Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 6: Décimo Reino

Ellie Higasa

 

Os balanços param quando adentramos no Reino. 

Meu pai sempre dá um jeito de conseguir carruagens com poltronas confortáveis quando eu ou minha mãe viajamos. Ele sabe que ela gosta de conforto, e eu também. Deslizo a corda da cortina e observo que os primeiros raios do sol alcançam as telhas triangulares, iluminando o dia antes mesmo de mim.

Estico-me primeiro para cima e depois conduzo o corpo para os lados, permitindo-me controlar o ritmo da respiração, soltando tão devagar quanto inspirei. 

Os primeiros comerciantes erguem as portas enquanto ajustam bolsas pesadas demais; quando o dia promete lucro, ninguém arrisca levar pouco. As rotas do Décimo Reino são as mais seguras do continente, e os investimentos do Rei Lotier Aurelthar apenas amplia o movimento nas estradas. 

Mas onde há vida, há olhos observando: monstros começaram a surgir.

Ainda pouco se comparado a um Reino de menor número, mas certamente fora do que chamamos de “habitual". 

Arrasto a ponta dos dedos pela lombada dos livros que me acompanharam durante o trajeto, deixando que a textura das capas me tire um fraco sorriso de canto. Então me levanto.

Dobro o cobertor com cuidado, estico os vincos e organizo o interior da carruagem até que tudo esteja exatamente onde deveria estar. Só então permito a mim mesma alguns minutos para lavar o rosto e aplicar uma maquiagem leve, suficiente para devolver cor às maçãs do rosto e suavizar o cansaço da noite.

Abro o baú ao meu lado e retiro um dos vestidos que as assistentes dobraram com tanta precisão que ele parece recém-saído de uma vitrine. Segurá-lo entre as mãos me devolve uma familiar sensação de controle.

O vestido alcança pouco abaixo dos meus joelhos, com mangas delicadamente caídas, em um corte que realça meus ombros. Posiciono meu colar dourado no centro do meu peito, afastando a nostalgia que busca me alcançar. 

As mechas loiras fluem como rios em perfeito contraste ao preto do vestido e o brilho esverdeado em meu olhar. Deixo a bainha do vestido rodopiar em frente ao espelho e olho por cima do ombro para minhas costas. 

Ótimo.

— Senhorita Ellie, está acordada? — O cocheiro dá duas batidas receosas. — Nós chegamos. 

— Estou sim, Ulmer — A porta então é aberta, e logo uma escada é colocada. — Bom dia — Dou-lhe um sorriso gentil. 

Ele se curva levando a mão direita à frente do coração. 

— Bom dia, senhorita — Em um gesto leve, permito que Ulmer levante, e nossos olhos se encontram. — A viagem foi agradável? 

— Foi sim, obrigada — Dou a mão para Ulmer ao descer a escada. 

E, então, encho os pulmões ao me deparar com a mansão. Meu pai prioriza a estética ao lado da eficiência, acrescentando um lindo chafariz no meio do paralelepípedo branco, onde o jorrar da água invade o céu e se espalha para os setores de flores e os maiores pinheiros; que deixam um aroma hipnotizante de limão.

— É uma honra, senhorita — Sua voz é coberta de respeito, atenciosa e calma ao se referir a mim.

Ulmer vai até a atrás da carruagem, onde as malas estão armazenadas, e pega, ao mesmo tempo, as três que escolhi trazer de nossa casa do campo. Sinto sua essência de mana parar ao meu lado sem sequer olhá-lo.

Posso acelerar a percepção, mas quanto?

O canto dos pássaros se mistura ao balançar da folhagem, deslizando em meu cabelo como o sopro de um grifo. O silêncio predomina nas ruas deste lado da cidade, pois nem cedo o comércio pode passar por aqui. 

