Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 2

Capítulo 35: O nome do demônio

Estávamos andando pelo corredor escuro. O portão nos levou a um local que nem eu ou o Sairon sabíamos onde era. Apesar disso, aqui era desprovido de monstros, apenas um túnel estreito e sombrio sem fim. Sairon usou magia de fogo na ponta de seu dedo e criou uma pequena vela improvisada, e a luz fez companhia ao eco dos nossos passos. Andamos por mais de trinta minutos, o silêncio começou a me agonizar. Sinalizei para que parassemos e assim fizemos. Minhas costelas latejavam, a dor que vinha delas era agoniante. Os cortes pelo meu corpo ardiam cada vez mais, meus ombros pareciam deslocados, meus olhos quase cediam ao sono e a exaustão e tudo que restou da minha armadura foi o bracelete —  que eu não sabia usar — e metade da calça preta; que ainda assim estava coberta de buracos.

 

Apoiei minhas costas na parede e senti o arder quando fui ao chão, finalmente fechando os olhos. Meu corpo rapidamente ficou mais pesado ainda. O presente de meu pai estava perdido. Eu arrisquei tudo quando resolvi explodir o lugar, eu devia ter sido mais atencioso. Ele confiou a katana a mim, uma arma rara que podia interagir com a magia e gerar ataque, que eu tão pobremente desfrutei de suas perícias. Pior do que isso foi eu perder o único item capaz de me deixar forte nesse mundo injusto de merda. E pior ainda… foi perder o meu amigo. Meu peito doeu quando relembrei Spectro cair. Os cortes começaram a arder e os hematomas me impediram de dormir. Minha barriga roncou, um forte enjoo chegou até mim. Passei tanto tempo em atividade que esqueci das minhas necessidades fisiológicas. Fraco, sem energia, sem água e comida…

 

— Time de Tera? Não lembro de ter visto você no início da missão — Sairon disse, sentado contra a parede do outro lado, seus olhos vermelhos em mim.

 

— Sim, basicamente — falei, minha voz baixa. — Rona enviou um pedido de ajuda para Karin e nós viemos a pedido de Alatar.

 

— Alatar? O cavaleiro Real do Reino Sete? Seria bom se você pudesse me atualizar de tudo o que aconteceu lá fora.

 

Contei com detalhes ao Sairon tudo o que aconteceu desde a minha chegada no vilarejo até o portão do salão do Líder da Alrofy. Ele permaneceu quieto enquanto eu falava, sem mostrar nenhuma reação além de um olhar sério e passivo. Deixei de comentar sobre a queda de Amanda e a possível morte de todos que eu devíamos salvar, dizer essa parte em voz alta iria acabar com o meu psicológico já destruído. Descrevi sobre o encapuzado procurado, a criatura que se multiplicou e barrou Alatar, o caminho até aqui e todos os soldados mortos que vi. Ele fechou os olhos e inspirou lentamente, segurou o ar por alguns segundos e o deixou sair tão devagar como entrou. Os olhos vermelhos brilharam minimamente e encontraram os meus.

 

— Então há outro encapuzado aqui… e por sorte é o Letholdus — disse Sairon, seu tom investigativo. — Eu fui preso por um cara de máscara laranja. Pensei que era um dos Ritualistas superiores ou até mesmo um membro da Legião do Inferno, mas foi diferente.

 

— Diferente? Mais perigoso?

 

— Sim, um grupo que cessou as atividades há algum tempo. Sangue, membro dos Obscuros. Recompensa por volta de mil moedas de ouro. Se eles realmente voltaram, estamos deixando passar alguma coisa nessa alrofy. 

 

— Ele te prendeu naquela parede e matou o seu batalhão?

 

— Ele me prendeu na parede, mas não foi o responsável pelo meu batalhão. Foi uma criatura humanóide de quatro braços, como a que você descreveu. Se duas foram o suficiente para pressionar um cavaleiro Real, então nós jamais tivemos chances. — Sairon pausou, um peso de tristeza surgiu em seus olhos. — Durante o conflito, eu fui arremessado contra os portões. Meus soldados já estavam implorando pela morte. Tentei reagir, mas com um chute daquele monstro eu caí dentro do salão do boss e, quando ela ergueu as garras para me finalizar, ela simplesmente parou e recuou. Foi quando vi Sangue segurando uma flauta dourada, o Líder da Alrofy fora brutalmente desmembrado. Com isso, fui preso naquela merda de parede. 

 

— Sangue ven-venceu aquela criatura tão fácil assim?

 

— É o que aparentou. Agora me conte o porquê de vir a uma missão como essa. Você não parece tão forte. 

 

— Bem, é a minha primeira missão com Alatar, antes disso eu era Coletor de Karin.

