Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 7: Um dia, talvez

O vento balançou o meu guarda-chuva a ponto de eu ter que segurá-lo firme, a chuva molhou toda a lateral do meu corpo enquanto eu andava quase sem sentir os meus pés no chão. 

Utilizando meu peso para evitar ultrapassar a altura de uma casa, eu finalmente abri mão do meu protetor, deixando-o voar para onde o vento quisesse levá-lo, e caí de três metros.

Corri até a única loja acesa no meio da névoa da cidade vazia. A pressão do vento me fez parecer uma criança subindo junto a um balão quando tentei fechar a porta.

Sentei-me em um banco simples de madeira e apoiei a mão sobre o joelho. Havia diversas prateleiras de armas, e eu tive tempo para analisá-las enquanto tentava recuperar o fôlego; chegar aqui foi semelhante a expedições, exceto que minha vida não estava em risco. 

— Bom dia, meu jovem. Quer um copo de água? — disse o senhor no balcão.

— Já bebi água o bastante para chegar aqui, senhor.

— Não precisa ter pressa para sair, a chuva está muito forte.

Acenei com a cabeça e fiquei de pé. 

Não custava esperar.

O ambiente possuía uma enorme variação de armas; fosse nunchaku ou espada pesada curvada, aqui tinha. Fiquei alguns minutos perto da lareira dele para me aquecer. 

O senhor me trouxe uma xícara de chá mate e um sanduíche e… tais gestos me lembraram o meu avô.

Um pesar no peito e um forte sentimento de saudade vieram…

Cirlan disse algo como “compre uma arma para usar, nem que seja de madeira” na última missão.  

Apesar de Kaled ser um bruto, ele me salvou algumas vezes desde que comecei. Eu podia dizer que me dou melhor com a Cacele, mas parecia que ela sentia pena de mim e queria que eu continuasse vivo. 

Peguei uma espada de bambu — que custava cinco moedas de bronze —  e um pequeno escudo circular de madeira —  que me custou dez moedas de bronze —  e fui ao balcão. 

O senhor me perguntou sobre o motivo de eu comprar armas tão simples, eu respondi que era necessário para o time de coleta e ele se surpreendeu. 

Segundo ele, muitos jovens da minha idade haviam desistido por medo de certos lugares ou incapacidade para certas missões. O pior foi que eu compreendi e conheci os tais medos para abandonar o cargo. 

Saí da aconchegante loja e corri em direção a minha casa. Lama, buracos, galhos… Minha roupa estava em seu pior estado, e a casa estava vazia quando cheguei. 

Tomei um belo e demorado banho e me dirigi até a cozinha, onde havia cheiro de frango temperado e macarrão. Comi por volta de cinco pratos e me joguei na cama. 

Talvez eu estivesse mais cansado do que imaginei, pois o peso do meu corpo havia aumentado, e a cama passou a exercer uma gravidade maior. 

Apenas fechei os olhos e deixei que a exaustão me consumisse; o barulho da janela balançando e gotas de água no telhado ficavam cada vez mais baixos, até que cessaram e eu me vi no mundo dos sonhos.  

 

--------------------

 

— Feliz aniversário! — gritou meu pai, segurando uma pizza enorme e quente com as mãos, e logo a pos na mesa da madeira, onde estávamos todos.

Minha mãe havia convidado Bruno e João para cá a fim de comemorar meu aniversário. Agradeci a ela, eu estava precisando de um momento desse. 

Algumas velas de mana deixaram a casa iluminada o suficiente para esquecer o tempo escuro lá fora, onde a tempestade reinava sobre Karin.

Cirlan com certeza adoraria o fato de eu ter alcançado a idade na qual ele seria um pouco menos responsável pelo meu estado físico. 

Erguemos as taças com suco de laranja e fizemos um brinde ao “coletor”. 

Emy se acabou nas pizzas e deu pouca atenção para as taças, ela comia as pizzas como se fosse a sua última refeição. 

Dei boas risadas com todos aqui, até que chegou a hora dos presentes. 

Eu podia dizer que o de João foi o mais peculiar, ele me deu cinco pesos. Cada um pesava dez quilos. Havia um para cada membro do meu corpo, sendo o do peitoral o que possuía um peso diferente — mais ou menos vinte quilos, eu achei. 

