Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 2

Capítulo 36: Tempo de madrugada

 

Minha mão quase alcançou o Spectro. Por tão pouco eu podia… Outra mudança de cenário, agora era com Amanda. Lágrimas em seus olhos, seu corpo caído ao meu lado. Mais uma pessoa que eu fui incapaz de salvar. Logo Airo apareceu, a foice atravessada no seu peitoral. Gina tentou o curar, mas também foi-

 

Abri os olhos e rapidamente me sentei. Grunhi pela dor irradiante em minhas costelas, o latejar constante na minha cabeça, o estalar dos ossos das minhas pernas e dos braços. Minha respiração estava pesada, pois meus pulmões doíam quando eu tentava puxar mais ar. Eu estava em um colchonete, meu corpo inteiramente coberto de ataduras, e ao meu redor havia muitas outras pessoas feridas. As feições delas eram de pura dor, apesar de estarem em sono profundo. Alguns sentiam frio enquanto tentavam se cobrir com o pano que deveria ser um cobertor, outros esboçaram lágrimas, como se estivessem em um sonho ruim. Alguns sobreviveram. Olhei para o céu e me deparei com a linda beleza estrelada que ele emanava. 

 

Era madrugada.

 

Próximo a enfermaria a céu aberto eu notei uma fogueira. A área em que eu estava era no meio de árvores, como uma clareira bem grande. Era seguro ficar aqui? Cadê Alatar? Alice? Meu amigo de infância? Gina, Amyon e Ellie? Apoiei-me para levantar e percebi que o bracelete já não estava mais comigo. Mas não importava, eu queria- precisava verificar se todos estavam bem. De pé tive um olhar amplo, mas, dentre todas as pessoas aqui, não encontrei quem eu queria. Com muita dor e dificuldade, eu fiquei de pé. Caí de joelhos, pois minhas pernas cederam. Tentando mais uma vez, eu consegui me manter. Passei cuidadosamente pelas pessoas deitadas e me apoiei em uma árvore, que, do ponto em que eu estava, me permitiu ver outro grupo de pessoas deitadas nos colchonetes através da névoa esparsa. 

 

Mais sobreviveram.

 

Eu consegui enxergar alguém bem distante, próximo a outro grupo de pessoas. Tentei colocar mana em meus olhos, mas senti a negação da minha aura. Eu fui incapacitado de usar magia, esperei que fosse temporário. Então, resolvi cerrar os olhos. Alatar tinha ferimentos abertos e, com apenas uma espada quebrada, ele olhava atentamente as árvores do lado oposto ao meu. Logo atrás dele estava Rona, que mancava e tinha parte dos braços em carne viva. Estavam vivos, apesar de não tão bem. Um pouco de alívio me alcançou. No meio das árvores próximas a mim, havia uma barra com uma fraca luz. Peguei um galho grande o suficiente para servir de muleta e andei até a barraca, até que uma voz surgiu e me assustou. 

 

— Acordou finalmente — disse Breaky sentado contra a árvore, sua enorme espada destruída com ele. Quando abri a boca para falar, ele apontou para a barraca e continuou. — Lá. É melhor que veja com os seus próprios olhos. 

 

Entrei às pressas na barraca. Senti uma pontada no meu peito quando as lembranças do meu último momento com o time de coleta vieram à tona. Gina estava com a respiração pesada e seu rosto, suado, mostrava a dor que ela sentia pelos muitos cortes, mesmo que inconsciente. Ela sobreviveu. Cobri minha boca, meus olhos foram ao outro corpo. Amyon tinha alguns ferimentos abertos, de vez em quando apertava com força o cobertor curto que segurava. Minha garganta secou e paralisei. Saí da barraca e encarei Breaky.

 

— Cadê o Airo? 

 

Breaky apontou para o meio das árvores, sua expressão um tanto relutante. 

 

— É seguro, nossos líderes fizeram a ronda. — Naquele estado? Seu olhar baixou, e ele continuou. — Mais uma vez eu fui inútil para Rona. 

 

— Você salvou minha vida, e eu sou grato por isso. 