 

— Com o Grande Cirlan?

 

— Sim… Alatar escolheu me levar, mesmo com minha falta de capacidade física e impossibilidade de usar magia. Então prometi a mim mesmo que daria meu melhor, que lutaria até o fim. — Sairon abriu a boca para falar, mas eu o interrompi. — Sim, eu sei. O goblin mágico tem uma explicação plausível. Spectro é mais que uma criação. Digo… ele não é bem uma criação, e a aura verde… Você não consegue sentir magia em mim?

 

— Posso ver um pouco mais — Os olhos brilharam. — Uma aura branca, pequena e fraca e outra agitada, escondida no fundo de sua aura. 

 

Então eu realmente tinha duas auras. Cada parte do meu corpo queria que uma delas fosse o Spectro, mas eu sabia que era impossível. Um som vindo do corredor escuro e sem vida, que parecia um passo pesado, nos fez levantar e continuar andando. De repente, eu conseguia sentir uma quantidade imensurável de auras se aproximando, traçando o caminho de onde viemos. Começamos a correr. Por mais que eu pudesse fugir deles, eu fui incapaz de evitar o medo. Eu me sentia nu sem meus equipamentos, armadura e meu amigo. A mana em minha aura era escassa, eu tinha uma miséria para usar. Uma explosão veio da frente, finalmente trazendo uma luz a esse túnel escuro. 

 

Sairon cobriu as pernas com mana vermelha e disparou em direção ao brilho, e eu fui incapaz de acompanhar ele. Meu pulmão doía, minha cabeça latejava. Respirar já estava difícil, e os chiados dos monstros estavam cada vez mais perto das minhas costas. De repente uma silhueta apareceu no meio da luz no fim do túnel, eu sorri esperançoso. Mas um sorriso demoníaco se abriu do que mais parecia ser uma sombra em pé. Ele abriu os braços e deu um passo à frente. Pronto para me abraçar, eu ouvi seus sussurros:

 

— Você é real, mas não será o salvador. 

 

Abaixei a cabeça e bati em sua barriga. Nós dois caímos no chão. Quando me levantei, eu vi um homem com o rosto coberto de cicatrizes, sem um olho e gravemente machucado. Era o encapuzado. Ele parecia desesperado, olhava constantemente para trás e estava mais ofegante do que eu. Olhei ao redor, a ponto de girar o meu corpo, a procura de qualquer coisa que parecesse uma sombra, mas só havia dois túneis largos a seguir. Havia uma linha de magia vermelha no da esquerda — que tinha uma buraco no teto alto — e uma escuridão eterna no da direita. 

 

— Você está vivo — Letholdus me lançou um sorriso malicioso entre suspiros. — Vai ter que decidir novamente: Fugir ou me encarar? 

 

Sairon me gritou, suas correntes vermelhas cada vez mais próximas do chão. Ele disse que não valia a pena e que o tempo era curto. O chiado dos monstros estava muito próximo. 

 

— Vai, eu deixo. Mas quando eu te encontrar de novo, eu vou quebrar cada parte do corpo da sua irmã — Meu olhar se encheu de ódio, e eu me vi ignorando Sairon. — Como era o nome dela? Emy, eu acho. 

 

Letholdus correu para a direita, enquanto eu troquei um olhar rápido com Sairon. Disparei atrás do inimigo. Corri pelo largo túnel, ele raramente olhava para trás com confiança estampada em seus olhos. Não ia ficar assim, ele não ia sair impune depois de falar da minha irmã. Mas… eles podiam ferir quem eu amava? Um breve momento de remorso e distração me trouxe um chute que me deslocou o nariz e me fez girar no ar antes das minhas costas afundarem no chão. 

 

— Você é estúpido. — Um chute na minha barriga, fui incapaz de conter o vômito. — Como alguém pode ser tão burro? — Tentei levantar, mas fui espancado antes de ficar de pé, como o outro encapuzado fez. — Por isso Grannus te espancou, você é um resto de merda. 

 

— Então esse é o nome dele… — sussurrei, conseguindo finalmente ficar de pé. — Ele que foi na cidade naquele dia?

 

— Você tinha que ver a cara do chefe quando ele disse que você sobreviveu — Ele caiu em gargalhada, e meu olhar foi ao chão.

 

— Vou me lembrar desse nome.

 

Levei meu calcanhar no queixo de Letholdus. Ele caiu de costas, mas levantou rindo. Sua mão acertou meu olho de uma maneira que me deixou zonzo. Por um momento, eu considerei cair, mas agora eu tinha um nome. Agora que sabia quem eu queria espancar. Se Letholdus ficasse no caminho, era melhor ele preparar a cova dele. Lancei um chute no estômago dele, e ele socou com força o meu estômago, fazendo-me cuspir saliva e sangue. 

