Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 44: Além do que eu posso ver

 



Ekila e Araú moveram-se desconfortavelmente em seus acentos, suas mãos apertavam firme as cordas, e o suor começou a encharcar suas roupas. Nossa única fonte de iluminação era a imensa lua, que se destacava até mesmo entre as infinitas estrelas. Porém, quando entramos no milharal, um breu profundo nos engoliu, e tudo que eu enxergava era a beira da vegetação. Com Breaky na frente e Sairon atrás, mantive meus olhos atentos aos lados. O som da carruagem se movendo era destaque nesse ambiente silencioso. Permiti que a mana fluísse pelos meus olhos e o plano das auras tomou conta da minha visão. 

 

Mas estava vazio.

 

De repente, os cavalos frearam bruscamente. Gina e Faime me encararam e engoliram seco, e logo ouvi Sairon descer da carruagem. Ele abriu a porta e nossos olhos se encontraram, logo desci para o acompanhar. Dei uma rápida olhada por todo o lugar novamente, quando Gina tocou o chão e gritou. Breaky sacou sua enorme espada e Sairon cobriu suas correntes com uma camada leve de aura vermelha. Faime parecia assustado demais para sair, enquanto os pilotos se jogaram para dentro da carruagem. Os cavalos tentavam se soltar, como se algo estivesse vindo da nossa frente. 

 

Gina apontou para cima, e tudo o que eu pude ver foi um espantalho com uma aparência peculiar. Seu corpo fora construído como se tivesse os órgãos internos rasgados, seus olhos de vidro refletiam a luz lunar de uma maneira que parecia estar nos observando. Suas mãos foram presas uma na outra com facas e um machado jazia na palma de uma delas. Seus dentes falsos refletiam um aspecto podre, todo desestruturado e com moscas que saíam de dentro dele. Araú e Ekila encararam-o fixamente por um tempo, mesmo quando Sairon disse que era apenas um espantalho. Até que uma discórdia se seguiu.

 

— Nós não queremos prosseguir — disse Araú. — Até que é o suficiente. Se os boatos forem reais, nós iremos desaparecer também. — Araú deu uma rápida olhada para trás antes de continuar. — Mas também não queremos voltar.

 

— Se decidam — falou Sairon, e todos nós olhamos para a estrada escura à frente. — Não me parece seguro ficar aqui fora — Logo também olhamos para o caminho de volta, que também era coberto por um breu. 

 

— Nós vamos — disse Ekila rapidamente. — Deve ser mais seguro perto de vocês.

 

— Lumi-

 

— Eu sei — interrompi Sairon, ativando o Olhar da Aura em seguida. 

 

Estranhamente a sensação de ser observado me atingiu com força. Contive qualquer sentimento que quisesse se manifestar e continuei verificando o vasto milharal. Eu podia sentir uma presença aqui. Uma presença morta. Era difícil formular isso em minha mente, pois ao mesmo tempo que refletia a essência de um ser vivo, era desprovido de qualquer aspecto físico, soltando uma energia diferente. Seria esse o perigo aqui? Não, era como a mulher da cafeteria. 

 

— Nada vivo próximo — falei, meu tom sereno e meu olhar distante. — Podemos prosseguir. 

 

Quando dei um passo para a carroça, algo caiu atrás de mim. Gina, Faime e os pilotos gritaram por um momento. O corpo do espantalho havia caído, e agora eu pude ver detalhadamente cada parte de seu corpo. Parecia terem tentado recriar o corpo humano de uma forma descomunal, havia gosma no lugar dos cortes e aberturas, uma espécie de veias pelo seu corpo e moscas saindo de dentro dele. Era um risco levar todos para lá, porém um pressentimento me impediu de mandar eles voltarem por aquela floresta. Ekila e Araú acalmaram os cavalos e seguimos viagem vagarosamente. Os cavalos pareciam desconfortáveis em seguir, e eles deram o melhor para iniciar uma conversa no caminho. 

 

No meio de toda a vegetação, havia uma casa de madeira em perfeito estado. O clima ficou um pouco mais leve quando notei que eles deram uma leve risada de alívio, mas durou pouco. Os rostos outrora felizes agora refletiam um semblante assustado, muito próximo ao choro. O armazém próximo a casa, aparentemente feito de metal, fora trucidado. Vários arranhões o circulavam, e passos próximos fizeram cada pelo do meu corpo arrepiar. Mas desta vez eu sorri. Senti Spectro se empolgar, sua forma de goblin cada vez mais perto de se manifestar.

 

Como eu tremeria se meu objetivo era arrancar cada parte do corpo de Grannus? 

 

Apontei a espada na direção dos passos, mas Breaky agira antes de mim e o som do metal colindo estalou no ar. Uma mulher de armadura preta e dourada disputava força com Breaky, seu sorriso maníaco e malicioso deixava claro que ela queria esfolá-lo. Um brilho azul, acompanhado de uma fumaça da mesma cor, saía da grande espada dela. Partes de armadura mágica se formavam lentamente nas canelas e nos antebraços da mulher. Que magia era essa? O chão ao redor deles levantou enquanto disputavam força e lentamente criavam uma cratera. 

