Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 2

Capítulo 28: Nem tudo se pressente

O sons constantes das rodas amassando o cascalho e das ferraduras dos cavalos colidindo com o chão se tornaram comuns na segunda noite de viagem. Bruno estava de guarda no teto da carroça, porque depois de sermos atacados por uma manada de Hoasters, decidimos que era melhor alguém vigiar atentamente a escuridão entre as árvores. Alice decidiu ficar do lado de fora para ajudar Alatar a guiar os cavalos, e eu, Amara, Áki e Ellie ficamos do lado de dentro, enquanto meu Voin sobrevoava os céus e voltava apenas para beber água. Alatar apenas nos observou lutar na hora do ataque, em nenhum momento mostrou preocupação ou intenção de intervir. Ele era um cavaleiro Real, seu poder era mais alto do que minha imaginação podia alcançar. O grupo havia avançado muito nos dois meses que passei treinando por mim mesmo. Alice e Ellie balançavam as espadas enquanto se esquivavam, Bruno e Amara tinham um ataque com armas de mana incomum, e Áki acertou todos os disparos. Talvez eu tivesse sido o único a se esforçar para lutar contra as criaturas, provavelmente por não saber canalizar mana em meus membros sem desperdiçá-la — e meu reservatório de magia me permitiria manter a aura poucos minutos. 

 

Me perguntei diversas vezes o porquê de ninguém ter percebido a mana circulando em mim, mas, com as informações que eu tinha, continuei com mais dúvidas que respostas. Spectro permaneceu na pedra esse tempo todo, era como se ele estivesse em um estado meditativo de frente para a barreira do Selo Dois. Depois de uma subida inclinada o suficiente para fazer a Ellie cair em cima de mim, a carroça parou, e pude ouvir Bruno descer em um salto. 

 

— Vamos parar por hora — disse Alatar um tanto alto. — Nesse ritmo, nós vamos chegar amanhã por volta de meio-dia, é bom que estejam prontos e descansados.

 

Um a um saímos da carruagem. Imediatamente uma brisa de ar frio bateu em meu rosto e balançou o meu casaco, e logo fui recebido por uma visão de se maravilhar. Estávamos no topo de uma colina bem alta, com vista, logo abaixo do céu repleto de estrelas, para infinitas árvores de coloração vermelha, azul, verde e amarela, que eram banhadas por uma névoa densa e por uma escuridão sem fim entre seus largos troncos. O Vale das Cores, então. Apesar de estarmos em plena natureza, os únicos sons que predominavam eram o assobiar dos ventos, o balançar das folhas e dos troncos e trovões em nuvens escuras bem distantes. Me aproximei da ponta do penhasco e me deixei admirar, até ser chamado por Bruno para ajudar a arrumar os colchonetes.

 

Alatar alimentou os cavalos e os deixou descansarem perto do nosso acampamento improvisado. Amara e Áki montaram um pequeno círculo de pedras triangulares que acharam pelo chão e fizeram uma pequena espécie de fogueira; mas havia pouca lenha. O grupo se entreolhou e viramos parar Alatar, que estava deitado em seu colchonete. 

 

— Precisamos que alguém vá buscar. Aqui é uma área segura, acredito que só um de vocês deve bastar. 

 

— Eu vou. — falei, minha mão levantada. 

 

Respirei fundo e adentrei lentamente entre as árvores e a névoa. Os troncos rangiam fortemente, as folhas voavam e giravam em pequenos redemoinhos, e uma energia ruim me deixou relutante em relação ao ambiente. Se Alatar não tivesse comentado que era uma área segura, eu provavelmente teria voltado correndo. Continuei andando, as vozes dos meus companheiros já estavam abafadas há muito tempo, e nuvens apressadas surgiram entre as brechas das folhas dos galhos que balançavam. Um sorriso escapou quando lembranças do time de coleta me atingiram em cheio, mas logo meu olhar baixou e o meu peito doeu quando percebi que meu líder havia ficado naquele estado porque eu fui fraco. 

 

De repente, o ambiente se aquietou. Eu parei. Eu estava sozinho no meio da escuridão. Comecei a ouvir meu respirar e o meu coração bater, e sem querer apertei as lenhas em minhas mãos com força. Concentrei-me em enxergar qualquer aura próxima, mas no local a única coisa viva aqui além de mim e as árvores era meu grupo muito distante. Coloquei cuidadosamente as lenhas no chão e cutuquei duas vezes a pedra no bolso do meu casaco. Uma pequena fumaça verde surgiu e flutuou até a frente do meu rosto. 

