Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 2

Capítulo 22: Boa escolha

 

 

 

 

Um som raso me fez abrir os olhos. Meu corpo ainda estava pesado e tudo o que eu via era a iluminação da lua pela minha janela. Madrugada. Bocejei e me virei, devia ter sido só algum animal. Desta vez, ouvi algo bater contra a janela. Saí do meu conforto e sentei na beira da cama enquanto lutava para manter os olhos abertos. Quando fiquei de pé, uma sombra surgiu flutuando e cutucou o vidro, o que me deixou em alerta. Peguei meu cotoco de adaga e apontei na direção. Em passos lentos, eu me aproximei, e um rosto desfigurado tomou forma em meio a ausência de luz. Caí para trás, meu coração disparou e eu gritei. A sombra lentamente se transformou em um corpo com membros em ângulos impossíveis. Os braços giravam e aquelas mãos estranhas cravaram-se na parte inferior da janela, as pernas subiram para as laterais e o pescoço girou até ficar de cabeça para baixo. A criatura abriu a boca e rugiu. Puta que pariu. 

 

Passos lentos ecoaram pelo corredor, a madeira rangia como se tivesse um corpo pesado se movendo sobre ela. A pedra mágica brilhou intensamente em verde, enquanto um eco de magia vindo da sala alcançava os meus ouvidos. Quando virei meu olhar para a criatura, ela havia sumido, e os passos correram para a direção do quarto de Emy. Me movi e coloquei a mão na maçaneta da porta, e os passos instantaneamente pararam. O silêncio tomou conta do lugar, mas a presença continuava ali. Engoli seco e agachei. Pude ver duas botas por baixo da porta. Independente do que fosse, estava parado esperando eu abrir. Uma gota de suor escorreu pela minha bochecha enquanto eu prendia a respiração para me manter imóvel. Fechei os olhos por um momento na esperança de gritar, mas quando os abri, os pés haviam sumido. Fiquei de pé e um frio na barriga me atingiu. Eu sabia que precisava abrir a porta, mas tinha medo do que estava do outro lado. 

 

Segurei a maçaneta e a puxei lentamente. Força, Lumi. Vazio. Um vulto passou por mim com uma risada diabólica quando eu dei meu primeiro passo. Todos os pelos do meu corpo se arrepiaram. A coisa estava parada na escada. Tentei me aproximar e ela desceu correndo. A segui até chegar na sala. O cabelo negro escorria como gosma pelas suas costas, o corpo acinzentado possuia várias cicatrizes que eu jamais pude descrever e suas mãos tinham unhas grandes, como garras afiadas. 

 

— Ei-ei. — falei, e logo engoli seco. 

 

Seu pescoço girou, e quanto mais próximo eu estava de ver aquele rosto, mais estalos eram emitidos. Cruz credo. O som de magia novamente surgiu na porta e eu finalmente pude ver a fonte. A katana flutuava. Três sombras surgiram ao meu redor, seus rostos sorridentes. A arma atravessou o meu coração e eu vi o meu corpo de joelhos, como se minha alma tivesse desistido de estar nele. As sombras me batiam e arrancavam os meus membros, e a criatura me encarava sem mover um único músculo. No meio de todo o espancamento e mutilação eu consegui enxergar uma sombra no chão olhando tristemente para mim. Até que minha cabeça rolou para os meus pés imateriais e meu próprio olhar sem vida me confrontou. 

 

Levantei suado e ofegante. Estava de dia. Verifiquei todas as partes do meu corpo. Eu estava inteiro. Apoiei a cabeça na mão e me deixei respirar. Eu senti uma vontade imensa de deixar as lágrimas escaparem, mas as prendi e as celei. A pedra ainda brilhava intermitentemente, sua energia tentava tocar cada célula do meu corpo. Rapidamente me levantei e tentei segurá-la, mas seu brilho já havia a abandonado. Não foi só um sonho. Quando me dei conta, minhas mãos teriam falhado em pegar a pedra. Elas tremiam. 

 

— Espero que tenha formas mais legais de me passar algum recado. — falei, irritado com o objeto mágico inanimado. 

 

Passei o café da manhã inteiro tentando repassar em detalhes tudo o que ocorreu no pesadelo. A katana era um mistério por si só, mas se ela podia fazer mais do que interagir com a magia, eu precisava descobrir. A criatura da janela transmitia uma energia incomum, minimamente parecida com a do Laiky, enquanto as sombras fantasmagóricas me traziam a palavra “alma” à mente. Todos podiam ser interligados se eu considerasse a fonte deles um verde reluzente. O que me fez pensar que trazer uma pedra mágica que surgiu de um goblin anormal — que possivelmente pensava — foi um ato claramente irresponsável. Minha sobrancelha tremia enquanto eu raciocinava a chance de ter sido uma má ideia. 

