Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 3

Capítulo 41: A senhora dos cachos prateados

O caminho de volta para as muralhas foi rápido, já que nenhum monstro surgiu devido ao clima congelante do inverno na Dungeon a Céu Aberto. Cogitei a possibilidade de sermos atacados por gaviões lâmina, ou goblins maiores, mas o único problema era andar com a neve que alcançava os meus joelhos. Breaky e Sairon carregavam os itens que recuperamos no meio tempo e as sobras do jantar de ontem, que, segundo Breaky, era um pecado desperdiçar uma comida que quase custou nossas vidas. 

 

A muralha já teve melhores dias, outrora enorme, lisa e intocável, fora coberta por arranhões e buracos fundos o suficiente para alguma criatura pequena se esconder. Eu me arriscaria dizer que algum monstro conseguiu entrar, porque o arranhar no aço do portão só me lembrou de um único ser. Aquele desgraçado. Sinalizei para os elfos arqueiros no ápice do muro e depois de um breve momento o portão gigante trouxe o som desconfortável do ranger aos meus ouvidos. 

 

Passei muito tempo nesse lugar, tempo o suficiente para estar desatualizado sobre o mundo. O voin de Lotier me passava breves recados do rei sobre as missões e, de vez em quando, lembrava-me da data da representação. O de minha mãe era o que mantinha meu coração aquecido contra todas as adversidades. Mesmo que a voz viesse do voin, que eu visse apenas a escrita dela, era a passagem para eu falar com ela, Emy e o meu pai. 

 

Eu queria muito ver eles. 

 

Quando os portões finalmente abriram para uma pessoa bem magra passar de lado, nós entramos. A inspeção básica foi demorada como de costume. O médico examinou minhas pupilas, meu paladar, minhas reações com os movimentos e o meu psicológico. Era difícil de acreditar que o rei Balnor se importava com as pessoas que entravam aqui, portanto era óbvio que era apenas para divulgar o nome de seu reino. O Senhor Nolor lançou um olhar de decepção ao me ver vivo novamente. Sem ele perguntar, eu falei que havia dito que ia voltar, pelo menos, mais uma vez e fui ao campo de treino aberto — o qual estava inteiramente vazio. 

 

Havia cerca de três grupos de pessoas que tentavam consertar o lugar, e cada grupo tinha dois guerreiros de armaduras pesadas e armas gigantes e dois magos com trajes e cajados que deixavam claro sua nobreza. Desde o dia do incidente, eu passei a achar esse lugar despovoado, porém chegou ao ponto de todos desistirem de treinar aqui. Uma das maiores muralhas das fronteiras e o melhor time de defesa foram incapazes de segurar a onda de monstros que conseguiu — por pouco — adentrar na cidade após destruir brutalmente os muros. 

 

Eu também evitaria vir para cá. 

 

Na grande sala de missões, no entanto, estava relativamente cheia. A aura dos guerreiros presentes aqui ultrapassava facilmente a vasta multidão que antes se encontrava. Às vezes, eu me esquecia de que era o único capaz de enxergar além da aparência e acabava confundido Sairon e Breaky na hora de lutar. O terror e as ameaças elevaram o grau de perigo desta região, trazendo apenas fortes guerreiros e grupos poderosos para expedições. Me perguntei, tentei imaginar a todo custo, como era a fronteira onde era proibido entrar se fosse inferior ao nível Aurora, mas estava além da minha compreensão imaginar tal poder. Spectro riu quando ouviu as pessoas falarem do tal Menino da Lâmina de Fogo. "Ele estava no incidente e sozinho levou uma legião de monstros", " a espada dele ardeu em chamas", "por que ele anda com os caçadores? Se ao menos estivesse sem aquele capuz…”.

 

Ficar famoso anonimamente tinha seus critérios. 

 

Passamos pela segunda muralha e andamos pelos vastos campos cobertos de neve até a cidade. Um pouco mais cheia que o comum, ela tinha soldados com um símbolo diferente no peito da armadura. O símbolo de Balnor. Uma pessoa com uma coroa perfurando o coração de um dragão. Ouvir sobre esse reino me causava aflição, os boatos e canções sempre se referiam a Balnor como uma espécie de deus, e em alguns quadros… Ele escravizava o próprio povo.

 

 — Precisamos nos abastecer antes de partir — disse Sairon. — É a última missão, precisamos fazer todo o treino valer a pena. Um detalhe importante: é em uma fazenda dentro do reino de Balnor. Ou seja, o cuidado é dobrado.

 

 — Um pedido de ajuda disponibilizado na fronteira? — questionei. — Isso é solicitar ajuda dos dez reinos.

 

 — Impossível — interrompeu Breaky. — Seria uma amostra de submissão se mostrar incapaz de resolver um problema interno. Suponho ter sido os moradores do campo. Já que são escravos do campo, o reino não se importa com o que acontece nas fazendas; a não ser que afete diretamente sua produção privada. 

 

Uma curiosidade sem fim atingiu a minha mente.