Ele disse que era pra eu ir além treinando e que pensou em mim quando realizou um treino relacionado a fugir de jacarés enquanto carregava peso. Bruno deixou comigo uma varinha carregada com um feitiço de água, e o melhor é que ela foi feita por ele. 

Isso foi incrível. 

Balancei a varinha e todos abaixaram, assustados. Resolvi guardar depois disso. Minha mãe me deu um livro sobre campeões; ela sabia que eu queria esse há bastante tempo. 

Meu pai se encarregou de comprar dois ingressos para um restaurante que serve peixe cru, e particularmente eu estava curioso para visitar. 

No final, Emy se aproximou, olhou para o lado e colocou a mão no bolso.

— Eu que fiz, vê se não destrói que nem você faz com seu equipamento — disse ela ao me entregar uma pulseira preta com detalhes dourados.

— Sua pirralha — falei, minha sobrancelha direita mexendo sozinha.

No resto da noite rimos e conversamos, além de comer pizza até passar mal. Eu tinha que dizer: meus pais arrasaram nesse rodízio de pizza caseiro.

Bruno e João ficaram para dormir, o tempo ainda estava feio. Arrumei dois colchões no chão e me deitei na minha cama, enquanto eles estavam se aconchegando nos lençóis e cobertores que eu havia jogado. 

Cogitei dormir com um cobertor a mais. Dado que a expedição foi em meio a chuva e vento, eu merecia. 

— Como foi o treino de hoje?

— A gente aprendeu a lançar uns feitiços de longe. Aria arrasou nessa tarefa — O olhar de João estava… manso? — Tão bela…

— Benevi a parabenizou.

— E a-

— Ellie? Ela está em primeiro lugar no ranking de alunos nível Sombra. 

Ainda era difícil de acreditar que uma menina com tamanho talento tenha me notado, era uma pena eu não ter visto mais ela desde o dia do chafariz. 

Nas únicas duas vezes que ela me viu eu estava apanhando ou caindo, devia ter passado uma imagem péssima. 

Isso me lembrou que era melhor eu refazer as rotas seguras na cidade, o tal de Zelforne alguma coisa falou sério quando disse que queria me matar. Eu soube que ele só continuou na academia por conta de sua renomada família.

Suspirei em derrota e continuamos a conversar. Eles avançaram muito em combate físico e magia, seria mentira se eu dissesse que poderia ter uma boa luta com eles agora. 

Considerando que tudo o que eu mais fazia era correr, quase morrer e rolar, eu seria um bom membro fugitivo. Me enrolei em posição fetal, fiz minha cara de pensativo e bufei. 

— Calma, amigo, você ainda vai ter o seu momento de brilhar.

— Conheço casos de magia tardia. 

— Pode até ser, mas acho que, mesmo se eu algum dia usar o mínimo de magia possível, eu não seria capaz de brilhar.

— Isso você vai descobrir. Em breve, quem sabe. Até mesmo os melhores alunos na academia foram incapazes de desviar de ataques muito mais simples do que os você desviou — disse Bruno, se virando para dormir. 

Segurei uma risada, nem eu sabia exatamente como desviei daquilo. Depois de um “boa noite” resolvemos dormir. 



---------------------

 

— Irmão, acorda! Tá na hora de me levar para a escola.

— Já vou, estou só procurando um casaco. 

Peguei meu melhor casaco preto e a calça cinza mais quente que eu tinha, depois saí do quarto e parei na cozinha com as mãos na mesa. 

Talvez eu devesse usar dois cachecóis. 

Emy estava pegando a lancheira que Kanro havia feito. Ela estava mais agasalhada que eu, com dois casacos e uma calça feita de um tecido bem grosso. 

Abrir a porta trouxe uma brisa que me fez recuar um passo, colocar as mãos no bolso e levantar o capuz. Emy agarrou minha blusa e eu peguei sua mochila, que estava relativamente pesada para uma criança de dez anos. 

Chegamos à escola em pouco menos de meia hora. 

Dei um abraço forte na minha irmã e a deixei correr para os seus colegas de turma. Para o meu azar começou a chover bem no momento em que pisei fora, a indignação com certeza ficou explícita quando o meu queixo caiu. 