Ulmer leva as bagagens para cima do curto lance de escadas — com apenas três degraus —  e as apoia em cima do tapete da varanda da frente, no centro das enormes portas duplas; de um vermelho forte adornado com listras douradas. As infinitas janelas são abertas uma a uma pelas empregadas de dentro, e o varrer soa ao fundo do corredor.

Viro-me para o azul do céu, protegido por nuvens circulares parecidas com finas folhas brancas, e fecho os olhos por um momento — onde me permito refletir as lições mais importantes que aprendi na viagem, como aquele passo- 

Lady Ellie Higasa — A voz feminina me chama da porta, e meu coração dá uma leve palpitada, mas nada que eu permita transparecer.

Seus passos se aproximam, mas sua assinatura de mana a entrega antes. Logo atrás vem Ulmer. Consigo diferenciar os níveis de energia entre eles a ponto de saber que Ulmer é mais fraco, mas é como se meu senso mágico fosse constantemente ofuscado. 

— Bom dia, Avelyne — Viro-me para ela, finalmente abrindo os olhos, e deixando meu cabelo balançar. — Papai a deixou à minha espera?

Seus olhos são de um castanho claro que fica lindo ao sol, destacando-se entre seus cabelos penteados sobre os ombros um pouco mais escuros. Avelyne é posturada como uma lady e uma combatente, mantendo sempre os ombros para trás e o peito e o queixo erguidos.

— Sim, senhorita. A senhora Hanila precisou resolver às pressas uma questão com o reino e o Lorde Hiroki possuía uma reunião agendada para de manhã. 

Papai sempre gosta de realizar as reuniões o mais cedo possível, às vezes antes do comércio começar, às vezes antes do sol acordar… Ele diz que isso mantém o foco renovado de todos que trabalham com ele, certos do andamento dos projetos e para onde estão caminhando. 

— Primeiro ao meu quarto, depois quero ir até ele — Me direciono a Avelyne, depois ao cocheiro: — Você pode ir, Ulmer. Obrigada pela viagem.

— Disponha, Senhorita. Com sua licença — Ele se curva para mim e depois para Avelyne, que move ligeiramente a cabeça para cumprimentá-lo. 

Ulmer então caminha até os cavalos e tira duas maçãs de sua bolsa de couro, oferecendo uma a cada um. Ele os afaga com esfregadas e pequenos abraços, gestos que arrancam relinchos satisfeitos de seus companheiros de viagem.
Avelyne me espera na porta, com as bagagens nas mãos e, ao vê-lo pegar um grande balde de água para servi-los, eu caminho até ela.

Ela apoia as duas bagagens em cima da que possui rodas e abre totalmente a grande porta dupla, fazendo uma reverência para que eu passe primeiro. Me deixo respirar o ar de casa assim que entro.

Confortável, seguro, refinado.

As três empregadas ao fundo correm para me cumprimentar, curvando-se felizes por me terem de volta. As portas se fecham atrás de mim quando avanço pelo corredor, apenas ouvindo minha aia arrastar a mala e trocar poucas palavras — sobre preparar o café e me servir — mas… eu pressinto as auras embaçadas, como se fossem uma só. 

Eu estou em pleno estado físico. Onde estou errando?

Os lustres dourados se encontram todos apagados, separados por cerca de 15 passos pelo extenso corredor principal. O tapete é vermelho e adornado com linhas douradas como as portas, com janelas rústicas de madeira clara e vidro azulado. As colunas, brancas e com linhas esculpidas cuidadosamente por mãos habilidosas.

O corredor principal da mansão recebe a porta da frente e dá acesso a setenta por cento do primeiro andar, das primeiras cozinhas, a sala de estar, o quarto das empregadas… Ele para na área de treinamento aberta e na academia, onde meu pai ensina cavaleiros e guardas como aprimorar suas técnicas corpo a corpo e mágicas.

Borboletas-monarcas voam entre os girassóis do quintal interno, e o toque suave do sol aquece minha clavícula. 