 

— … Kai? Tudo certo para você? Não sei se ouviu, já que está encarando o ovo cozido desde que sentou na mesa. — Amice me tirou do meu transe. 

 

— Em?

 

— Você provavelmente vai sair em outra aventura, certo? — Acenei que sim. — Eu decidi que vamos sair hoje para comprar uma armadura que aguente dessa vez. Eu, você e Emy. 

 

Minha irmã levantou os braços e deu uma piscadinha para mim.

 

— Por mim tudo bem. — falei, deixando um sorriso escapar. — E você, Kanro?

 

— Eu vou ficar responsável pela sua arma! — Fiquei boquiaberto quando ele disse. Ele esticou o braço e levantou o polegar enquanto mostrava um largo sorriso e dava uma piscadela. — Aquele adaga merece descansar em paz, sabia? E você mesmo disse que conseguiu lutar com uma espada normal contra vários goblins.

 

Sim, pai, mas a espada não era normal, era a katana.

 

— Certo, então!

 

Naquele instante, nós rimos e conversamos. Era importante aproveitar a presença do meu pai enquanto ele ainda estava aqui, então dei o meu melhor para afastar tudo de ruim que passava pela minha cabeça e me prendi na risada linda da minha irmã, logo a de Amice e, por fim, na aura quente e aconchegante de Kanro. Eu realmente os amava. Fique forte, Lumi, se quiser protegê-los.

 

Vesti o casaco cinza e uma calça jeans. Amice e Emy usavam casacos um pouco mais grossos devido à temperatura. Me perguntei quando exatamente a brisa de ar gelado começou a me agradar. 

 

As ruas estavam cheias. Aventureiros transitavam apressadamente no chão esbranquiçado e úmido de paralelepido polido, figuras de famílias um pouco mais conhecidas anunciavam estarem contratando para se aventurar nas terras aos redores do Vale da Morte e muitos jovens conversavam distraidamente enquanto andavam devagar. Emy segurou minha mão e nós seguimos Amice, que estava atrás de um grande homem de armadura azul com detalhes dourados. 

 

— Irmão, conta de novo a história do urso grandão de fogo? Você conseguiu pegar a flor da missão e fugir dele!

 

Emy começou a ir até o meu quarto para me perguntar porque eu visitava o hospital com tanta frequência. Foi aí que eu comecei a contar as minhas histórias com o time de coleta até a missão solo. Fiquei com um pé atrás de contar sobre as anormalidades, pois mesmo censurando era pesado de se ouvir. Chegamos a um estabelecimento familiar, que vendia uma variedade de armas e armaduras. Quando entramos, o olhar daquele senhor cravou-se em mim com dúvida. Durante um minuto inteiro, ficamos nos encarando e o som da lareira foi o único a ser ouvido. Mas ele finalmente falou.  

 

— Você já veio aqui antes. Não, jovem? 

 

— Sim-

 

— Quebrou o equipamento de novo!? Eu faço eles com tanto carinho e cuidado, e você vai lá e destrói eles simples assim?

 

— Foi mal… — Eu estava ocupado tentando sobreviver. Emy e Amice olharam para mim e abafaram uma risada. 

 

Uma menina com um cabelo loiro escuro saiu da porta dos fundos e colocou a mão no ombro do senhor, seus olhos cor de âmbar analisaram minha mãe, logo Emy e depois a mim. 

 

— O famoso Lumi Kai. — disse ela, um sorriso se formou no canto de sua boca. — Algo leve e resistente, imagino. Dê uma olhada no corredor três.

 

O local tinha uma boa variedade de armaduras de metal, de couro e de madeira. Procurei algumas sem nenhum tipo de runa ou influência mágica. Me deparei com uma armadura de "Cavaleiro Sombra”. Era de metal e cobria somente as canelas, os antebraços e a cabeça. Uma que valia a pena tentar usar, mas talvez fosse pesada para mim. Varri meu olhar não só no corredor três, mas em todos os outros também. Amice me deu algumas sugestões de couro reforçado e material de monstros e queria que eu experimentasse. Fiquei um bom tempo testando os movimentos com cada uma armadura. Algumas leves, mas facilmente virariam pó na minha mão. Outras resistente e relativamente pesadas, porém retardaram o mínimo dos meus movimentos. A esquiva era a única coisa que me permitia ir pro hospital ao invés do pós-vida, então eu realmente queria algo que me permitisse me mover livremente. 