 

— Onde estamos? — disse ele um tanto sonolento. 

 

— Vale das Cores. Vim pegar lenha para a fogueira e gostaria de um pouco de companhia. 

 

Ele olhou em volta e logo assentiu, então continuei a trilha enquanto pegava o material. Apesar da minha visão poder lidar com o escuro, ter o Spectro iluminando ajudou muito. De repente meu guia parou e virou o rosto rapidamente para mim, seus olhos afiados pareciam procurar algo. Não muito longe um galho se quebrou, e nós dois olhamos para a escuridão de onde o som veio. 

 

Eu não conseguia ver nada, mas eu sentia… sentia como se alguém estivesse ali naquele breu, me observando, chegando cada vez mais perto. Dei um passo para trás, meus lábios se curvaram para baixo, e, de outra direção, outro galho partiu.

 

— Precisamos voltar. — disse ele, seu tom sereno. 

 

Quando outro galho se quebrou, eu me abaixei. Impossível. Minha pernas tremiam. Seja lá o que estivesse ao redor, era desprovido de uma aura, mas mesmo assim conseguia impor uma sensação de medo no meu coração. Era algo morto? Spectro voltou para a pedra e eu me joguei no galho de uma árvore e rapidamente subi até um ponto no qual pude me estabilizar. 

 

Então, algo passou correndo. 

 

Mas que caralhos? 

 

Foi tão rápido que eu mal pude ver, mas era um corpo… completamente negro, com chifres e garras. Me arrisquei a pensar que aquilo era desprovido de um rosto. 

 

— Spectro, sente alguma coisa? — sussurrei, a adrenalina corria pelo meu corpo. 

 

— Sim, está perto, e…

 

— E?

 

— E são vários. Você não sente? 

 

Olhei preocupado para baixo, a única maneira de tentar voltar para o acampamento era correndo, pular entre os galhos era arriscado demais. Respirei fundo e tracei um caminho na minha mente, onde eu só precisaria atravessar três árvores e disparar para Alatar. Respirei fundo e me impulsionei. Passei como um vulto entre as folhas e balancei alguns galhos. Repeti o processo e alcancei a segunda árvore. Agora eu só precisava pular e correr. Me preparei novamente e me joguei contra o terceiro galho, a sola do meu pé estava perto, mas parecia que meu corpo havia desacelerado e eu comecei a cair. 

 

Caí de pé e causei em cima de uma moita e me senti observado de vários ângulos. Sem perder tempo, eu disparei, e Spectro começou a gritar. 

 

— Eles estão correndo atrás da gente, porra!  

 

Corri desesperado, até que eu consegui ver uma pequena brecha de luz no fim da trilha com seis auras. Ao mesmo tempo senti que uma mão me alcançava, enquanto sussurros incompreensíveis surgiram nas minhas costas. A luz estava próxima, as sombras sem rosto apareciam no canto da minha visão, mas eu continuei. Me sujei de terra quando me joguei contra a luz e aterrissei no chão. Olhares preocupados me encontraram. Áki apontou o arco para a trilha de onde vim, Alice tomou a vanguarda com a sua espada, Amara puxou o bastão e o cobriu com uma camada grossa de magia enquanto olhava furiosamente para a floresta, Alatar, pela primeira vez, demonstrou raiva e ficou de pé e Ellie e Bruno ficaram na minha frente com as armas apontadas para o possível perigo. Os cavalos ficaram agitados e se afastaram da floresta. 

 

Minha respiração estava pesada, meu coração acelerado. Nosso líder tomou a frente com as mãos nuas e observou por vários minutos o local, mas nada aconteceu. Os cavalos se acalmaram, e Spectro se recusava a sair da pedra de novo. 

 

— O que aconteceu lá, garoto? — perguntou Alatar, seu olhar mais suave. 

 

— Sombras — falei enquanto ficava de pé. — Sombras sem rosto que pareciam humanas me perseguiram. 

 

— Não consigo sentir nada — Ele voltou o olhar para a floresta. — Áki, pode usar suas habilidades para ver além? 

