Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 2

Capítulo 26: Além do que eu posso ver

Arrastei meu pé sobre a terra e ergui a espada acima da minha cabeça. Senti a mana se canalizar em sua ponta e a direcionei para o tronco da árvore. Parte da magia se foi no meio do movimento, tornando meu ataque plenamente ineficaz e desgastante. Meus braços ficaram doloridos, apesar do pouco dano que dei. O dano que eu podia causar aumentava de modo exponencial, mas, em compensação, a espada fica três vezes mais pesada por conta da magia canalizada. Em uma luta eu precisaria compensar a falta de velocidade, o que tornou isso um possível ataque triunfante. Eu só consegui repetir esse processo quatro vezes, e nenhuma delas se equivalia ao corte da primeira vez que descobri esse poder. Minha esgrima combinava com o nível Sombra, ainda era básica e precária, porém com a prática constante eu podia melhorar. Me perguntei se na escola todos os estudantes aprendem tudo isso e se eu teria alguma chance com eles. Lotier me escolheu porque viu algum tipo de potencial em mim, mas, sinceramente, dificilmente eu me via encarando um nobre de frente em plena igualdade. 

 

Deixei a espada de lado e peguei a pedra brilhante. Treinar com esses dois itens me deixava exausto. Ela exigia muito do meu físico, mas me permitia investir em um ataque fatal. Eu realmente esperava compreender mais sobre isso durante a última semana, só que estava muito além do meu conhecimento. Ela me liberava energia em troca da minha força muscular, o que, além de trazer uma fadiga horrível, não me dava respostas de como derruir a segunda barreira. O efeito da katana sobre a pedra havia extraviado, e independente de quantas vezes eu tentasse absorver seu poder ou usá-lo em meu braço ela permanecia inalterada. Deixei minhas costas baterem na terra e no carvalho, enquanto o Spectro voava de um lado para o outro. As nuvens corriam rápido hoje, em específico a verde com os olhos e uma boca. As árvores aos poucos balançavam, seus galhos rangiam em intervalos irregulares, redemoinhos estreitos formavam-se enquanto levavam galhos e folhas, e a luz do sol ficava cada vez menos presente. O Voin de Lotier estava parado sombriamente sobre um galho que balançava, seus olhos azuis de felino focados inteiramente em mim.

 

Já fez dois meses desde que ele se foi, eu precisava avançar mais rápido. Kanro certamente estava treinando, meu pai levava a sério quando o assunto era lutar. Mesmo sendo eu, acreditei. Eu mantive a prática diária desde o dia que ele foi, mas é difícil me imaginar lutando com o cara que andou sobre a água e manipulou uma espada reta de mana pura. Meu pai era incrível de muitas maneiras diferentes. Um amigo, um marido, um herói… 

 

Fechei os olhos e soltei o ar, jogando meus pensamentos para longe, até ouvir alguém falar. 

 

— Você vai ficar deitado aí mesmo? A gente devia estar correndo, ou tentando adentrar nessa pedra de novo. — disse o Spectro enquanto girava ao redor da pedra mágica. — Eu queria tentar comer batatas firras de novo. E para que esse pássaro assustador serve mesmo? 

 

— Batatas fritas, Spectro. E você já comeu uma. O que é impressionante, considerando que você é uma fumaça flutuante. — Suspirei, me impulsionei para cima e fiquei de pé. — O pássaro é para a gente se comunicar com o Rei Nove, e é um Voin. Agora, foco. Eu preciso dar um jeito de melhorar a velocidade da energia que concentro do golpe especial, se não vai ser inútil em batalha. Fora que a pedra suga toda energia do meu braço…

 

— Golpe especial para um corte feito com a katana mágica deixada pelo seu avô? A gente devia dar um nome! 

 

— Tipo “Ataque do Lumi”?

 

— Pensei em algo relacionado ao seu sobrenome. Você precisa de uma frase de efeito bem legal para quando enfrentar um monstro na frente da menina que você gosta. Imagina, você chega lá, ninguém espera nada de você e você entrega tudo.

 

Dei uma leve risada, tentei entender se era um insulto ou um elogio, mas desisti e resolvi deixar ele falar.

 

— Prossiga.

 

— A katana é da sua família, e você carrega o nome de pessoas muito fortes, então… — Spectro deu uma pausa, seus olhos ficaram bem abertos quando ele se aproximou de mim. — Golpe da família Kai passado por gerações!