— Conseguiu o contato com a natureza que desejava? — Avelyne me pergunta da beira da escada. — Podemos incrementar alguns elementos novos no seu próximo treinamento.

— Na verdade, eu tenho uma nova meta em particular — respondo enquanto me aproximo e começo a subir os degraus. Ela logo me acompanha. — O contato com os meus primos foi, de muitas formas — Irritante. — reflexivo — Suspiro ao lembrar do deboche constante, Avelyne abafa uma risada mal disfarçada quando finco meu olhar a ela.  

— Gostaria de tê-la acompanhada para conhecer seus tão queridos familiares — Ela ergue minimamente o canto dos lábios, me tirando outra fincada no olhar. 

Chegamos ao corredor de cima, uma área de restrito acesso a maioria dos funcionários, com áreas de lazer da minha família e meu quarto no fim. As velas, no centro de cada parede entre as portas, mantêm as chamas amarelas graças a uma simples runa mágica desenhada por nosso mestre das runas. 

Como uma pequena escritura mágica consegue canalizar tão bem o efeito da magia? O brilho é mais amplo do que uma simples vela, porém o calor se mantém retraído, quase imperceptível. Seria ele usado como combustível para fazê-la durar mais tempo?

Duas batidas na porta do meu quarto, Avelyne me espera no final do corredor com as sobrancelhas arqueadas. Meu Deus, me distraí por quanto tempo? Dou rápidos passos apreciando os maravilhosos quadros na parede como se ela não estivesse ali.

Não gosto desse calor no rosto.

— Como você não deve ter me ouvido, vou repetir: — Ela abre a porta, empurrando as malas para dentro. — Qual é sua nova grande meta, Ellie Higasa?

— Eu vou te contar quando formular melhor os meus princípios — Caminho com o até o centro do tapete felpudo e então abro a janela principal do meio quarto.

Sou abençoada com a vista graciosa das montanhas distantes, cobertas de gelo em seus cumes, logo abaixo do mar de nuvens escuras e chuvosas. Meus cabelos são agitados pela brisa gelada, que ergue as cortinas e balança meu dossel; derrubando ao final de seu ciclo meu caderno de desenho outrora apoiada na minha mesa de estudos. 

Avelyne abre a janela menor que fica ao canto, virada para o castelo no centro da cidade. Sua mão escorre suavemente pela lateral do rosto para tirar os cabelos balançantes e vira para mim.

— O senhor Hiroki está na sala de reunião da academia — Ela levanta o caderno, apoiando-o acima da escrivaninha. — Deixarei você se aconchegar, há uma lista de tarefas à sua espera na tecla dó do teclado. 

Que específica. 

— Obrigada, Alvelyne.

— Disponha, Lady Ellie.

Ela ergue a saia de seu lindo vestido azul em uma reverência respeitosa e se retira, me deixando a sós com o balançar das cortinas, embaladas pelo fechamento da porta. 

Mantenho o controle das batidas de meu coração quando me aproximo da caixa de mensagens, hesitando por um segundo antes de abrí-la. Entendo que esteja vazia, porém parte de mim desejava uma notícia dela em um momento tão crucial como esse.

 

*

 

Apenas penteio meu cabelo, deixando o loiro deslizar solto pelas minhas costas, e saio do quarto. Na lista de tarefas, há alguns estudos específicos de mercado, práticas com a espada de madeira e o aprimoramento da minha melodia no teclado.

Ser um lorde renomado nos traz muitos benefícios, meu pai sempre busca me ensinar como se tornar uma lady na realeza e uma guerreira na academia. Minha mãe é uma Grande Dama — em par com ser um lorde — majestosa e hábil em tudo que faz. 

Eles prestam auxílio direto ao rei em grandes causas, o que os manteriam ocupados a maior parte do tempo, mas papai decidiu que o envolvimento com o castelo seria mínimo depois de tudo o que houve. 

