Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 4: Duas, três

Elanor segura meus ombros e encara meus olhos, mas tudo que consigo ver é a silhueta dela, turva e distante. Ela me envolve em um abraço gentil, seus dedos em um cafuné profundo em meu cabelo. Engulo seco qualquer choro que pretenda sair; Fecho meu rosto em uma carranca assombrosa e agarro minha amiga entre meus braços, aperto firme o tecido de seu casaco e respiro profundamente.

Uma vaga lembrança de meu avô me ensinando a meditar percorre meus pensamentos, e logo se vai com a vontade de chorar e gritar. Meu coração parece um pouco mais leve, o suficiente para me afastar minimamente dela e encará-la nos olhos. Elanor me dá um sorriso gentil e põe a mão sobre minha cabeça, seus olhos preocupados, mas me passando uma tranquilidade que atinge meu peito. Desço as mãos para sua cintura, depois a solto. Respiro fundo novamente enquanto fecho os olhos.

Estou aqui porque escolhi ser melhor. Porque escolhi não ficar em casa remoendo o que aconteceu. Força, Lumi. Vá até aqueles caras da coleta e reaja.

— Obrigado, Elanor — digo com sinceridade e um tom leve, ergo levemente os lábios para ela. — Obrigado por vir comigo hoje.

— Não precisa me agradecer por isso, seu bobo — Ela tira a mão da minha cabeça e dá uma piscadela. Ela toca suavemente meu queixo e me direciona para a viela que leva a Raiz de Ferro, a casa dos Coletores. — Você ainda tem um propósito para hoje.

Com meus pelos arrepiados, eu estufo meu peito e me viro devagar. Cerro os punhos e os olhos para o caminho a frente. Começo a andar com uma gota estúpida de determinação — Ou teimosia — e ela me acompanha. Nessa parte da cidade, ainda há alguns elfos tentando vender suas estranhas poções para as poucas pessoas que ousaram sair de casa. 

Elanor fica perto de mim, os olhos atentos dessa vez. Desde que ela virou aventureira, ficou bem mais sagaz nas ruas e um tanto mais… forte. Posso dizer que a tornou muito mais bela. Ela segura meu braço e acelera nosso passo, então vejo um pequeno grupo dos guardas da cidade — em 5, se não estou enganado — próximos de um anão com a cara emburrada.

Consigo ouvir algo como “Precisamos de espadas…”, mas não tiraram nada além de resmungos do anão mal humorado. Eles são tão baixinhos e andam com tanto rancor. Será que eles consideram outro possível ataque depois daquilo? Os guardas de Karin não devem ter porte para enfrentar criaturas, mesmo as mais fracas como goblins.

Eu soube pelo meu pai que quase metade abandonou a defesa, com medo de terem que enfrentar um ser daquele tipo ou de possíveis monstros pequenos tentarem atacar as fazendas de fora. Pensando bem, eu sou bem a cara de quem poderia ser a primeira vítima. 

O número de patrulhas lá fora caiu drasticamente, se é que haviam muitas. Eles iam apenas para rir e trocar palavras com os fazendeiros, o máximo que já fizeram foi segurar um auroque furioso que cismou com a rizicultura do meu pai. 

Não reclamo, Karin é sempre segura. Mas se houver qualquer dungeon por perto, tudo muda.

Paramos bem em frente à Raiz de Ferro. Cercada por árvores e flores de mana brancas e azuis, é uma casa de madeira com blocos de pedra nas vértices, um pouco maior que as demais. Fica colada ao muro e, por isso, acabou isolada. Uma linda fonte repousa na frente; o som da água escorrendo relaxa meus ouvidos. Atrelado ao canto dos pássaros e ao silêncio constante, entendo por que construíram aqui.

É como… a tranquilidade da fazenda. 

— Olha só — Ela dá pulinhos na minha frente até chegar na fonte. — Eles gostam mesmo de simplicidade — Ela coloca as mãos na cintura enquanto olha para a casa. — Bem a sua cara — Ela vira para mim, e eu arqueio a sobrancelha.

— Não posso negar — Me aproximo devagar, tento evitar a lama e os muitos gravetos que a chuva deixou. — Vem cá, como tem sido suas aventuras? — Paro na frente dela ouvindo desconfortáveis “crashes”. — Eu queria saber… 

Elanor inspira com calma; seus olhos cor de mel me hipnotizam, transmitindo uma tranquilidade quase irreal. Ela olha para a porta de carvalho escuro e depois para mim. 