 

— É muito longo! Se eu for falar como frase de efeito, precisa ser algo curto, e não uma apresentação.

 

— Corte… Você… Curto… — Spectro refletiu. — Corte Kai.

 

Nós basicamente passamos a semana inteira juntos, desde que ele saiu daquela pedra sem saber a que veio ou de onde veio. Spectro costumava ser uma companhia para mim, seu caráter plenamente duvidoso, mas sempre tentava me ajudar. Ele pode ser pouco útil quando o assunto é combate, mas se ele veio da pedra, acreditei que isso iria mudar. No início, ele podia ficar um metro distante do objeto. Atualmente podia ficar três. Eu sabia que o conhecia pouco, ou nada, mas valia a pena investir em um companheiro. Ou eu estava maluco, afinal, eu não sabia o que ele era ou se ele podia me fazer algum mal.

 

— Certo. Gostei. 

 

Passei as próximas horas com o foco na katana e em como direcionar a mana mais rapidamente. Eu conseguia sentir as partículas se movendo passivamente e direcioná-las para a ponta da arma, mas era um processo lento e incerto. Contei cerca de dez minutos toda vez que eu conseguia energia suficiente para um único corte parcial. O “Corte Kai” era incompleto e defeituoso, mas, com mais alguns dias — ou meses — de aperfeiçoamento, podia melhorar. Outro ponto que precisei me concentrar, foi o fato de eu poder manipular a magia. Comemorei por três horas quando isso se tornou definitivo. João e Bruno estavam certos, afinal.

 

Spectro teve a brilhante ideia de eu colocar a pedra na base da katana com o intuito transferir a energia de um recipiente para o outro. Considerando o que temos disponível no Selo Um e a espada que podia interagir com mana, a ideia era boa. Na teoria, a pedra passaria energia para a katana e meus golpes seriam intensificados e destruidores, e meu gasto de magia praticamente nulo, mas eu sabia que chegar a esse ponto seria complicado. Minha aura ainda era fraca, quase sem brilho nenhum, se eu quisesse usar mana a partir de mim, duraria um pouco menos de três segundos.

 

Segurei firme a katana com a pedra entre as mãos. Fechei os olhos e entrei em um estado de meditação em pé, enquanto afastava o assobiar do vento e o meu amigo tagarela para bem longe, até se tornarem pequenos sons nos quais eu podia ignorar. Eu enxerguei o ambiente plano e sem cor, onde havia apenas três energias. A silhueta do corpo humano era protegida por uma aura fraca e azulada, tão leve que nem parecia estar ali. E, como antes, uma chama cinza e obscura habitava no meu interior. A pedra era o núcleo verde e pulsante, e a katana a camada de magia tênue e enigmática. Levei bastante tempo, mas forcei a energia esverdeada para a katana e para as minhas mãos. Com a aura cobrindo a espada como chamas, eu abri os olhos e ataquei a árvore. 

 

O corte se alastrou no tronco, causando uma rachadura com bordas queimadas. Minhas mãos doeram e minha arma foi ao chão. Levei alguns minutos para me recompor, mas não pude deixar de olhar animado para o dano que eu acabei de causar. Era um ataque útil, mágico. Algo digno de ser chamado de “Corte Kai”. Alatar disse que uma missão se aproximava. Talvez eu realmente pudesse fazer a diferença nela. O grande torneio era apenas no próximo ano, em quatrocentos e noventa e oito, então eu tinha tempo para me preparar, caso eu fosse. Mas eu realmente poderia impressionar todo mundo? Deixei um sorriso escapar com diversos pensamentos surgindo. 

 

— Uh, muito bom. Agora podemos dar as três voltas ao redor da sua cidade? 



Quatro voltas foi o recorde. Minhas pernas bambearam enquanto eu as arrastava com a esperança de chegar em casa sem aterrissar o rosto no chão áspero. Já era noite, o vento assobiava, e as pessoas andavam com pressa para suas casas. Os comércios aos poucos fechavam, as luzes dos postes tremeluziam e os guardas se mobilizaram pelas vielas. Disseram que uma possível tempestade impetuosa chegaria em breve, acompanhada de fortes ventos. Virei algumas ruas e passei por becos estreitos para encurtar o caminho até a minha casa. Só havia um senhor, que andava segurando fortemente seu chapéu, e uma mulher com dificuldade de carregar sua bolsa cheia de armas. 