 

Áki assentiu, e seus olhos brilharam em amarelo.

 

— Nada além de esquilos, alces e passáros. — Ela parou por um momento, e então continuou. — Tem uma caverna, mas não consigo ver além dela. 

 

— Quero que revezem a guarda em dupla essa noite, eu irei verificar a caverna. — O grupo assentiu e Áki explicou como chegar no lugar, e eu e Amara decidimos segui-lo para dentro dessa escuridão de novo. 

 

— Tem mais algum detalhe sobre essas sombras em forma de humanos? — Alatar perguntou enquanto liderava a caminhada com uma tocha, Amara olhava curiosa para mim.

 

— Eles tinham chifres e… eu não consegui senti-los, era como se não tivessem auras, só uma intenção assassina. 

 

— Admito que isso é novo para mim, mas realmente acredito em você. Estejam prontos para o que quer que esteja dentro daquela caverna. 

 

Em uníssono, nós respondemos:

 

— Certo, chefe. 

 

A entrada da caverna era relativamente grande, mais ou menos dois ursos de chamas caberiam aqui se ficasse lado a lado. Nós andamos por alguns segundos e começamos a pisar em ossos pequenos e estranhos símbolos azuis foram pintados na parede. A maioria era como se fosse uma letra feita para demonstrar algo. Alguns eram ligados a criaturas assustadoramente grandes, se comparadas ao desenho das pequenas pessoas que considerei humanos, e outros eram semelhantes a itens e… uma coroa com dez espaços para jóias, mas nenhum estava preenchido. 

 

— Esperem um pouco. — falei, os ossos estalavam com o meu andar. — Esses desenhos tem alguma ligação com os reis? — Um fraco eco surgiu com o meu falar. 

 

— Sem jóias pode dizer diversas coisas, mas se tem uma teoria que me interessou foi a de um grande reino onde guardavam todas as verdades desse mundo, um local em que o líder era poderoso e podia proteger a humanidade “dele”. — disse Alatar, um sorriso se formava em seu rosto. 

 

— Como um reino número zero? — perguntou Amara, curiosa. — E quem seria “ele”? 

 

— Respostas assim talvez possam ser encontradas nos reinos superiores, onde os níveis Caos habitam. 

 

Chegamos a uma grande área circular. Eu e Amara nos entreolhamos e engolimos seco enquanto Alatar cobria a tocha com sua poderosa aura branca e iluminava o local três vezes mais. Meu queixo foi ao chão quando me deparei com diversos cortes que foram capazes de rasgar as paredes de rocha e com os inúmeros itens espalhados pelo chão da arena. Era como encontrar um campo de batalha abandonado, deixando todas suas riquezas para trás. 

 

— Isso é incrível… — disse Amara. 

 

Havia taças de ouro, espadas rachadas, armaduras quebradas, jóias, baús… Mas nenhum sinal de que, em algum momento, aqui houvera sangue. Amara e Alatar exploravam os cantos do local e conversavam, enquanto um pequeno escudo triangular de metal chamou minha atenção. Peguei e o coloquei em meu braço direito. Era pesado, pequeno, mas parecia ser bom o suficiente para salvar as minhas costelas de alguns ataques fortes. Eu iria levar. 

 

Tinha uma diversidade de equipamentos de metal, madeira e pedra, mas a maioria estava desgastada ou destruída. Fiquei tentado a pegar as moedas de ouro que transbordavam dos baús. Elas tinham um símbolo diferente das que usamos hoje em dia. De que época será que elas foram? Quando e o que aconteceu aqui? Resistindo a vontade de ficar rico repentinamente, eu decidi continuar a olhar. As taças eram luxuosas, com adornos de diamantes que, surpreendentemente, estavam rachados e quebradiços. Frascos de poções, alguns inteiros e outros quebrados, tomavam conta de um canto, tornando difícil andar sem furar minhas botas. Olhei mais um pouco até chegar a livros velhos cobertos por mofo, mas, dentre eles, havia um inteiro. “Feitiços e magias de outras linhas de mana”, era o título. Como assim outras linhas de mana? Agachei e o peguei, demorei meu olhar dele até resolver levá-lo junto com o escudo. 

 

— Você gosta de ler? — sussurrou o Spectro da pedra. 