 

Andando pelas vielas, alcançamos a grande praça. Hoje, um número consideravelmente grande de pessoas tinham jornais em mãos, fazendo-me pegar um também. Breaky e Sairon me observaram, e eu logo levei meu olhar ao conteúdo do papel. Miguel aparecia na capa acompanhado de diversos parágrafos de elogios de famílias nobres. Os reinos inferiores passaram a considerar ele o representante mais forte. “Força brutal”, “resistência”, “magia”... De repente, eu me vi de frente para ele no enorme estádio, no meio de milhares de pessoas. A ordem de poder sempre foi do maior número para o menor, Miguel foi bem ao quebrar essa ideologia preconceituosa. Ignorando a maior parte da primeira notícia, cheguei à terceira página, onde mostrava Lotier, grande Rei Nove, sem representante. Teorias de preparar um guerreiro perfeito e filas para pedir para treinar sob a coroa dele tomaram conta das páginas seguintes. 

 

Ele realmente põe fé em mim, deixando o suspense no ar sufocar a todos. 

 

 — Está nervoso, Lumi? — disse Sairon, que estava lendo pelas minhas costas. — Ele parece um cara bem forte.

 

Deixei um leve sorriso escapar e logo respondi:

 

— Espero que estejam lá para torcer por mim — Breaky e Sairon riram, mas confirmaram presença. 

 

Pequenos flocos de neve voltaram a cair, e uma brisa de ar misteriosa virou o jornal para a última página, cuja notícia eu já esperava ver. Talvez isso tivesse sido o melhor gatilho para os Ritualistas desistirem de tentar me matar. “O Sem Magia nunca mais deu notícias. Será que desistiu?”. Era curioso me manterem nos jornais mesmo após muito tempo desaparecido, seria alguém a favor da minha volta? 

 

— Sabe, eu estava pensando isso há um tempo — disse Spectro, de dentro da minha aura. — Eu vou lutar também? Você é o Sem Magia, isso seria um choque e tanto para o mundo. 

 

— Vamos ver, eu gostava mais do apelido quando era verdade — Respirei fundo, e logo continue: — Miguel é só um príncipe mimado, mas pode ser mais forte do que eu. E, aliás, — Lembranças do Grannus surgiram em minha mente e tomaram conta da minha visão. — eu tenho um objetivo maior agora. 

 

Outra edição dos jornais. Essa começou com um grupo de magias ilegais perseguindo uma mascarada branca- Fechei e entreguei para o Sairon. Essas notícias me agitaram, melhor pensar nisso depois

 

— Vou comer e buscar equipamentos novos. Nos encontramos na entrada da cidade?

 

— Sim, a missão ainda estava lá quando olhei — disse Sairon. — Eu vou passar na biblioteca para ver algum livro de magia.

 

— E eu vou visitar o ferreiro para reparar a minha espada.

 

Eu e Sairon respondemos em uníssono:

 

— Pela décima quarta vez — E começamos a rir.

 

Coloquei as mãos no bolso da capa marrom e vaguei lentamente pela cidade. O ar gelado, por mais que me incomodasse pouco, deixava meus dedos roxos, então resolvi ir à loja mais próxima e quentinha. Spectro me deu vinte e três razões para ele ter uma adaga nova e eu concordei, porém precisava de uma roupa antes. Quem sabia quando o dinheiro acabaria? Peguei um casaco preto e uma calça da mesma cor, ambos com um tecido grosso e flexível. Me custou vinte moedas de prata. Saindo da loja, eu assobiei, e meus voins logo surgiram dos céus e pousaram em meus ombros. Ergui meu braço na minha frente e o voin de minha mãe pôs as garras em meu antebraço.

 

— Quero que envie esse recado diretamente para a minha mãe — Ele acenou, e seus olhos brilharam. — Mãe, daqui a não muito tempo eu estarei indo te encontrar, peço que aguarde só mais um pouco e não conte para o papai. Sabe o torneio dos representantes? Eu vou assistir, vou dar um jeito de você me ver. Estou com muita saudade. Te amo.

 

O voin dela voltou ao meu ombro e o do rei veio ao meu braço.

 

— Saudações, Rei Lotier — Ele me encarava fixamente com aqueles olhos completamente azuis. — Irei realizar a última missão do meu treino e partirei para o reino 7 para te representar. Peço que me aguarde apenas mais um pouco, pois eu também anseio por este dia.

 

Como um raio, ambos dispararam para o céu, trazendo várias rajadas de vento para dentro da loja. Ajeitei meu cabelo e acabei percebendo os olhares assustados dos funcionários que me atenderam. Cruzando outra rua com a neve em minhas canelas, cheguei na frente da loja do Alfrieder. Ajeitei o bracelete e o escudo de metal, logo verifiquei o meu livro. Havia duas lareiras acesas dentro da loja, e quase todas as prateleiras estavam vazias. Encarei o velho atrás do balcão e arqueei uma sobrancelha.

