Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 43: Através do olhar da aura

O balançar da carroça tirou-me do sono e levou o meu olhar para a lua cheia de inverno. Era o segundo dia de viagem e o tempo passou a complicar o caminho, porque pouco tempo depois de admirar o céu coberto de estrelas ele foi coberto por nuvens carregadas de raios e trovões. Segurei meu casaco e o levei até os ombros, logo apoiei minha cabeça no encosto do assento e, quando fui fechar os olhos, um raio cruzou os céus, e Gina e Faime deram um gritinho. Abafei uma risada e parei para refletir.

 

O elemento raio era dominado por alguém? Os relatos do livro de Lu’ir eram de muito tempo atrás, e o foco deles estava em aprender a usar a “luz”. Eu entendia pouco de como os elementos se relacionavam com a mana, mas tinha um padrão: fogo, água, terra e ar traziam uma afinidade grande e simples com as auras, ao contrário de escuridão e magma, que, pelo livro, foi impossível de entender. Os elementos básicos possuiam uma “carga” leve que permitia a fácil circulação pela aura daqueles que nasceram com a afinidade aos elementos, então para outros a “carga era pesada”. Mas quando o assunto era um elemento variado, incomum, podia-se dizer que a carga, além de pesada, precisava ser compatível com o estilo de poder. 

 

Existia alguma magia que usasse algo além de mana? Algo além do mundo plano?

 

A carruagem parou e Sairon disse que iríamos acampar. Estávamos perto da estrada escura. Era em uma clareira dentro do aglomerado de árvores, onde todas rangiam com a força dos ventos. A escuridão dentre os grossos e irregulares troncos me trouxe um frio na barriga, pois eu sabia que haviam criaturas lá mesmo sem usar o olhar da aura. Ekila e Araú levaram os cavalos para o canto, enquanto Gina e Sairon montavam as barracas entre as árvores. Porém os ventos quase levaram uma das barracas, e eu me arriscaria dizer que Gina, por pouco, não foi levada junto. Breaky conjurou uma parede de pedra quebra-vento, facilitando o processo; pelos menos no início. 

 

Eles conseguiram montar a barraca, mas a mesma foi arrancada do chão. Os cavalos estavam desconfortáveis e os pilotos com medo, aos poucos eu podia sentir olhares distantes se aproximarem bem devagar. Como não sabíamos que tipo de seres habitavam a região, acampar esta noite era essencial, mesmo que uma barraca não fornecesse a devida proteção contra os monstros. Breaky ergueu as mãos e uma aura amarela as cobriu, logo outras três paredes de pedra cobriram as falhas barracas. Breaky criou um espaço específico para os cavalos, assim todos conseguiram entrar pela porta oval. Com mais um toque de magia, ele finalizou criando um teto. A estrutura era irregular, com curvaturas e deformidades notáveis, mas o controle de Breaky com o elemento terra havia melhorado muito. 

 

Com o olhar da aura ativo, consegui enxergar cada ser a pelo menos cem metros aqui. De fato, o lugar era habitado, e eu poderia verificar depois caso fosse preciso. 

 

— Vamos explorar? — disse Sairon, que estava do lado de fora comigo. 

 

— Não, não tem nenhuma ameaça aqui — respondi, meu olhar em Faime dando a vida para acender uma fogueira. 

 

Os trovões e os raios irradiavam nos céus, e a chuva logo começou. Galhos grandes caíram das árvores, e alguns troncos foram incapazes de resistir ao ataque dos céus. Sairon se apressou para entrar e eu rapidamente fui atrás dele, mas uma sensação estranha me fez parar na porta. Direcionei meu olhar para a escuridão dentre as árvores, o clarão dos céus trazia e retirava luz, mas nada surgira ali. A estrada parecia normal, a chuva levara embora qualquer vestígio que a carruagem tenha deixado. Suspirei, deixei-me ouvir cada gota cair sobre o teto da barraca de Breaky. Senti as energias de cada raio que caíra próximo aqui, deixei o som dos trovões tomarem conta da minha audição. A sensação, de repente, se foi. Minhas vestes se encharcaram e Sairon me chamou para dentro, então me virei para ele.

 

Até que senti algo atrás de mim. 

 

O céu, por um segundo, iluminou o local, trazendo à vista uma criatura parada me encarando fixamente. Era humanóide, pele cinza, o maxilar parecia quebrado, pois estava em um ângulo impossível para um humano, e poucos órgãos expostos. O lábio irregular dele se transformou em um sorriso medonho, e um arrepio sem igual percorreu a minha espinha. Uma rajada de vento que carregava diversos gravetos e pedras alcançou a criatura, chegando a arrastá-la do chão, mas ela continuou a me olhar. Até que uma criatura morta colidiu com o seu corpo e ela desapareceu, e eu me toquei que a luz já fora embora há muito tempo. 