Abri o guarda chuva na esperança de realmente me proteger da água.

A chuva estiou, e eu pude me dar ao luxo de parar no chafariz para observar as mínimas gotas o tocarem. Vagas lembranças me tocavam, eu sabia que era perigoso sair em missão sem utilizar magia, mas mesmo assim eu tentei. 

Quanto mais eu aprendia e adquiria experiência, mais eu entendia que era impossível caçar um minotauro. Envolvia muito mais que determinação e querer, envolvia potencial. 

Me senti perdido, parado em um ponto estático no qual era impossível escapar. Uma menina do outro lado do chafariz tirou a minha atenção quando abaixou o guarda chuva.

Era Ellie.

Oh, merda. Ela podia me ver aqui. Virei o olhar, coloquei o guarda-chuva na minha frente e dei dois passos cautelosos para trás. Seria vergonhoso uma pessoa tão incrível, que me viu apanhar, falar comigo. 

Olhei por cima do guarda chuva para espiar, mas ela já havia sumido. Suspirei e abaixei o guarda-chuva. 

Que sorte. 

— Oh, você é o menino do teste… — Dei um gritinho, ela apareceu atrás de mim do nada! Senti meu rosto queimar. — que não sabe lutar.

— Eu tentei, mas era impossível. 

A chuva apertou. Levantei o guarda-chuva novamente e Ellie se aproximou de mim. Meu coração começou a fazer sua função um pouco mais rápido, até que ela me olhou e aproximou o rosto. 

Eu travei. 

Seus olhos possuíam duas tonalidades de verde claro, seus lábios eram perfeitos, e seu cabelo loiro a dava um charme descomunal. 

Essa menina era um espetáculo.

— Por-por que se aproximou? —  Que pergunta patética, Lumi.

— Meu guarda-chuva quebrou. Para onde pretende ir? — A voz dela era cercada de calma e confiança, fiquei perdido em sua tonalidade. Eu pretendia ir para casa, mas não era todo dia que tenho uma chance de ouro como essa e talvez a chuva me impedisse disso. 

— Pro portão principal, mas pretendo parar em algum canto, a chuva está apertando.

— Quer ir para o Café e Biscoito?

— Sim, quero —  Tentei segurar um sorriso, mas acredito ter falhado miseravelmente. Ela me chamou para sair discretamente?

Na maior parte do caminho eu me concentrei em andar, estava nervoso demais por estar perto dela e mais ainda ter tropeçado no meu próprio pé. 

Apesar de seu semblante sério e tranquilo, eu podia jurar que seu lábio havia se curvado o mínimo que fosse. O Café e Biscoito era próximo, mas estávamos em um ritmo lento. 

A muda de roupa dela era semelhante à minha, estando apenas com um casaco escuro e uma calça preta. 

— Você faz parte de algum setor da academia?

— Sou do time dos Coletores… — Seu olhar pacifíco estava grudado em meus olhos, como se esperasse que eu continuasse. — É um pouco diferente do que a maioria pensa, preciso treinar muito se quiser coletar míseras flores no alto de montanhas duvidosas. 

— Na descrição para o cargo estava escrito que havia uma boa chance de contato com monstros. Foi surpreendente quando a notícia de que um menino foi derrubado por um goblin se espalhou. 

Meus olhos apenas se arregalaram e minha boca se curvou para baixo, eu podia ouvir o sangue latejando no meu ouvido. Será que ela sabia que era eu? 

Deixa disso, Lumi, faça uma pergunta bacana. 

Quando abri a boca para seguir com o meu plano, a chuva ficou mais forte, e a bela menina entrelaçou o seu braço no meu. 

As palavras que estavam na minha boca recuaram, decidiram por si só que permaneceriam escondidas até que meu rosto fosse diferente de um tomate. 

Andamos até a frente da loja, na placa estava escrito “acessível”. Uma luz branca podia ser vista, mesmo através da chuva. Ellie abriu a porta e entrou. Eu fechei o guarda-chuva, pulei para dentro e parei atrás dela. 