Uma caminhada pelo quintal interno é renovadora. Sinto a textura das lavandas, das rosas — sou apaixonada por rosas — e das margaridas. Permaneço alguns minutos sob o sol da manhã enquanto folheio meu livro de bolso, sentada em um banco de carvalho branco.

O crescimento gradual das atividades em casa me diz que é hora de ir, então me levanto e rapidamente tomo o corredor principal. Ergo as mãos para as breves reverências que os funcionários fazem para mim e avanço direto para a sala de reuniões. 

— ... o Minotauro é uma criatura de categoria 5. Sua presença nas montanhas de uma cidade onde até a magia pode ser ausente é, no mínimo, associável a eles — Um minotauro? Papai sempre evita a rota de qualquer território relacionado a eles. — Envie um Voin à Rainha Alyssa, alertando que ficaremos atentos a qualquer sinal dessa irregularidade, mas que, por enquanto, não temos intenção de colaborar em campo.

— Sim, senhor — Vejo um homem alto saudá-lo, a voz grave e firme, da brecha da porta. 

— Pode sair. — Meu pai responde autoritário como de costume. 

Ele veste um terno negro impecável, encoberto por um sobretudo de corte firme que realça ainda mais sua presença. O tecido parece absorver a luz ao redor, deixando seus olhos vermelho-escuros ainda mais marcantes quando se encontram com os meus. Inspiro discretamente para voltar a postura que eu sequer deveria ter saído. 

Me distraí. Excelente, Ellie…

— Lady Ellie — O homem abre a porta e se curva. — Por favor — Ele sinaliza para que eu entre.

— Obrigada — Assinto para ele e caminho sem pressa para dentro, onde levo as mãos a saia do vestido para reverenciar meu pai. — Papai. 

— Querida — Com apenas um olhar dele, o guarda se retira, fechando a porta tão devagar que mal pude perceber. — Como foi a viagem? 

Hiroki contorna a mesa e abre os braços, e eu me permito dar um passo à frente para envolver sua cintura. As mãos dele alcançam minhas costas, seus lábios encontram minha testa, e um pequeno flash de memória atravessa minha mente como uma nuvem quando fecho os olhos.

“Vocês duas, venham cá. Isso é hora de estarem acordadas?”.

— Sei que o senhor esperava afinidade elemental, mas a viagem me trouxe um entendimento mais profundo do meu propósito.  

Não preciso de uma voz firme com ele. Posso só… ser eu. 

— O que eu esperava era apenas um pequeno vislumbre do que acredito que você pode fazer. — Recuo o mínimo para olhar para cima, direto em seus olhos. — Gostaria de compartilhar esse novo conhecimento?

— Sim, quero sua visão ao que decidi para mim — Nos desvencilhamos sem pressa, sinto o toque paterno, a segurança de sua voz e olhar, de sua aura magnífica ausente de falhas e refinada em poder. 

— Você sempre terá, querida. Tomou seu café da manhã? — Hiroki busca uma das cadeiras acolchoadas e põe ao lado da dele, permitindo-me sentar primeiro.

— Ainda não, Avelyne notificou as cozinheiras para me trazerem assim que estiver pronto — Ele senta em sua grande cadeira de novo, separando e juntando alguns papéis da mesa até virar para mim novamente. — O senhor tomou o seu?

— Apenas o primeiro, antes da primeira reunião, tomarei o segundo com você — Hiroki reúne os papéis em uma pasta e fecha, dando total atenção a mim agora. 

Um palpitar me deixa vaga por um simples segundo; um que me esforço para não transparecer. Sei que ele vai me ouvir, mas… que agito é este em meus pés? Lido com monstros sem grande esforço, e sou capaz de realizar tudo que me é proposto. 

Sempre atendo às expectativas.

— Eu quero-

— Lorde Hiroki! — Uma voz masculina inusitada da porta. — A senhora Hanila retornou.




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