ritualistas falharam em matar você.

 

O ataque veio, mas foi direto para o chão. Eu estava no ar. Eu tinha desviado. Emeru me encarou com puro ódio. Em um grito gutural, levei meu calcanhar direto para o seu queixo. O maxilar de Emeru estalou e o gigante começou a cair.

 

— Eles perderam assim!

 

No meio da queda, ele conseguiu levantar a espada, fincando-a na minha perna direita. Eu caí de costas, as dores fizeram-me gritar, mas Emeru continuou de pé. Quando foi puxar a espada, no entanto, Trea surgiu perfurando o seu braço com uma espada de luz, e Breaky esbarrou em Emeru, levando ambos para o chão. O arder das chamas incessantes fizeram-me convulsionar. A lâmina quente e o fogo tornavam o corte insuportável, eu não conseguia parar de babar e de me contorcer. Sairon tentou puxar a espada, mas sem resultado. Continuei a gritar, a escuridão tentava a todo custo me levar, porém ele usou as correntes. Minha visão embaçou quando Sairon retirou a espada e a jogou no chão, sua voz me chamava de muito longe… e eu só conseguia ver a silhueta do Spectro no chão. 

 

Emeru parecia ter arrancado a espada de magia de Trea e correu para a floresta. Eu tentei me levantar, disse que precisava pegar ela, entretanto da minha boca só saiu sangue e palavras incompletas. Trea, com sua voz distante da minha consciência, disse algo sobre a minha perna. Quando olhei, eu fiquei grogue. O ataque havia atravessado. Eles pareciam agitados, mas meus ouvidos levaram todo o som para muito longe. Estava muito perto de matar esse puto! Eu pude ver esse covarde fugir, a energia dele era pequena!

 

Caralho, que merda!

 

Sairon desabou e Breaky também. Com o sangue quente, eu olhei para Trea e dei meu melhor para completar a frase:

 

— A gente precis- — Fui recebido por um tapa dela.

 

— Acabou!

 

Nos encaramos por um momento, e o meu sangue começou a esfriar. A escuridão tomou conta de quase tudo, e eu percebi o corpo de Spectro próximo de desaparecer. Um baque baixo veio quando minha cabeça tocou ao chão, e o latejar da espada flamejante de Emeru se tornou o som de uma fogueira em meio a uma floresta silenciosa. A escuridão se fechou bem no fogo.

 

Naquele maldito fogo.



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