Tinham pessoas espalhadas pelo local, apesar de que estava basicamente vazio se comparado ao habitual. Ellie se sentou em uma mesa próxima a uma tocha de fogo e magia, olhei para ela e para o redor. 

Isso seria um encontro? 

Foca, Lumi, deixa de ser maluco.

Sentei ao lado dela, eu senti algo pesar em meus ombros. Descobri que meu cachecol estava encharcado, fui obrigado a colocá-lo no braço da cadeira. A poltrona era fofa, tinha uma almofada vermelha, e a mesa foi feita com uma espécie de feitiço para manter o ambiente mais quente. 

Estiquei os ombros para trás e meu olhar encontrou o dela, ficamos três segundos nos olhando até eu virar o rosto para o lado. 

Ela prendeu o cabelo. Que gata, meu coração podia ceder. 

Um garçom veio para a nossa mesa, eu pedi um suco de laranja e ela uma xícara de café.

— Quais… são os seus motivos para treinar? Sabe, aonde quer chegar?

— Minha família. — ela respondeu, sua calma havia sido substituída por uma feição mais vazia. Fiquei com medo de seguir com o assunto, mas mesmo assim escolhi perguntas.

— Apenas isso? Digo… — desviei o olhar antes de encará-la de novo. — Nada mais?

Um silêncio constrangedor se alastrou, e o garçom trouxe nosso pedido. Ellie tomou um gole do café e me olhou com seriedade. Minhas pernas chegaram a tremer, ela podia me matar.

— E a sua?

— Caçar um goblin… — falei, com um enorme receio de continuar. O silêncio durou pouco desta vez.

— Sua técnica é péssima. — disse ela, e casualmente tomou outro gole de sua bebida. — A pior que eu já vi. 

Abri a boca para retrucar, mas ela tinha razão. Se eu considerar que meu último encontro com um foi em uma situação crítica, posso dizer que eu ganhei passivamente. 

Entretanto, passei longe de vencê-lo em um combate. Lancei meu olhar a chuva que batia no vidro, minha realidade estava andando distante da minha meta, nesse ritmo o fracasso me aguardava com o sabre na mão. 

Ser um aventureiro que só lutava na base da porrada parecia inviável, e eu considerava tentar.

— Eu posso ajudar.

Neste exato instante, a chuva parou. O silêncio, o clima, seu olhar e suas palavras foram como uma oportunidade, uma esperança, se abrindo de bem longe. Fiquei sem saber como reagir, sem compreender o porquê dela querer me ajudar. 

Se bem que isso pouco importava. Quando o garçom chegou com a conta, uma mosca desgraçada adentrou em minha boca. Eu tossi. A essa altura minha dignidade já havia ido para o ralo. 

Ellie colocou o dinheiro na mesa e se levantou. Que pesar, esse momento durou tão pouco.

— Obrigada por me trazer aqui — Ela me agradeceu!

— Disponha, Ellie.

Ela abriu a porta e eu resolvi dizer.

— Aceito. Eu aceito sua ajuda. — O lábio dela se curvou em um mínimo de um sorriso e ela gesticulou que sim com a cabeça.

Muitas emoções. Um sorriso grande em meu rosto, minhas mãos estavam suadas, e tremendo um pouco. Acreditei que, se não estivesse em um local fechado e silencioso, eu gritaria muito.

— Ela é sua namorada?

— Quem dera, meu caro, quem dera. 

O garçom se retirou após receber o dinheiro. Foi aí que eu percebi: ele tinha um corpo bem denso e seus passos eram silenciosos. 

Um homem usando um sobretudo marrom e um chapéu chegou ao lado de um soldado familiar. Ele observou todos presentes aqui, seus olhos estavam extremamente cerrados, e seu soldado colocou a mão na bainha da espada. 

Era Kairy, o maldito que me desmereceu na luta contra o nobre.

Os olhos do homem se arregalaram quando me encontraram, seria difícil tentar dizer se o sorriso que se formou nele foi maníaco ou normal. Suas botas agitaram o chão como um tambor enquanto ele andava até mim. 

Ele puxou um cartão preto do bolso, inspirou todo o ar que conseguiu e disse:

— Lumi Kai, certo? Temos uma missão urgente para você realizar.



Comentários