 

— Você pretende continuar a se fortalecer mesmo depois disso? 

 

Suspirei, fechei os olhos e logo respondi:

 

— Eu preciso ficar mais forte por motivos que eu ainda não compreendo. Então, mesmo se eu desistisse de tudo, se escolhesse só viver em paz, eu teria que lutar. Isso me frustra, mas ao mesmo tempo me encoraja. 

 

— Você é um pouco mais interessante do que os jornais mostraram ser — respondeu Breaky, um fraco sorriso triste se formou no rosto dele. 

 

Com dificuldade, eu atravessei as árvores que não pareciam ter fim. Estava tudo escuro e sem vida, como se uma energia pesada pairasse em todo o ambiente. Me apressei, comecei a ficar desconfortável com a falta de claridade, foi quando vi a luz fraca da lua no fim. Quando cheguei ao lugar, no entanto, minha visão ficou borrada e eu me vi de joelhos. Meu coração acelerou muito, e eu me vi com medo para mover um único músculo. Tinham covas por todo lado. Os líderes fizeram isso mesmo naquele estado? Sentindo minha garganta secar, deixei uma lágrima escorrer. Airo se foi. Minhas mãos tremeram, e eu as arrastei na terra úmida. Até que passos lentos vieram do meio das árvores, e eu me virei para ver. Era Sairon Watanabe, ele tinha flores rosas e vermelhas em suas mãos. Trocamos rapidamente olhares e ele passou por mim, chegando até uma cova específica.

 

— Eu gostava de alguém nesta vila como uma irmã — Seus olhos baixaram, e ele os fechou. — Infelizmente eu não estive aqui para você, eu disse que era perigoso, mas mesmo assim você quis vir — Lágrimas escorreram dos olhos fechados do capitão. Ele se ajoelhou e colocou as flores no chão. — Obrigado por tudo, Amanda.

 

Sairon andou lentamente até mim e parou do meu lado, o vermelho dos seus olhos se destacou nesta noite. 

 

— Você não seria um fraco por chorar — Seus punhos se cerraram, sua aura vermelha teve o mínimo de manifestação. — Eu quero que toda essa organização pague pelo que fez. Se a justiça não consegue prender e matar os encapuzados, agora conhecidos como Ritualista, então está na hora de eu ser injusto. Por algum motivo, eu sei que você também tem algo contra eles. 

 

— Você acha que nós teríamos mais chance que os dez reinos inteiros? 

 

— Os reinos foram mais afetados pela volta deles do que parece, mas nunca permitiram que a população soubesse disso. Um ataque dos países que querem a ruína deles aconteceria — Ele continuou a andar. — Se decidir reagir a tudo, não me deixe de fora. 

 

No silêncio da noite, no qual passei vários minutos sozinho, mas Bruno chegou e se ajoelhou ao meu lado. Ele me acolheu com um abraço e apoiou minha cabeça no seu ombro, lembrando-me da época em que éramos crianças e a maior preocupação que tínhamos era saber qual era a janta. Um sentimento de conforto, um conforto que eu sentira há muito tempo, invadiu meu corpo. Todo o estresse, medo e confusão que eu sentia a todo momento finalmente me abandonaram; mesmo que por um único segundo. Naquele instante, minha mente soltou as palavras pela minha cabeça, e, pela primeira vez, acreditei que elas pudessem ser reais.

 

“Vai ficar tudo bem”.



Me afastei por entre as árvores e sentei no meio do carvalho na escuridão. Joguei todas as dores e a vontade de deitar para o canto e entrei em posição de meditação. Minha aventura apenas começou, então eu não podia me dar ao luxo de relaxar agora. Perdi os únicos itens que podiam me deixar realmente forte, perdi o amigo que me acompanhava até a morte… e agora perdi minha capacidade de usar magia. Olhando para minha aura, percebi novamente os dois tipos diferentes de magia, porém vislumbrei um terceiro tipo. O primeiro era branco azulado e calmo, semelhante a energia da katana, o segundo mais escuro e agitado, enquanto o terceiro era verde e frágil, como a energia da pedra. Talvez sejam os vestígios das energias que eu manipulei. A origem delas era dos itens, mas a energia agitada vinha da onde? 

