Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 42: Densidade mágica

Mantive meu olhar fixo na praça sem nenhuma alma circulando. O sino por algum motivo me trouxe uma estranha sensação de conforto e vida, fazendo-me olhar cinco vezes para trás. 

 

— Meu Deus. Era um fantasma? — disse Spectro. — Os Ritualistas acharam a gente? Vão vir nos matar! 

 

— Calma — falei alto, mas logo baixei o tom. — ela não tinha aura. Pode ser que queria apenas conversar.

 

— Ainda é assustador. 

 

Respirei fundo e andei até o rio próximo, então fechei os olhos e deixei a neve trazer um toque congelante ao meu rosto. 

 

— Nós entramos em uma dungeon de monstros variados, vimos seres de três metros de altura, vimos um Ritualista louco, ficamos no meio de dezenas de monstros e você acha que uma moça inofensiva é algo assustador, meu querido Spectro? — Uma criança me olhou com pavor quando eu acabei de falar, logo deixou o pirulito gigante cair no chão e correu enquanto gritava pela mãe.

 

— Sim, verdade — Spectro riu. — Talvez eu esteja temendo um pouco os homens de máscara.

 

— Não tema. Você é meu maior apoio contra eles no momento.

 

Verifiquei meus equipamentos e resolvi partir para o portão principal da cidade. O bracelete ainda me confundia, pois ele funcionava com um quantidade específica de mana e, aparentemente, em momentos específicos. O escudo triangular de metal foi o que eu menos usei, porém era bom guardar. Se esse item tivesse algum potencial oculto, eu precisaria descobrir. O livro de estilos variados de mana me serviu pouco, havia diversas páginas faltando e uma história por trás de cada feitiço ali descrito; fora que magia ainda era meu ponto fraco. Uma história com páginas rasgadas. Frustrante. A adaga ficaria com Spectro e as duas espadas em minhas mãos. Dei uma leve verificada na lâmina e, me deixando rir um pouco, torci para que ela aguentasse o fogo. 

 

 

Me aproximando do portão, vi um elfo de capa verde e com um cajado de madeira com um orbe verde opaco na ponta e uma menina de cabelos loiros e olhos esverdeados. Andei devagar, até que eles me perceberam. Fiquei feliz em saber que estavam vivos e ainda se aventuravam. Faime arregalou seus olhos ao me ver a ponto de seu cajado dançar entre as suas mãos. Gina me lançou um olhar determinado e estufou o peito, e eu apenas me aproximei. 

 

— Se-senhor Lumi!? — disse o elfo surpreso. — Nós- você- ele-

 

— Faime — disse Gina, rigidamente. — Sumir após conquistar a fama em Tera foi uma tática muito… interessante, Lumi Kai.

 

— Tática? Famoso? — Arregalei uma sobrancelha. — Vocês continuaram a fazer missões após aquilo?

 

Eles se entreolharam e abaixaram o olhar por um momento.

 

— Voltei devagar, pegando uma missão ou outra — Gina pausou. — mas nas últimas semanas essa missão foi uma das mais faladas entre os reinos. A nível Laum, é claro. Então resolvi ver, já que era apenas investigação.

 

— Uma investigação onde pessoas não retornaram — disse Faime, sua voz trêmula. — Eu realmente não sei porque eu vim com você.

 

Sairon veio do outro lado dos muros e acenou para mim, e logo recebeu um cumprimento formal de Gina e Faime. Eles comentaram sobre estarem honrados por terem a chance de lutar ao lado do “Grande senhor Watanabe”, porém eu sempre vi ele como um amigo. Desde aquele dia. Sairon disse que arrumou uma “carruagem” disposta a ir para o local mais perigoso. Foi aí que eu descobri que havia dois tipos de motoristas: os comuns e os avaliadores. Quando os aventureiros mapeiam regiões, há infinitas reclamações sobre o nível de perigosidade para comércio e transporte, dado que nem todos têm acesso ou dinheiro para pagar guardas e magos. Então, esses avaliadores eram pilotos dispostos a acompanhar aventureiros para verificar se o nível de perigo era verídico.

 

Que doidera, como coletor tudo que eu queria era evitar perigo. 

 

Quando Sairon acabou de explicar, disse que partiríamos no pôr do sol e que não toleraria atrasos. Abafei a risada e coloquei as mãos no bolso, logo levei meu olhar para o céu, mas senti Sairon se aproximar. 

 

— Lumi, vai checar sua mana com Spectro — Ele aproximou o rosto e sussurrou: — Consegui informações a mais, e é possível que haja alguma Ritualista lá. Vocês dois precisam estar em sincronia para não acontecer de novo.