 

— Eu disse para não voltarem aqui — Seus olhos vermelhos brilharam quando ela os abriu completamente. Ela lambeu os lábios e liberou mais energia, e Breaky usou o auxílio da terra no corpo, evitando ser esmagado pela pressão da aura dela. 

 

— Nós viemos ajudar! — Sairon gritou, e um longo silêncio se seguiu. — Somos o time de Karin.

 

Aos poucos, a magia diminuía. Quando Breaky e a mulher se afastaram, eu notei que havia prendido a respiração. Uma gota de suor escorreu ao lado do meu rosto. Gina e Faime se esconderam atrás de mim, e os pilotos atrás deles. Então com uma pressão de aura grande eu posso causar efeitos do tipo nas pessoas? Eles guardaram as armas e os olhos vermelhos e doentios me encontraram. A armadura dela ainda tinha leves brilhos de magia, mas desapareceram como vários vagalumes voando juntos. 

 

— Sem Magia — disse ela de maneira imparcial. — Me impressiona que esteja aqui. Não tem medo que Balnor estude seu corpo? — Seu sorriso malicioso voltou. 

 

Que bela boas-vindas.

 

— Aqui é a fronteira — disse Sairon. — Não é das terras do seu rei.

 

— Tsc. Por hora, Watanabe. Vamos entrar.

 

Ela foi na frente, dando a volta na casa, e nós a seguimos. 

 

— É bom entrarem com os animais — Ela pausou e olhou para trás por cima do ombro. — Se quiserem eles inteiros. — Ela gargalhou de uma maneira que me deixou desconfortável. 

 

Araú e Ekila se prepararam para voltar, mas, após verem o breu, chamaram Gina para ir junto. Gina arregalou os olhos e suas pernas tremeram por um momento, e ela logo olhou para mim. Suspirando fundo, tomei a frente. Os cavalos se acalmaram conforme nos aproximamos. Arau e Ekila os acariciaram, depois os levaram enquanto conversavam com eles. Me virei e os segui, mas novamente senti algo me observar. Desta vez eu senti os olhos esverdeados e profundos me encarando fixamente. Olhei rapidamente para todos os lados, preocupando eles, mas nada encontrei. Quando me virei, Faime esbarrou em mim e acabou gritando, chamando a atenção de todos de novo. 

 

O que tem dentro desse milharal que nem eu posso sentir?  

 

Dando uma última olhada para fora, eu entrei na casa. Diferente do lado de fora, que parecia novo e perfeito, dentro estava empoeirado. Um silêncio perturbador tomou conta do lugar, até que a mulher que atacou Breaky juntou as mãos e liberou uma leve rajada de aura ao redor, e outras duas mulheres surgiram. Uma tinha o cabelo ruivo, olhos amarelados e um cajado na mão, enquanto a outra um cabelo branco acinzentado e uma espada na parte traseira da cintura. Ela parecia calma demais, sua aura me dizia isso. A mulher de olhos amarelos mergulhou em meu olhar, e por um momento eu senti como se ela soubesse de algo. 

 

— É melhor manter a barreira de som ativa — O que? Magia de som? A menina de cabelo acinzentado diferiu uma pequena esfera de magia para o chão, e o poder se espalhou por toda parte. — Nenhum som poderá sair daqui com isso. 

 

Cerrei a mandíbula e desviei o olhar. Como ela fazia isso? Eu poderia fazer tanto…

 

— Pensei que eram mais daqueles moleques — rugiu a mulher que atacou Breaky, e ela olhou para mim. — Apesar de eu ainda ter minhas dúvidas. 

 

— Permitam-me iniciar as apresentações — disse a mulher de olhos amarelos. — Eu me chamo Rhiannon, venho em nome de Balnor resolver o problema nesta fazenda. Peço que perdoe a hospitalidade da Cecília.

 

— Tudo bem — respondeu Sairon. — Cuidado nunca é demais — Ele pausou. — Eu me chamo Sairon Watanabe, venho junto com meu grupo e viemos em nomes dos reinos. Acredito que cada um deva falar o mínimo de suas habilidades para conseguirmos trabalhar em equipe adequadamente.

 

Rhiannon foi a primeira. Seu poder consistia em criar e manipular formas mágicas, fossem adagas e lanças ou pequenas criaturas, o ponto forte dela era a magia e ataques à distância, por mais que soubesse lutar no corpo a corpo. Sairon e Breaky eu já conhecia. Trea, a mulher de cabelos acinzentados, era quieta e atenciosa, falou apenas que podia acelerar a velocidade dos ataques. Cecília disse sobre sua armadura mágica e o poder de ataque brutal da sua espada sem dar muitos detalhes. Gina era curandeira e sabia lutar na linha de frente, um equilíbrio perfeito da sua magia. Faime usava uma espada e aparentemente pouca magia. Em minha apresentação, comentei apenas sobre ser útil com a espada e possuir uma certa perícia com adagas. Claro que, com o título de O Sem Magia, era simples esconder o meu trunfo. Mas sem o devido cuidado os Ritualistas facilmente me identificariam. 