 

— …Kai! — Spectro disse da minha aura, e eu saí do meu transe. — Por que está encarando o escuro? Ele só apareceu por um segundo. Vamos entrar. 

 

Breaky selou a porta e uma fogueira a mais foi acesa devido a baixa temperatura. Os pilotos cuidavam dos cavalos do outro "cômodo" da barraca, e Sairon e Breaky dividiam a comida que seria feita esta noite. Gina parecia mexer com alguns frascos e poções, e Faime tentava colocar a comida na fogueira. Aproveitando o ambiente calmo, eu sentei no canto. Meus equipamentos estavam ao lado de uma das fogueiras, eu esperava que secassem antes da viagem. Por mais que eu quisesse parar e ler o livro de magias, essa questão cutucava a minha mente com uma foice de ferro. 

 

Aquela senhora estava e não estava lá, como se o plano dela pudesse ser visto apenas por mim, mas que seu mundo viesse pouco à tona, Agora aquela criatura estava lá, eu vi os gravetos colidirem na pele dele, eu vi o ser morto levar o corpo medonho dele junto com o vento. Não podia ser coincidência, eu estava começando a ver uma espécie de fantasma. Teria isso a ver com a mana que eu sou incapaz de usar? Ou o fato de Spectro ter se fundido a minha mana? Independente disso, eu queria ir ver, por mais que fosse imprudente da minha parte. Se eu encontrasse aquela criatura…

 

— O que há? — perguntou Sairon, sua voz se destacava entre o estalar da madeira queimando. — Usou o olhar da aura?

 

— Talvez — respondi, e logo fiquei de pé. — Fiquem a postos.

 

Breaky me lançou um olhar cauteloso, enquanto Faime e Gina arregalaram os olhos.

 

— Eu posso ir com você — disse Sairon, seu olhar imparcial.

 

— Não, está tudo bem — Sairon e Breaky cerraram o olhar quando eu falei. Liberei o mínimo de aura esverdeada antes de continuar. — Eu não irei sozinho.

 

Vestindo apenas minha calça e a adaga, sinalizei para Breaky criar uma abertura na cabana de pedra. Saí apressadamente e cambaleei, logo o vento começou a me levar. Usei o mínimo de mana nas pernas e consegui me manter de pé, meu olhar confrontava a vasta escuridão. A água caia insanamente, e uma aura verde trouxe luz ao lugar. Os fios de energia aos poucos se conectaram, a forma de goblin lentamente se tornava cada vez mais visível. Até que o ser de aura branca esverdeada surgiu por completo, e seus olhos esmeralda sem fim encontraram os meus. Andamos até onde ele tinha surgido, mas nenhum vestígio de magia estava presente. O olhar da aura estava vazio, como se fossemos os únicos por perto. 

 

— Um fantasma? Uma ilusão para nos atrair para fora e nos matarem lentamente? — disse Spectro. — É um tanto arriscado sair assim.

 

— Ainda estou camuflado dos Ritualistas — respondi, meus olhos perdidos na escuridão. — E vamos representar um rei, quem está em perigo são os monstros que cruzarem o meu caminho.

 

Até que um vestígio de mana surgiu, fraco e esverdeado, trazendo-me uma sensação familiar. Com o olhar da aura, nada importava. Quantidade de luz, sons, empecilhos. Eu simplesmente podia ver a aura de alguém através de tudo. O pequeno grão de energia estava no início da trilha para o topo da colina. Eu e Spectro corremos até lá, e, para minha surpresa, havia mais e mais grãos. Como se tivessem sido soltos em um intervalo fixo de tempo até o topo, uma trilha se formara. 

 

Estava nos chamando

 

Desvencilhando-me da visão, a chuva, as árvores e o escuro surgiram novamente. Passei a língua nos lábios e bebi a água da chuva, uma sensação de euforia tomava espaço no meu âmago. Por mais que fosse quase impossível enxergar, eu sabia exatamente para onde seguir. Deixando um sorriso escapar, eu comecei a andar. Conforme nos aproximávamos da trilha, mais eu entendia o sentimento familiar que me consumira. 

 

— É uma magia diferente… Peculiar — disse Spectro. — Tenho certeza que já senti em algum lugar, me lembra um produtor de magia, como a-

 

Falamos em uníssono:

 

— Pedra mágica! 

 

— Isso- isso é preocupante — disse ele, seu olhar tenso procurava algo ao redor. — Meu passado, talvez a resposta de como eu fui criado, vem de uma energia semelhante a esta! — Ele apontou para a trilha escura. — Vamos!