 

— Certo — respondi calmo. — É bom que tenha um.



Hora de repassar o treino de magia. Eu ainda precisava entender como usar a mana com eficiência, porém ter uma espécie de invocação que sugava o mínimo que eu tinha dificultou as coisas. Um trunfo nas batalhas, certamente, mas era separado apenas por uma mísera linha ao lado ruína caso a mana acabasse. No meio passeio na cidade, vi diversas famílias passeando, aventureiros que se preparavam para ir a dungeon, casais comendo juntos… Eles pareciam tão felizes. Saberiam eles do inferno que esse mundo podia ser? Bem, quando eu morava na fazenda, eu também desconhecia de toda a maldade que existia. 

 

Mas pelo menos eu sorria sem preocupação. 

 

Afastando os pensamentos, voltei a caminhar. Perto da floresta, Spectro saltou de mim. O goblin pequeno de aura branca bocejou e meu olhou com aqueles olhos verdes esmeralda. Arremessei a adaga para ele e ele deu um sorriso ao segurá-la. Eu podia sentir um elo entre nós, era diferente dos outros aventureiros com as invocações em que a conexão se resumia a um fino fio de magia. Era semelhante a-

 

— Vamos duelar? Sinto que estou enferrujado — disse o goblin baixinho. 

 

— Não vamos treinar o físico hoje — Um desânimo alcançou o seu rosto. — Sua forma ainda suga muita mana, e o pior é que eu ainda não compreendo o porquê.  — Sentei na posição de meditação. — Sei que temos pouco tempo, mas se houver um Ritualista lá, tenho certeza que precisarei do “ataque do Spectro”. 

 

— Bem, eu vim de uma pedra e, curiosamente, fui de alguma forma transferido para você — Spectro se sentou de costas para mim, e uma leve brisa de ar cruzou o espaço entre nós. — Talvez eu consiga me desvencilhar da sua mana se arrumar outra fonte, mas o problema é que minha origem mágica só me permite usar o que você tem — Spectro suspirou em derrota. — Vou trabalhar no meu ataque especial, que por sinal deveria ser referido como “O grande ataque do Spectro”.

 

Fechei os olhos e deixei minha consciência afundar no poder da minha aura. Cada som externo foi lentamente diminuindo até se tornarem tão distantes que eu mal pudera ouvir. Respirei fundo, permiti que cada membro do meu corpo relaxasse. Mesmo a neve e as brisas eram quase imperceptíveis quando tocavam na minha pele. Foi então que eu enxerguei no vazio escuro a minha aura branca com minúsculos raios esverdeados ligada ao Spectro. Deixei que meu poder circulasse. O fluxo estava mais veloz, a mana circulava com mais leveza e quase na medida que eu desejava. Depois de vários minutos analisando meu poder, eu consegui ver minha ligação com o fogo. Sem dúvidas era o que mais consumia minha energia, fosse mágica ou física, isso me desgastava em apenas um ataque máximo. Repeti o processo soltando mínimas gotas do poder de fogo e finalmente cheguei a parte que eu mais ansiava aprender, porém havia ignorado por tempo demais. 

 

Essa aura agitada ficava sempre no canto, distante e sem interagir com nada. Eu não sabia o porquê de Spectro ter se ligado a mim, mas seria eu capaz de fundir e usar esse poder? Era agitado como uma tempestade, sempre se movimentando, crescendo, criando pequenas explosões e as contendo. Eu senti meu coração acelerar, estar perto dessa densidade mágica era semelhante a estar de frente para um vulcão em erupção, ou até mesmo uma tempestade em alto mar. 

 

Eu queria me fortalecer, mesmo que houvesse dor. 

 

Ergui meu braço imaterial e tentei tocar, mas diversos raios surgiram e uma grande explosão me arremessou para longe. Por um único segundo, eu vi, dentro de todo aquele poder, uma esfera branca, mas rapidamente eu voei para o vazio eterno e perdi a concentração quando senti meu corpo físico fora do chão. Quando eu abri os olhos, eu estava no ar. Minhas costas bateram contra a árvore e eu caí de joelhos no chão. Spectro havia sofrido do mesmo destino, pois vi ele saindo de uma moita reclamando de dor. 

 

— Valeu a tentativa?

 

— Sim — falei, enquanto me aproximava. — Vamos voltar o foco para a meditação. 



Perto de anoitecer, vesti minha capa marrom e Spectro se camuflou em mim. Senti familiaridade durante o caminho até a saída da cidade. Eu havia passado sete meses na dungeon e voltei diversas vezes para me equipar. Mas, por hora, esse era o meu adeus para esse lugar. Eu fiquei mais forte, porém precisava de mais. De muito mais. Antes de cruzar o portão de saída eu dei uma última olhada para trás. 