 

Ela caiu. As armas se espalharam. Tentei dar um passo rápido, mas minha exaustão me trouxe o mesmo destino que ela. 

 

— Ótima escolha. — disse Spectro com um escárnio. 

 

Um guarda correu até a mulher e a levantou, logo ajudou a juntar os itens e se ofereceu para carregá-los. Eu ajoelhei e lhe dei um aceno com a cabeça, ele aparentemente entendeu e seguiu em frente. 

 

Depois de andar mais dois quarteirões, quase sendo levado pelo vento, eu bati na porta de casa. Ouvi o som do olho mágico sendo aberto. A porta foi destrancada e o calor interno me atingiu, trazendo conforto e uma vontade imensa de me banhar. Emy pulou para me abraçar, mas parou e deu um passo para trás enquanto tapava o nariz. 

 

— Nem o vento conseguiu disfarçar esse seu cheiro.  

 

Dei um abraço apertado na minha irmã, mesmo com ela se debatendo para sair e dizendo que eu parecia um gambá. Quando fiquei satisfeito, e certificado de que ela estava fedendo também, eu a larguei. Depois de levar um chute no estômago eu corri para o banho e passei um bom tempo lá. 

 

— Sua família é bem legal. Eu queria conhecer o seu pai, ou pelo menos interagir com elas. — sussurrou ele, indiferente, enquanto eu secava meu cabelo. 

 

— Ainda não, Spectro. Vamos esperar um pouco, minha mãe morreria de preocupação comigo se eu falasse do meu vínculo com você. — respondi baixo, com medo de que Emy e Amice pudessem ouvir. 

 

— As pessoas não têm vínculos e animais bizarros e poderosos? Por que eu seria diferente disso? — Ele flutuou para perto do meu rosto, sua sobrancelha inexistente arqueada. — Eu quero fazer parte da entrada triunfal desse torneio aí, ou se você aceitar a proposta do Rei Nove, quero estar flutuando para todos me verem. 

 

— Primeiro, porque você surgiu de uma pedra mágica que veio de uma anormalidade. Eu poderia ser até preso por isso. Imagine o que fariam com você. As anormalidades são o grande problema dos Reis, fora a fronteira com o outro país. — Soltei um suspiro, então continuei. — Segundo, você precisa ver os membros da academia e como eles são mais fortes do que eu. Não adianta ir para o torneio e apanhar em público, certo? Quebrar a imagem no Rei Nove está longe dos meus planos.

 

Pff, com essa positividade toda a gente realmente vai demorar a avançar, meu caro. Eu sinto que tenho uma ligação com essa pedra, como se eu precisasse adentrar nela para saber mais de mim, então se para isso eu preciso que você fique forte, eu te apoiarei. 

 

— Lumi. — falou Emy, do outro lado da porta. — Tá falando sozinho? Mamãe tá fazendo o jantar. 

 

Eu e Spectro nos entreolhamos e abafamos uma risada, logo respondi minha irmã. 

 

Desci as escadas e virei o corredor para a cozinha. Amice estava cortando um bife do tamanho da tábua de corte — mais ou menos três palmos, eu achei —, seus olhos verdes claros me encontraram e seus lábios se curvaram em um pequeno sorriso. 

 

— Quer ajuda, mãe? — falei já me aproximando e puxei uma faca. — Talvez eu possa aprender com sua ótima culinária. 

 

Ela riu, e meu peito ficou mais leve. 

 

— Ei! Eu também quero ajudar. — falou Emy, já se aproximando e cobrindo os punhos com uma camada tênue de magia. 

 

O que? 

 

— Quando que- 

 

— Tem um tempo, meu caro irmão. — Emy abafou uma risada. — Quero ficar forte que nem você.