 

Spectro foi na frente e eu o segui um pouco atrás. A trilha parecia perfeita demais para essa região, as árvores eram perfeitamente espaçadas, o caminho, por mais que tivesse chovido, estava relativamente fácil de se andar, pois haviam extremidades inferiores nos cantos que levavam toda a água e sujeira. Com nossa ligação, eu conseguia sentir meu amigo preocupado, quase como se estivesse com medo do que estaria por vir. Perto do topo, o rasto estava muito maior. A energia estava fresca, uma grande quantidade fora depositada no centro da clareira próxima ao topo da colina. Andamos por mais de quinze minutos. Meu coração começou a acelerar, senti ser observado novamente. Neguei ao instinto de ativar o olhar da aura e entrar em guarda, se eu queria respostas, eu precisava confiar. 

 

Eu queria. Como poderia representar Lotier se sentisse medo de um ser que nem se declarou meu inimigo? Ele era medonho? 

 

— Óbvio, mas eu quero encontrar ele.

 

Spectro pulou e arregalou os olhos, suas garras prontamente afiadas.

 

— Você está falando sozinho?

 

— Não… — disfarcei. — Vamos virar a direita. 

 

— Fora da trilha? Não consigo ver nada lá.

 

— Sim, apenas ve-

 

Foi então que, com ambos de frente para o grande breu, eu senti a presença de algo grande. Algo vivo e imenso bem na minha frente. Dei um passo rápido para trás e apontei a adaga para frente. Spectro se pôs em guarda um pouco atrás de mim quase que relutante. Independente do que estivesse aqui na minha frente, eu sabia, eu sentia, que poderia me matar com um único levantar de garras. Minhas pernas queriam tremer, mas eu me convenci e guardei a adaga, logo meu amigo me lançou um olhar confuso e fez o mesmo com as garras. O olhar da aura falhou, deixando-me apenas com a escuridão.

 

— Eu- Eu só quero conversar — falei, aproximando-me devagar. Meu coração parecia que ia sair pela boca. — Por favor, não iremos te atacar.

 

— Você surtou de vez… — Spectro sussurrou. — Eu não quero ver essa coisa. 

 

Spectro deu outro passo para trás e, por um instante, eu senti a presença do ser na minha frente se erguer. Porém um brilho azul veio do escuro na forma de dois enormes chifres e um alce de olhos inteiramente azuis claro surgiu e me jogou no chão, tomando um rumo ao meio da mata em seguida. Os vestígios de magia aos poucos sumiam, o que fez meu olhar baixar. Permaneci no chão por alguns instantes, apenas senti as gotas me atingirem e as árvores balançarem.

 

— Parece que não vamos ter respostas hoje — falei enquanto levantava. — Por que você tem medo da energia que te criou? — perguntei, olhando diretamente nos olhos dele. 

 

— Não quero falar disso agora — Sua feição se corroeu. — Isso não teria a ver com aquela tal Voz que você ouviu?

 

— Não sei, ainda fico confuso com isso. Ela só apareceu quando eu estava à beira de morrer. Foi assim que eu toquei na luz e-

 

— Matou o goblin que desapareceu e deixou a pedra em que eu nasci — Spectro suspirou. — Eu estou ligado a você agora, mas eu ainda quero saber de onde eu vim. Eu sinto que eu deixei algo para trás, algo como eu tenho com você.

 

— Uma amizade?

 

Spectro desviou o olhar, e nós passamos um tempo em silêncio apenas, deixando o som ambiente se destacar. Ele logo virou e disse:

 

— Uma família — Ele pausou. — Eu não sei, só quero voltar e descansar por hora. 

 

Quando voltei para a barraca, peguei a roupa de antes e coloquei a minha para secar. Eles haviam feito uma lareira improvisada. Ekila e Araú ficaram o tempo todo próximo a ela enquanto tomava um chá de ervas, Faime estava com medo demais para dormir e foi conversar com Breaky e Sairon estava meditando. Gina foi a única de nós que conseguiu dormir, o que era bom, a magia de cura dela certamente salvaria o grupo. Havia vários medicamentos perto dela. Eu não entendia, mas sabia que era difícil criar remédios. Dedicada. Os colchonetes estavam arrumados, eu logo me deixei deitar em um após evitar as perguntas dos outros. 

 

Mas os pensamentos continuaram a me afligir, cutucando minha mente com o fato de uma segunda aparição ter surgido. Alguém queria me dizer algo? Era uma mensagem de uma pessoa de maior poder? Ou algum ser que ninguém poderia compreender? A Voz sumira há tempos, e eu estava sedento por respostas. Respostas que eu iria encontrar. 

 

Após uma noite mal dormida, nós seguimos com a viagem. Demoramos pouco mais de um dia até finalmente vermos o milharal. O pôr do sol tornava a fazenda um cenário magnífico, mas de longe eu já conseguia sentir. Era a energia que eu encontrara antes, a magia de um ser que não era desse plano. Como a última missão antes de representar um rei, eu prometi me esforçar.

 

Nenhum ser de outro mundo iria me parar. 

 



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