 

O pôr do sol estava esplêndido.

 

Passei pelos guardas e saí. Do lado de fora da cidade, Sairon estava sentado na frente da carroça com os pilotos enquanto lia um livro grosso. Breaky estava na parte traseira, e Gina e Faime no interior. Cumprimentei-os e entrei, aconchegando-me no canto da janela direita. Apoiei meu cotovelo na borda e minha cabeça sobre a mão, até que Sairon e os pilotos dialogaram sobre a missão. 

 

— Por isso eles pagam mais por essa viagem — disse a mulher ao lado esquerdo de Sairon. — Nenhum piloto queria nem se aproximar do reino daquele maldito Balnor. A guilda não queria divulgar que pessoas sumiram nessa missão para economizar dinheiro, mas a gente não liga, deve ser tudo boato de rebeldes locais. 

 

— Pois eu acho que é tudo verdade — disse o piloto homem. — As pessoas não sumiram à toa. Eu quero ver com meus próprios olhos, mas se tiver risco e vou fugir. Minha mulher me mataria se eu morresse, e eu tenho filhos para cuidar. 

 

Notei Gina e Faime ficarem rígidos com o diálogo, e logo Breaky disse sobre os relatos dos papéis. Eles chicotearam os cavalos e a carruagem começou a se mover. O assunto se seguiu de o que podia ser verdade ou não até teorias do que poderia ter feito as pessoas desaparecerem. Analisamos o mapa, olhamos detalhadamente todas as áreas ao redor, até mesmo as dungeons distantes, para mapear possíveis fugas de monstros ou detectar irregularidades nos níveis de perigo. Sairon arriscou e disse sobre um possível Ritualista estar lá e mesmo que tenha causado medo nos pilotos eles resolveram continuar a jornada. Gina falou bastante, mesmo estando tensa; diferente de Faime, que passou a engolir seco a cada palavra ouvida. 

 

Sete meses sem nenhum deles me caçar e agora minha atenção tinha que estar além do máximo. Eu sempre quis saber o porquê desde o dia do minotauro, quando eu era apenas um menino incapaz de usar poder. O minotauro tentou me atacar, mesmo quando todos achavam que ele estava morto. Um erro que eu acreditei que os Ritualista não cometeriam, então teria sido intencional? Teria algo a ver com a magia intocável que eu tinha? Ou seria por que meu pai é importante? Talvez a árvore de pétalas de rosa?

 

Ou a voz? 

 

Mas eu fiquei mais forte e arrumei mais amigos. Direcionei meu olhar, que estava na escuridão da floresta, para meus companheiros, que agora estavam rindo. Bruno, João, Lotier, Fent, Aria… Me perguntei como todos eles estavam. E, claro, eu tinha uma mentora sensacional, cuja presença eu desejava ter novamente. Mesmo com tudo sido, eu ainda sentia que devia muito a Cacele e ao Kaled. Uma vontade imensa de pedir perdão havia crescido dentro de mim. Deixando as lembranças fluírem, eu senti vontade de rir e de chorar. Momentos com a minha família surgiam juntos de momentos como o que levou Cirlan ao coma, ou como o goblin que me deu a pedra onde tinha o Spectro.

 

Eu tinha dois nomes: Grannus e o Laiky.

 

Mesmo que fosse impossível vencê-los agora, eu tinha mais esperança. Eu queria fazer cada um deles pagar, queria o sangue deles derramado sobre o chão. Toda essa organização que infernizou minha vida devia perecer, eu desejava uma morte lenta para eles. Letholdus escapou por pouco, mas eu não cometerei esse erro novamente. Ele também não iria viver mais.

 

Nem a prisão o protegeria, nem que eu fosse condenado por isso. 

 

— Lumi — Breaky disse pela janelinha de trás. — Está tudo bem?

 

Olhei para ele, logo uma dor irradiava em minhas mãos. As unhas haviam feito a palma sangrar. Gina e Faime tinham adormecido, e Sairon continuava na frente com os pilotos. Dei um fraco sorriso para Breaky e o respondi:

 

— Sim, só acabei pensando demais — falei, suspirando em seguida. — O que está fazendo aí fora?

 

— Podemos ser atacados — Breaky colocou o indicador na cabeça. — Costume de passar meses em um lugar perigoso.

 

Dei uma leve risada e deixei-me deitar. 

 

Talvez eu precisasse relaxar um pouco. 



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