 

— O que foi? Eu sinto frio — Arqueei as duas. — Tudo bem, talvez eu tenha usado o nome dos Caçadores para isso. 

 

— Você usou a minha fama.

 

— Uma troca equivalente pela espada que eu te dei. Inclusive, não vejo ela. Sua capa a esconde?

 

— Ela se partiu há um tempo atrás — falei. Alfrieder lançou um olhar entristecido, então continuei. — Ela cumpriu o seu propósito. Eu vim entregar os itens pedidos. 

 

— Você-

 

— Sim — interrompi. — Flores de pétalas vermelhas. 

 

Meu coração parou quando eu encontrei a árvore, talvez a ideia de morrer sobre pétalas rosas tivesse me traumatizado. Talvez. 

 

— Muito… Muito obrigado, jovem Kai. 

 

— Vou levar duas espadas e uma adaga. 

 

— Abusado. 

 

Andei até a porta, mas a voz dele, e o que ele disse, me fizeram parar. 

 

— Rapaz, quem é esse com você? 

 

Será que ele está falando de mim? Spectro perguntou através da minha aura. 

 

— É uma longa história. Um dia eu volto para te contar. 

 

— Estarei a seu aguardo.

 

— Sei que é forte — virei para ele. — Por que não foi buscar as flores?

 

— Quando você vier, trocaremos histórias. 

 

Dei um leve sorriso e acenei em despedida. 

 

— Ele é um cara interessante — falou Spectro, e eu apenas concordei. 

 

A neve caía com mais força, e eu corri até uma pequena lanchonete, onde vendiam sanduíches enormes. Um sino soou em cima de mim quando abri a porta. Tinha uma atendente no balcão, e mais dois que conversavam atrás dela. Todos os acentos estavam desocupados. Cumprimentei a moça e tomei uma mesa um tanto distante do balcão, bem ao lado da janela de vidro. A neve embaçou todo o vidro, permitindo-me ver apenas vultos pretos andarem pela rua. A lareira tinha um toque de magia que, de alguma maneira, conseguiu manter todo o ambiente a uma temperatura boa. Na grande praça, através do vidro, eu vislumbrei uma sombra parada de pé. Era como se ela estivesse me olhando e… sorrindo. Ela ergueu o braço e acenou, e meus pelos logo se eriçaram.

 

Poucos segundos depois, uma senhora se aproximou de mim. 

 

Como ela entrou sem soar o sino? 

 

Seu cabelo era prateado, longo e ondulado com leves cachos, seus olhos de um roxo bem escuro e seu vestido era azul com adornos dourados. Ela se aproximou de mim, e nossos olhares se encontraram. Meu olhar de aura passava diretamente com ela, como se ela fosse incapaz de acessar o poder. Eu nem podia ver a aura da senhora. Relaxei, era apenas uma pessoa querendo companhia. 

 

— Com licença, meu jovem, eu posso me sentar com você? 

 

— É claro — falei, e ela sentou vagamente na cadeira à minha frente.

 

O garçom logo veio, seus olhos em mim e um pequeno caderno em sua mão. 

 

— O que o senhor deseja?

 

— Um suco de morango, por favor.

 

Ele anotou rapidamente meu pedido e se retirou.

 

— Por que-

 

— Tudo bem — A senhora me interrompeu. — Eu ouvi falar de você. Um aventureiro na grande e perigosa Dungeon. Se o Lâmina de fogo não tivesse aparecido, quem sabe quantos mais iriam para o reino dos mortos? — Segurei um sorriso, precisava ser segredo. — Você pode contar mais de suas aventuras para esta pobre senhora?

 

Um fã! Spectro comemorou.

 

— Foi uma coincidência, eu e o meu grupo estávamos perseguindo aquele monstro a dias — Meu suco chegou, e o tempo rapidamente foi passando enquanto eu me empolgava ao contar histórias. 

 

Os boatos definitivamente me mantiveram seguros. Quem imaginaria que o Sem Magia poderia usar fogo? De relance, percebi os dois homens do balcão tentando me olhar, com curiosidade e medo em estampados em suas feições.

 

— Bem, então precisei manter meu disfarce como um — abaixei o tom. — Caçador. 

 

Ela riu.

 

— Muito obrigada por compartilhar seu precioso tempo comigo, já tinha muito tempo que ninguém podia me ver. 

 

— Não há de que. 

 

Eu fiquei mais um pouco depois que ela saiu e virou à esquerda. Pelo que me lembro, era outro lance de mesas. Eu e Spectro concordamos que falar com idoso era bacana e eu me levantei para pagar. Os funcionários estavam com um pé atrás, uma gota de suor escorria na atendente na frente dos dois homens. Olhei para o outro lance de mesas, mas estava vazio. 

 

— Está tudo bem? 

 

— Sim…

 

— A senhora que estava comigo já se foi? — Eles se entreolharam assustados, e a menina engoliu seco. — O que há?

 

— Senhor, você — Ela pausou, e meu coração começou a acelerar. — foi o único cliente que recebemos aqui hoje. 



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