Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 2

Capítulo 23: Convite inesperado

— Quarenta e oito… quarenta e nove… cinquen- — Meus braços cederam antes de eu alcançar a quinquagésima flexão, interrompendo a contagem da minha irmã, que estava em cima de mim. 

 

Eu abri um espaço no meu quarto quando finalmente resolvi arrumá-lo. O som da janela balançando, o vento assobiando e as rajadas de água caindo tornaram o ambiente perfeito para desistir de tudo e cair no sono. Mas eu precisava, queria, treinar. Então, quando Emy veio velozmente para o meu quarto com medo dos estrondosos trovões e trouxe uma espada de bambu misteriosa, resolvi apoiar meus pés sob a cama e pedi ajuda a ela com o meu treino. Eu já havia corrido ontem, antes da chuva começar, e hoje decidi que reforçar minhas capacidades físicas em casa seria a melhor opção. E também porque eu queria ficar no meu conforto, admiti. Fiquei de pé, ofegante, enquanto Emy golpeava o meu cabideiro ferozmente, e observei a katana deixada por meu pai. Eu já tinha uma vaga noção que a energia dela interagia comigo, mas o porquê ainda estava distante de qualquer resposta que eu pudesse pensar. Observei, analisei com calma cada mínima linha de mana branca que desprendia dela, como se a espada carregasse e armazenasse toda energia imposta sobre ela. Pedi para Emy dar uma rápida saída e desembainhei minha arma.

 

Eu jamais arriscaria ferir o bem mais precioso pra mim.

 

Feroz. Eu podia sentir a sede dela de cortar algo. Coloquei meu pé esquerdo para trás e segurei a katana com as mãos, firme o suficiente para dar um corte com tudo de qualquer direção. Realizei alguns movimentos básicos, alguns de livros e outros que aprendi com Kanro, mas eu tropeçava em diversas ocasiões. Percebi que meu jeito de lutar ainda era bruto e integro a força física, desprovido de qualquer técnica realmente eficaz. Os Gags, o urso de chamas e até mesmo os goblins me exauriram e podiam me finalizar por um único erro meu. Talvez minha pegada devesse melhorar, ou a posição das pernas, ou a respiração, ou meu controle de largar a espada e sair correndo… Meus olhos pararam no que restou da minha antiga arma, dada pelo misterioso Arvid Milo no hospital. Um escárnio escapou dos meus lábios. Eu realmente havia elevado a adaga até o limite. 

 

Abri um dos muitos livros de meditação que encontrei na biblioteca e entrei em posição. Passei a última semana inteira tentando entender o foco da meditação. Quando meu pai me disse que eu devia fazer isso perto de cada elemento, eu pensei que seria muito mais fácil fazer isso longe de qualquer um deles. Atrair minha concentração para mim era atribulado, ela desaparecia desde o assobio dos ventos ou o estrondos dos trovões. Tudo que eu consegui enxergar e sentir dentro de mim foram duas pequenas chamas irregulares. Uma branca, calma e leve, enquanto a outra tinha uma cor puxada para um verde acinzentado com traços roxos e era mais pesada. Eu era incapaz de me manter concentrado o tempo necessário para analisar as chamas, mas acreditei que isso melhoraria com o tempo. Quando tentei me concentrar novamente, no entanto, uma batida apressada na porta tirou-me do meu afazer.

 

A porta se abriu e a figura do meu amigo de infância entrou. Ele suava e arfava bastante enquanto tentava formular uma fase incompreensível. Seus braceletes pretos, suas caneleiras azuis com marcas de queimadura e sua roupa de tecido tênue e coberta por uma camada leve de mana me disseram tudo que eu precisava fazer. Abri a boca para falar e João levantou a mão, logo apoiou-se nos joelhos e olhou para mim. 

 

— Vamos treinar! Tenho um convite diretamente para você! —`Ele respirou fundo e, então, continuou. — Não vai se arrepender de ir nessa academia, alguém que você gosta está lá. 



João me puxou pelo braço em meio a chuva, praticamente me arrastando pelas ruas vazias e molhadas. Pude sentir imediatamente a mudança de clima quando entrei no local. Fui recebido por uma rajada de ar quente capaz de secar minhas roupas encharcadas e uma luz ofuscante. Minha atenção logo foi atraída para os bonecos de madeira parados no canto da enorme sala. Me coloquei em posição de defesa e senti meu peito bater forte, mas gargalhei quando percebi que eles estavam estáticos. Eu podia relaxar. Dando uma última olhada neles, observei várias luzes espalhadas pela academia. Na sala principal tinha um compartimento específico só com armas de madeira e armaduras de couro grosso com penas dentro para absorção de impacto. Em outro canto havia pesos para puxar e colocar no corpo. Até que fiquei boquiaberto ao olhar os magos talentosos treinando. Em particular, a samurai Alice chamou minha atenção ao arremessar seu parceiro de treino contra a parede com um golpe direto de sua espada. Ela balançava sua arma como se fosse uma extensão do seu corpo, eu mal conseguia ver os movimentos, era como se as brechas fossem intencionalmente ocultadas. 