 

— Podíamos lutar quando isso acabasse — disse Cecília para mim. — Mesmo que meu foco seja matar o único útil de vocês no reino — Ela pausou. — Príncipe Miguel Enguerrand.

 

Imagine se ela soubesse. 

 

Quando o grupo começou a falar, eu senti me observarem da janela. 

 

— …não sabemos ainda como as pessoas sumiram. Qualquer dungeon de assombrações se encontra longe daqui — Rhiannon falava, e meu olhar permanecia na janela. — O ser que veio aqui podia dilacerar o metal. Esse lugar pode ter sido amaldiçoado, ou alguém com um poder tão grande para vencer qualquer guerreiro sem ao menos deixar rastros de batalha. Sem corpos, sem vestígios de magia. Me arrisco a dizer que até mesmo os rebeldes desapareceram — Rhiannon suspirou. — Essa é possivelmente uma missão superior ao nível Fulgor.

 

Assombrações… ou aparições?

 

— Eu sou a futura campeã de Balnor — exclamou Cecília. — Eu posso queimar todo esse milharal.  

 

A ideia era boa, disse Spectro da minha aura e eu concordei. 

 

— Apenas se necessário — falou Sairon. — Temos que preservar o máximo desse terreno, as pessoas ainda viverão aqui — Cecília resmungou, e Sairon continuou: — Existe alguma criatura do seu reino que devore humanos? Alguma que já tenha causado problema ou que tenha escapado? 

 

— O único devorador de humanos que ouvimos falar era o Laiky que atacou Karin — disse Cecília de modo arrogante. — Mas essa espécie só vive na fronteira do seu país com sabe-se lá aonde. Até mesmo o Coletor Cirlan foi incapaz de confrontar um. — Um aperto surgiu em meu peito com a menção do meu antigo líder, mas dei meu olhar para manter-me neutro. — Se ele ao menos fosse compete-

 

— Cecília! — gritou Rhiannon. — Basta. 

 

Cecília me encarou e deu um sorriso, e minha mandíbula começou a doer à medida que minhas unhas perfuravam a palma da minha mão. Raiva. Ele seria contra isso. 

 

— Relatos não divulgados suspeitam dos Ritualistas. Eles têm tido muita atividade nos últimos meses. Talvez queiram atrair alguns dos guerreiros que já os venceram.

 

— Os reinos costumam ser odiados pelos países outrora derrotados — disse Trea, sua voz passava uma calma incomum, e seu olhar era ausente de qualquer emoção. — Mas não acredito ser isso. Seja como for, isso se manifestará novamente. 

 

Araú e Ekila, novamente, mostraram-se com medo da situação. Eu era assim antes? Araú e Ekila também tinham família para voltar, pessoas com quem queriam viver suas vidas. Um pesar crescia em mim com a possibilidade deles pereceram durante o perigo. Eu certamente teria medo de ser líder, o peso de comandar, de ter vidas em mãos, parecia ser um fardo mais árduo do que eu poderia suportar. 

 

— É melhor vocês ficarem no porão até que o conflito acabe. — disse Rhiannon.

 

Meus voins me achariam aqui?

 

Eles continuaram a conversa, até analisaram o mapa do terreno. Resolvi me aventurar pelos cômodos. O lugar fora preservado. Móveis arrumados, armários com portas de vidro com xícaras dentro, quartos bem adornados, lustres novos, lençóis brancos e limpos, mosquiteiros, velas apagadas… Uma pena precisarem sair daqui. A minha casa na fazenda era como essa. Grande, bonita, com minha xícara de porquinho e meu pai… Mas o goblin veio e nós destruímos tudo. Até hoje eu me perguntava como ganhei daquele ser. Ele podia usar magia densa nos braços e destruir toda a estrutura da casa com simples socos. Aqueles olhos assustadores eram tão inteligentes, eu simplesmente duvidava da lembrança de nós trocarmos socos. Ele sempre sorria, como se ele quisesse lutar especificamente comigo. Ele venceu, mas a Voz me ajudou.

 

A Voz. Você ainda estava aí? 

 

Mesmo que eu tivesse objetivos como me vingar e caçar um minotauro, no final, era tudo para proteger quem eu amava. Agora eu queria saber da voz, dos Laikys, da fronteira... Mas, antes de tudo, eu surpreenderia a todos quando voltasse. Sentindo uma euforia chegando, resolvi voltar para a sala de reunião. Mas meu corpo entrou em estado de alerta.

 

O som do metal sendo arranhado podia claramente ser ouvido. 



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