 

As dores ficaram mais intensas, tirando o foco da meditação e me trazendo ao mundo real de novo. Droga. Controlei minha respiração e voltei meu olhar para o meu interior. Desta vez, dei um foco para a mana da katana. Tentei movê-la pela minha aura, mas ela se recusou a interagir. Logo tentei a verde, porém o resultado foi o mesmo. Sobre a energia agitada, eu mal tinha influência sobre ela. Simplesmente sentia que era incapaz de tocá-la. O que havia com o meu poder? Repeti o processo diversas vezes, tanto o meu físico quanto meu psicológico foram desgastados com tentativa após tentativa. Contudo o resultado era sempre o mesmo: As energias se recusaram a obedecer.

 

Por favor, por favor… Eu mal pude sobreviver com a arma mágica, a pedra e a magia, que chance eu teria sem tudo isso? 

 

Eu dependia deles para usar o poder. Talvez tenha sido o ponto de partida. Foquei em minhas mãos e controlei a respiração novamente, concentrando cada célula do meu corpo nisso. Senti o ambiente ao redor, enxerguei cada aura presente e permiti que a energia fluísse. Ventos fracos balançaram meu cabelo e pequenos gravetos caíram sobre mim, mas continuei de olhos fechados. Depois de um pouco mais de meia hora em foco, eu finalmente desabei. Derrotado, observei o céu por entre as folhas que balançavam.

 

— Acho melhor eu descansar — sussurrei. — Tenho muito a pensar. Será que os Ritualistas são realmente um problema tão grande para os dez reinos? Então, por que… por que caralhos eles se preocuparam com alguém que nem sequer era capaz de usar magia?

 

O minotauro tentou me atacar por proteger aquele menino. Ou eu errei. Ele tentou me atacar porque era eu. Mas eu teria que considerar como sabiam que eu estava em Karin, o que diminui o sentido dessa teoria. Meu pai e avô foram famosos em vários conflitos passados, seria uma tentativa de vingança de um inimigo dessa época? Grannus e Letholdus se deram ao trabalho de tentar me eliminar porque temem que eu seria uma ameaça futuramente? Talvez eu estivesse ficando louco, afinal, essa organização tem infernizado minha vida desde o ataque do minotauro semimorto. 

 

Eu tinha que avançar mais rápido, já possuía mais que incentivo para isso.

 

O Voin de Lotier — cuja presença eu esqueci — sobrevoava o local que tomávamos conta, suas penas escuras agora eram cobertas de símbolos azuis mágicos. Lotier, um rei, me deu a chance de representá-lo e de ficar mais forte. Talvez nem tudo estivesse perdido, Spectro diria para eu aceitar. Aceitar tal cargo me tornaria mais famoso, mais próximo do conflito contra os Ritualistas e… para uma possível luta contra Miguel. O príncipe que tinha contato com os Ritualista iria ter dor de cabeça por minha causa.



Andei de volta pelo caminho entre as árvores balançantes perdido em pensamentos, meu olhar focado no chão à minha frente. Até que passos quebraram gravetos próximos e me assustaram, fazendo virar rapidamente para ver. O meu coração acelerou. Era Ellie. Ela parecia triste, mas o mínimo de esperança nasceu no seu olhar. Nos encaramos por algum tempo sem dizer uma única palavra, até ela colocar a mão em meu abdômen e me colocar contra a árvore. 

 

Ela me abraçou. Eu nunca a vi assim.

 

Ela me apertou, e eu só pude retribuir o abraço. Eu sentia a energia dela tão confusa quanto a minha. Pensei em diversas situações que poderiam ter a deixado assim, afinal, ela era uma das pessoas mais fortes que eu conhecia, tanto em caráter quanto em força. Ficamos ali na calada da noite apenas aproveitando a companhia e o conforto um do outro em meio ao vento frio.

 

Nada precisava ser dito naquela hora. 





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