 

Eu experimentei uma armadura de “Gjoo Korin”. Botas de um metal leve e escuro, como se estivesse sujo, luvas confortáveis feitas a partir de madeira e bambu, duas ombreiras leves de couro e uma parte específica que protegia a região do meu coração. Longe de ser defensivo como uma couraça, mas me agradou. Sai do vestiário pela décima quinta vez e esperei pelo veredito das minhas juízas. Elas analisaram meticulosamente minha veste de cima abaixo e trocaram sussurros entre si. 

 

— Emy Ken concede aprovação a armadura escolhida pelo seu irmão. 

 

— Gostou desta, filho? 

 

— Sim, além de bastante móvel, e o design me agrada. 

 

— Queremos levar essa. 

 

— Mais uma armadura que esse menino irá destruir…

 

— Xiu! É vinte moedas de prata, senhor. Posso ver que fizeram uma ótima escolha. E ficou muito bom no usuário… 



Depois que saímos da loja, Amice me pagou um hambúrguer de três carnes recheado com queijo cheddar e uma variedade de temperos que me levaram aos céus. Emy ficou com um sorvete de açaí de cinco bolas. Sentamos para comer em umas das mesas públicas perto do chafariz. Conversamos e rimos bastante. Eu realmente senti falta disso. Minha mãe colocou a mão por cima da sacola da armadura e seu olhar baixo de um jeito que fez meu peito doer, mas logo ela se recompôs e sorriu, enquanto apontava para a água que subia. Quando levantamos, dei um abraço bem apertado nas duas, e fomos andando assim. 

 

De repente, uma energia surgiu. Era tão reluzente que eu percebi o porquê dos níveis clarearem de acordo com o poder da aura. Outra dúvida atingiu minha mente sobre o poder sombrio e gelado, mas ficaria para outra hora. Paramos de andar, talvez Amice também tenha percebido. Uma mulher estava sentada em um banco um pouco acima da nossa viela. Seus cabelos, que eram de um loiro claro prateado, caíam sobre seus ombros e costas, enquanto apenas uma fração balançava por causa do vento. Seus olhos alvacentos impregnavam calma, eles analisavam cada mínimo movimento meu, como se pudessem ver muito além do meu estado físico. Ela estava de pernas cruzadas e com as mãos apoiadas nas laterais de suas coxas, que eram cobertas por uma roupa preta. O resto do corpo contava com uma armadura em tom entre branco e cinza que tinha um símbolo dourado acima do peitoral. Nossos olhares se cruzaram, e sua voz suave e leve fez com que meu corpo ficasse alerta.

 

— Menino do jornal. 

 

— Quem é-

 

Amice fez com que eu e Emy nos curvássemos antes que eu pudesse falar. 

 

— Eu sou Irgati. — Fiquei quieto, na esperança de que ela continuasse a falar. Fui surpreendido pelo tom sereno de sua voz. — Nomes.

 

— Amice Ken, senhora Amarzian, e essa é minha milha, Emy Ken. — disse minha mãe, e eu finalmente entendi quem ela poderia ser. 

 

A elfa travou seu olhar em mim.

 

— Lumi Kai. — falei, indiferente. 

 

— Se levantem. Qual é o seu objetivo, garoto? 

 

— Quero ficar forte. 

 

— Quanto?

 

— O quanto eu puder ser. 

 

— É um caminho árduo. 

 

— Eu seguirei. 

 

— Então é provável que nos encontremos novamente. 



— Ela era uma cavaleira Real, Lumi! Você atraiu atenção dos maiorais do Elderer! — disse Amice assim que entrei em casa. 

 

— O que!?

 

Minha mãe levou um tempo para me contar sobre Irgati. 

 

Meu pai chegou com duas malas e as largou no chão, o que trouxe um estrondo na casa. Emy correu para ele e pulou em seus braços enquanto dizia para ele não ir. Um nó surgiu em minha garganta quando minha irmã começou a chorar. Amice abraçou o homem e lhe deu um beijo. Eles três estavam ali, abraçados, até Kanro me chamar. 

 

— Campeão. Fique forte. — Desta vez ele não sorrira, era como se suas palavras tivessem um peso maior agora. — E, como prometido, meu presente para você. 

 

Ele me deu um abraço apertado e eu retribuí. Meu rosto ainda batia no seu peitoral, ele era muito alto. Kanro colocou uma caixa retangular bem comprida em minhas mãos. A energia era familiar, eu conhecia essa espada. Mas quando abri a boca para falar, ele se despediu delas novamente. 

 

— Prometo voltar o quanto antes! — disse Kanro, com um sorriso no rosto. A brisa de ar pairou quando a porta foi aberta. Quando finalmente ele fechou, eu havia voltado à realidade.

 

Ele havia ido. 









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