 

Nossa noite foi divertida. Amice ao mesmo tempo nos divertia e me ensinava. Fizemos bagunça, sim, talvez a ideia de jogar molho na minha irmã tenha sido demais, mas como minha mãe fez o mesmo comigo, eu achei que valeu a pena — já que Emy me deu língua e caiu em risada. Depois de prepararmos o jantar, sentamos na mesa. A travessa estava cheia de macarrão, queijo e bife. Fumaça ainda saía da comida. Em potes separados, havia camarões fritos, cogumelos cozidos e molhos variados. Realmente era um jantar caprichado. Com cuidado, nós nos entreolhamos atentamente, enchemos os pratos e comemos. O gosto condizia com a aparência, óbvio, já que Amice havia cozinhado conosco. No resto da noite nós rimos e conversamos. Emy frequentava uma escola diferente agora que ela podia usar magia pura, um pouco mais perto do chafariz central. Amice havia conseguido trabalhar na guilda de Karin, e eu contei sobre meus avanços básicos no treino com a katana. Elas ficaram de queixo caído quando citei que podia direcionar a magia da espada. Claro que me gabei para minha irmã. 

 

No banheiro, enquanto olhava no espelho, percebi que Emy já batia no meu peitoral. Escovamos os dentes juntos e ela pediu para dormir no meu quarto. O trovão e o vento forte assustavam ela. Fiquei com ela até que adormecesse em minha cama e verifiquei o Spectro, que habitava tão profundamente na barreira destruída da pedra que eu mal conseguia senti-lo. Dei um beijo na testa de Emy e observei a chuva e os relâmpagos por trás da cortina antes de descer. 

 

Amice estava no sofá, o fogo da lareira era fraco e quase se apagava sozinho. 

 

— Mãe? Não está com sono? — falei, enquanto me sentava ao lado dela. 

 

Trocamos olhares por um momento e eu já sabia o que ela queria dizer. 

 

— Sinto saudade dele. 

 

— Eu também, mãe. 

 

— Ele mandou três cartas nesse tempo. 

 

— Eu não sabia.

 

— Você estava tão ocupado treinando… — Ela baixou o olhar e meu coração pesou, mas logo me recompus e deixei que ela deitasse no meu ombro. 

 

— Eu vou ler. Estive me preparando para uma possível missão com o Alatar. 

 

— Você tem contato com um cavaleiro Real? — disse ela, saindo o meu apoio e virando o rosto para mim.

 

— Sim… Mais ou menos, meio que é culpa de quem coloca minha foto no jornal. 

 

— Eu acho muito bom você voltar inteiro. 

 

— É para isso que eu quero ficar forte, mãe. — Fiquei de pé e coloquei a mão na cabeça dela, logo lancei um largo sorriso. — Eu vou impressionar você e o papai.

 

Ela levantou e me apertou em um abraço, e um conforto sem igual quase trouxe à tona todas as lágrimas que eu evitava derramar. 

 

— Só lembre que você tem a gente, independente disso, viu? 

 

Sem intenções de sair, envolvi minhas mãos ao redor de sua cintura e afundei minha cabeça em seu ombro, cada parte de mim batalhava para não chorar. 

 

— Não irei… — falei, minha garganta seca. — mãe. 



Me sentei na ponta da cama, Emy ocupou quase todo o espaço. Abri com cuidado o envelope dourado e puxei a carta. 

 

“Oi, campeão. Está se dando bem com a katana? Queria te dizer que eu estou treinando aqui, não esqueci da sua promessa de me derrotar. Tem muita coisa aqui no reino sete que você iria adorar, livros que você passaria a noite lendo e relendo. Daqui a algum tempo papai vai conseguir se estabilizar aqui e arrumar uma casa grandona para gente! Estou com muitas saudades, mas o castelo está com problemas difíceis de resolver. Por outro lado, eu tenho muitas histórias para contar no nosso próximo encontro, acredito que você tenha até mais do que eu. E também, ouvi boatos de que o torneio seria aqui. O Alatar me disse que chamaria um certo alguém para ir em missão com ele, e não tenho dúvida nenhuma de que você sairá no jornal quando tiver sucesso. Por isso, eu também farei algo para aparecer e surpreender até mesmo você. Missões são difíceis, mas você com certeza consegue. Te amo, fique bem!”.

 

Minha visão ficou borrada e uma gota acabou caindo sobre o papel em minhas mãos. Fiquei de pé, meu olhar determinado na pedra em que o Spectro dormia. Estava na hora de me esforçar mais, ele esperava muito de mim. 

 

Sentei em posição de meditação com a pedra no meu colo e adentrei nas profundezas após o Selo Um. A barreira dois era como o infinito um pouco maior. A complexidade de tamanho aqui dentro era extremamente confusa e incerta, mas eu comecei a entender.

 

Eu iria melhorar. Eu superaria você, pai. 



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