 

— Saudações, Kai. Admito que é muito bom te ver aqui. — O cavaleiro real alto, de cabelos castanhos avermelhados com pontas azuis e olhos que variavam em tons de cinza, vermelhos e marrons estendeu a mão para mim. 

 

— Alatar. — O cumprimentei, seu aperto era firme. — Devo te agradecer por ter me ajudado perto do lago. 

 

— Me agradeça fazendo bom uso da minha academia. — disse ele com um sorriso.

 

Cumprimentei Amara, Kashi, Bruno, Meggy — Alice não, pois tive medo — e uma amiga que eu não via há bastante tempo: Aria. Ela me ajudou quando Zelforne me agrediu. Tentei puxar assunto, mas ela estava focada no treino contra Áki. Corri para me equipar. Antes de falar com os demais, resolvi me preparar. Peguei uma caneleira simples de couro, faixas de proteção para as mãos, um colete preto de tecido grosso e um capacete vermelho. Com dificuldade para colocar as faixas em minhas mãos, alguém surgiu para me ajudar. Seu cabelo loiro caía no rosto, seus olhos verdes focavam no meu equipamento de treino. Ellie estava aqui. Ela deu uma pequena risada, mas logo disfarçou quando percebeu que eu estava a observando. 

 

— É uma bela armadura, de fato. Está… indo para uma guerra? — Ela fez uma piada?

 

— Eu gosto de me manter seguro, ok? Aliás, obrigado por isso. Preciso dizer que tentei colocar em prática suas lições do nosso último treino. — falei, menos nervoso que a última vez. 

 

Com seu tom de voz mais sereno, como o habitual, ela disse:

 

— Me mostre o que aprendeu. 

 

Andamos até o tatame mais próximo, onde estava Amara e uma figura que eu só vi uma vez na festa do Rei Enguerrand. Sander, pensei. O menino tinha duas luvas feitas de mana e bloqueava com dificuldade e recuo os golpes rápidos e ardentes de Amara. Apesar do combate parecer equilibrado, era claro que ela poderia derrubá-lo. Amara havia aberto a guarda dele cerca de quatro vezes e escolheu apenas socá-lo no estômago, ao invés de derrubá-lo com o bastão. No outro bloco de tatames, Meggy lançava feitiços amarelos como flechas no Nirmim, que tentava bloquear com um escudo circular de madeira. Eu podia ver a magia que saia com pressa de sua aura enquanto ele tentava colocá-la no escudo, mas ele claramente era inexperiente nisso. Por outro lado, Bruno, que treinava do outro lado da sala, conseguiu fomentar uma lança de água imperfeita a partir do chão. Ele estava bastante suado, seus ombros caídos, mas seus olhos mantiveram o foco em sua criação. Ele se tornou mais forte. Áki, a menina que eu vira poucas vezes, atirava com seu arco nos alvos rodopiantes. Cada alvo pego por suas flechas foi esfacelado, como se ela estivesse reforçando suas flechas com mana e lançando-as com poder. Incrível. 

 

Ouvi um estrondo no chão e, quando me virei para olhar, percebi que Amara havia quedado Nirmim. Eles se retiraram e Ellie andou calmamente até o centro, mantendo seu olhar passivo e inalterado em mim. Chequei meus equipamentos e me dirigi até ela. Percebi que alguns olhares pairavam sobre mim, até mesmo dos membros da academia que eu não conhecia. Alatar, no entanto, apesar de seu alto nível, tinha o olhar que mais transmitia curiosidade. Senti minhas bochechas queimarem, mas logo fechei os olhos e respirei fundo, direcionando meu olhar para a minha parceira de treino. 

 

Ellie ergueu os braços e posicionou as pernas, e, após ela acenar com a cabeça, eu sabia que já havia começado. Fixei meu olhar nela ao me posicionar. Era uma defesa perfeita, eu senti como se qualquer golpe que eu tentasse desferir nela fosse facilmente rebatido. Sua aura estava calma como o mar, mas ao mesmo tempo preparada para explodir e espalhar como fogo. 