 

— Gosto. — falei, meu olhar a procura de outras coisas interessantes. 

 

— Ei, segue a direita. Tem algo similar com a barreira ali. 

 

Andei na direção dita e cheguei a restos de armaduras que algum dia já foram magníficas. 

 

— O bracelete de metal. 

 

Arqueei minha sobrancelha e ponderei por um momento. O bracelete parecia enferrujado e certamente estava longe de servir como uma armadura, mas mesmo assim o peguei e o coloquei em meu braço. O item não teve nenhuma reação imediata além de me deixar um pouco mais bonito. 

 

— É hora de ir. — disse o líder. — Depois tomarei alguma decisão sobre esse lugar. 

 

Abandonei o amontoado de itens, admirado com um pedaço de espada que talvez, algum dia, houvesse sido uma obra de arte de um ferreiro experiente. 



Os colchonetes estavam arrumados em torno da fogueira e a maioria dormia, com exceção de Alatar que disse que ia fazer uma ronda na floresta e Bruno e Alice, que faziam a guarda. Sentei em meu colchonete, o som da fogueira tornava o ambiente tranquilo e gostoso de se estar. Talvez, quando eu ficasse mais forte, consideraria voltar aqui para apreciar o lugar. Menos se aqueles demônios voltarem. 

 

— O lugar é lindo, não é? — disse Ellie, enquanto colocava o colchonete dela ao lado do meu. 

 

— Não posso discordar. 

 

Ela sentou e observou o lugar.

 

— Você está bela de cabelo preso. — falei sem pensar, minhas bochechas queimaram. Ela deu um fraco sorriso sem mostrar os dentes e eu continuei. — Está pronta para amanhã? 

 

— Estou, poderei praticar contra algumas criaturas diferentes. — Ela parou e me encarou. — E você também. 

 

— É claro que irei, como eu poderia superar minha mentora algum dia se não praticasse? — falei, um tanto dramático.

 

— É simples, você não vai.

 

— Por que quer ficar tão forte, Ellie? — perguntei, um tanto relutante.

 

A brisa pairou sobre as mechas de cabelo que escaparam para o seu rosto, ela olhou para o horizonte e falou com calma:

 

— Preciso disso para ver alguém que sinto falta. É difícil perder alguém com quem você se importa muito. — Fiquei sem saber o que dizer, mas as lembranças de Cirlan me atingiram com força.

 

— Eu sinto falta do meu líder. Cirlan acreditou em mim e escolheu investir, mas eu só fui um peso a mais para ele. 

 

Ela se aproximou e se encostou em meu lado — desejei que ela deitasse no meu ombro, mas não ocorreu… Ficamos alguns minutos assim, quietos, apreciando a companhia um do outro enquanto víamos as nuvens correrem e os raios distantes desenharem os céus.

 

Ellie levantou a mão e me deu um fraco soco no braço; fraco para ela, doeu pra cacete. 

 

— Vai dormir, você precisa descansar, não quero acabar tendo que te prender na cama. 

 

Fiquei boquiaberto e a vi deitar.

 

— Você pode tentar.

 

Ellie me deu língua e se virou para dormir. Sem demorar, eu fiz o mesmo, satisfeito com o momento. 



A noite foi tão tranquila que eu só acordei de manhã cedo, quando Ellie tentadoramente aproximou os lábios dos meus e colocou a mão em meu peitoral. Nós descemos a colina e uma vila distante e pequena apareceu.

 

— Sinto o cheiro de energia daqui. — disse Alatar, um sorriso grande em seu rosto. 

 

— Aquilo no final… É uma dungeon? — Bruno tentou esconder a surpresa, mas falhou.

 

— Sim. — Alice respondeu secamente. 

 

— Tem coisa aí, em. — Alatar disse. 

 

Quando nos aproximamos, paramos em frente a um grande portão de madeira parcialmente destruído. A cidade era cercada por um muro de madeira escura, repleto de buracos, basicamente caía aos pedaços. Um ar de preocupação pairou sobre todos, mas vimos nosso líder tomar a frente. 

 

Alatar desceu da carroça e levantou as mãos. 

 

Seja lá o que tivesse atacado a vila, estava em grande quantidade. Eu podia senti-los.

 

Podia senti-los de longe. 

 



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