 

Ele ia perecer aqui.

 

Soquei o pescoço do encapuzado, e ele caiu de joelhos com as mãos na garganta enquanto tentava desesperadamente puxar ar. Um leve sorriso surgiu em meus lábios. Ignorei o sangue quente que escorria da testa e as dores latejantes pelo corpo e trouxe à tona todas as memórias ruins que ele e essa organização de merda me fizeram passar. Coloquei a mão em seu cabelo e puxei seu rosto para cima, seus olhos agora transmitiam medo e terror. Soquei seu rosto repetidas vezes até que seu nariz se deslocasse. Ele tentou defender, mas estava fraco. 

 

Ele estava sem magia.

 

Afundei meu joelho em sua boca, seus dentes pularam para fora e lágrimas surgiram em seus olhos. Levei um chute nas costelas e grunhi pela dor, mas continuei socando e chutando. Acertei uma cotovelada no ouvido dele, puxei seu cabelo e quebrei seu nariz com um soco, joguei seu corpo contra o chão e pisei sobre sua barriga e comecei a socá-lo cada vez mais. Letholdus levantou os braços para se defender, mas eu continuava meu ataque. Comecei a gritar em cada soco, e minha visão aos poucos escurecia. Bati tantas vezes no seu rosto que o maxilar saiu do lugar. Ele tentou me segurar, mas eu segurei seu dedo indicador e, com um grito gutural, quebrei os dedos de sua mão um a um. Os gritos de agonia do ex encapuzado ecoaram. Ele conseguiu me jogar no chão com um empurrão de quadril e ficou de pé. Cauteloso e assustado, ele andou lentamente para trás. 

 

— Você- — tossi sangue. — parece um lixo. — Deixando uma risada fraca escapar, eu caí de joelhos. 

 

Ele invocou uma foice negra imensa e se preparou para me atacar. Já fiz tudo que eu podia, uma pena que eu só tenha conseguido espancar um. Quando a lâmina ficou a um palmo do meu pescoço, uma espada entrou na frente e o som de metais colidindo ecoou por todo o túnel.

 

Amyon e Airo estavam na minha frente.

 

— Precisamos levar ele daqui rápido, como o capitão Sairon ordenou! Ele não segurará aquele aglomerado de monstros por muito tempo! — gritou Airo.

 

Letholdus cerrou as sobrancelhas e rugiu, enquanto Amyon começava a atacá-lo sem parar. Airo colocou meu braço sobre os ombros dele e me levantou. O inimigo usou a energia negra para simular outra mão. Mas como essa porra funcionava? Manquei durante o curto tempo em que andamos, até que ouvimos Amyon gritar. Letholdus enfiou a foice em seu braço e colocou o soldado de joelhos, fazendo-o se contorcer de dor a ponto de revirar os olhos. Airo brandiu a espada e correu para o encapuzado, seus olhos repletos de ódio. Por consequência eu caí novamente, logo gritei o soldado. Letholdus desviou facilmente dos ataques cegos de Airo e chutou a traseira do joelho dele, logo segurou seu pescoço por trás e virou ele para mim. Letholdus enfiou a foice no coração do homem e jogou o seu corpo no chão. Novamente me vi imóvel, até que Gina surgiu e balançou os meus ombros. 

 

Outra morte. Minha culpa.

 

Gina gritou, logo correu até o corpo caído de Airo e se ajoelhou na poça de sangue que se formara. Ela estava desesperada enquanto liberava energia para curar o amigo, suas mãos emanavam aura verde no local que jorrava sangue, mas a foice negra atravessou o seu corpo também. Gina olhou para mim, seus olhos cheios de lágrimas imploravam por ajuda, mas eu fui incapaz de reagir. Letholdus balançou a foice e jogou ela para o lado, logo tentou correr para mais a fundo da caverna, mas correntes vermelhas adentraram em suas pernas e o fizeram gritar e desfazer a foice. Rona arremessou algemas mágicas que grudaram em suas mãos e diversas lâminas de magia branca se formaram ao redor de Letholdus. Muitas pessoas agitadas que eu não conseguia reconhecer surgiram, afinal, minha visão escureceu bem rápido quando meu corpo bateu no chão.

 

Eu fui fraco de novo. Mais uma vez vi pessoas partirem. 

 

Metade do rosto de Bruno estava coberto de sangue quando ele me encontrou. Preocupação, tristeza, medo, felicidade. Ele correu até mim e se ajoelhou ao meu lado, logo gritou, mas as vozes estavam tão distantes que… Com a última gota de energia indo embora, eu comecei a perder a consciência.

 

Eu merecia morrer, não eles.





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