 

Avancei em uma rajada de socos que foram redirecionados por suas mãos, ela girava o mínimo do corpo e tocava com o dedo indicador em meu pulso para cada ataque que eu tentava dar. Até que seu punho encontrou a boca do meu estômago, e a ânsia rapidamente surgiu em mim. Sem perder tempo, Ellie tentou um segundo soco, mas meus reflexos permitiram-me desviar e eu dei um passo rápido para trás. Que monstra, preciso de distância.

 

Com uma arrancada, levei minha perna direto para a coxa dela, mas ela defendeu com a própria canela e eu soltei um leve gemido de dor. Lancei uma sequência de chutes rápidos e cautelosos, sempre pronto para fugir, caso fosse preciso. Ellie, então, aparou um de meus chutes diretos e girou no ar, acertando a perna nos meus antebraços. Fui levemente arrastado e tentei contragolpear, mas a menina girou no ar novamente e afundou o calcanhar no meu olho. Eu simplesmente girei e beijei o tatame. Por um momento eu senti meu mundo escurecer, mas de alguma forma consegui ficar de pé. 

 

Alatar me instruiu, falando meus erros e pontos que eu devia melhorar, fora a enorme quantidade de brechas que eu abria em minhas lutas. Tentei absorver cada lição passada por ele, já que era um Cavaleiro Real e havia acabado com o Minotauro que me mataria. Continuei a treinar ao decorrer da tarde, tinha até perdido a conta de quantas vezes caí para Ellie. Desisti de contar na trigésima, eu achei. Ela era realmente extraordinária em combate, e eu soube que ela era melhor ainda na esgrima. 

 

— Bom. Todos os movimentos que aprendeu hoje são o básico, se você quiser realmente se tornar forte, deve praticá-los constantemente. — Ellie disse, seu tom indiferente. — Irei cobrar isso na próxima.

 

— Na próxima, eu pretendo trazer resultados mais satisfatórios. 

 

Sentei em um canto e bebi quase metade da garrafa de água de João. Minhas roupas estavam encharcadas, minha respiração irregular.  

 

— Você pretende ir para o torneio? — perguntou Alatar, seus olhos concentrados no duelo de Alice e Kashi.

 

— Não sei, realmente é um nível muito acima do meu. Como ele é realizado, de fato?

 

— Podemos dizer que tem uma ordem: Famílias nomeadas, aventureiros de categoria alta e participantes comuns. E, após isso, temos o torneio onde apenas os representantes dos Reis podem pisar. 

 

Lembrei da proposta de Lotier. Ainda me impressionava o fato dele querer apostar em mim, mas sua proposta de tornava cada vez mais tentadora. 

 

— Sabe, você realmente é mais assustador no jornal. — disse Amara enquanto se aproximava, seu cabelo preto grudado no rosto.

 

— Eles apenas tiram fotos em momentos que me fazem parecer um genocida do mal.

 

— Fiquei sabendo que irão permitir a entrada de nível Fulgor no torneio. 

 

— Isso deixaria difícil de vencer, não é injusto? 

 

— Difícil, sim, mas não impossível.

 

Minha atenção parou na Ellie utilizando uma aura verde ao redor de sua espada e golpeando com força a perna de seu grande adversário. 

 

— Ela é boa. O estilo de luta dela é muito parecido com o do Grande Senhor Hiroki. Ele é forte como um rei. 

 

— Quem seria esse, Amara?

 

— O pai dela. 

 

Senti um arrepio percorrer a minha quando me toquei na maneira que ela se referiu a ele. 

 

O duelo de Alice e Kashi ficou intenso. Kashi adicionou chamas amarelas em suas duas espadas e atacou Alice sem dar descanso. A jovem samurai esquivava e dançava com a sua espada coberta de aura vermelha enquanto fatiava os ataques flamejantes de Kashi. Logo uma barreira de fogo se formou, queimando as plantas no canto da academia, e foi direcionado para Alice. Ela manteve a calma e fechou os olhos enquanto apontava sua espada para Kashi. Ela não vai desviar? Meu coração acelerou, era muito fogo para levar diretamente. Alice então cruzou a barreira de chamas da menina e acertou o calcanhar em seu queixo, arremessando Kashi para o outro lado da academia.

 

Alatar as parabenizou, e o olhar da menina caiu em mim. A ponta de sua espada veio em minha direção, e, sem nenhum pingo de emoção no rosto, ela disse serenamente:

 

— Lute comigo, Lumi.



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