— Você vai gostar de saber, senhor Kai, mas não é a hora — Ela aponta com indicador várias vezes para a casa. Eu cerro os olhos para ela e me viro. 

Tum tum tum.

Cada passo esmaga míseros gravetos no caminho, minhas mãos começam a formigar e a porta parece se tornar gigante. Engulo seco e continuo andando até parar na frente dela, meus olhos ainda parados no chão.

Posso não vencer o trauma, mas sou capaz ao menos de fazer isso.

Ergo o braço vacilando, meus dedos se negam a obedecer os meus comandos. Respiro fundo e fecho os olhos de novo, acalmo minha energia com uma pitada de mana em meus pulmões, trocando todo o ar bem devagar.

Cerro o punho tremendo junto às pernas e bato à porta. Uma, duas, três vezes — como se cada batida fosse contra minha própria hesitação.

Pressiono meus dentes e agarro a maçaneta com força antes de empurrar a porta. O ar lá dentro é quente em contraste com o frio que deixamos para trás.. Dou um passo hesitante para frente e Elanor entra ao meu lado, deixando a porta bater atrás. 

De fato, até aqui dentro eles preservam o silêncio. 

Há um homem alto e com feições bem marcantes no galpão. Seu cabelo é loiro e está penteado para o lado. Seus olhos azuis foram os primeiros a me encontrar. Mesmo que eu não consiga sentir auras como os outros, eu… sinto a dele.

 Um arrepio percorre minha espinha. É densa e ativa, como se fosse uma barreira protetora pronta para eliminar qualquer ameaça que chegasse perto. Não posso negar que minhas pernas vacilam por um instante e engulo seco, mas essa pressão enfadonha diminuiu.

Ainda bem… 

O homem ao seu lado é um pouco mais baixo, ele usa um óculos com lentes circulares, tem o cabelo preto com corte recente e penteado para trás. Este usa um traje mais formal, semelhante às roupas dos nobres da cidade. Seu olhar em mim é pacífico, ele leva as mãos à mesa — empurrando alguns papéis e livros de forma delicada — e me lança um sorriso gentil.

— Sejam bem-vindos! — Seus olhos vão a Elanor e voltam a mim. — Como a Raiz de Ferro pode ajudá-los hoje?

Seu sotaque e tom são mais formais do que estou acostumado. Me faz lembrar quando meu pai me levou ao salão da guilda para falar com o representante da cidade, onde todos pareciam feitos de porcelana, lançando olhares que diziam: "Eu sou superior a você." Ah… não posso dizer que gosto desse tipo de gente.

— E- eu vi um cartaz pendurado em um dos becos dizendo que vocês estavam… contratando — Cadê minha oratória quando eu preciso? — Quero saber se posso me candidatar para trabalhar com vocês — Falo claramente mais baixo e sem vida do que eu gostaria. 

— Vejam só — Ele dá um sorriso, sincero!? — É raro que jovens pensem em se alistar a Raiz de Ferro para sair em expedições de Coleta. A maioria está mais interessada em dungeons e caçar monstros menores — Ele olha para o homem loiro, que se mantém inexpressivo, e o cutuca com o cotovelo, soltando uma risadinha. 

Olho rapidamente para Elanor, que ergue os polegares e exibe um sorriso.

— Você consegue! — ela sussurra, dando uma piscadela.

Viro meu olhar de volta para eles e... É escuro, com apenas uma tocha em cada parede. Caixas estão empilhadas nos quatro cantos, até mesmo atrás do balcão. Alguns jornais estão espalhados pelo chão — inclusive debaixo dos meus pés — e há três goteiras formando pequenas poças.

Acho que a aura daquele cara foi forte o suficiente para me impedir de perceber isso antes.

— Você não vai aguentar o tranco, rapaz — um homem aparece dos fundos, segurando uma caixa de madeira cheia de maçãs e flores de lótus. Seu tom é de arrogância pura, e seus olhos acinzentados se cravam em mim. — O time de Coleta não é essa moleza de ficar na guarda da cidade.

Ele passa por mim ao sair do balcão e coloca a caixa junto das outras. É tão alto quanto o outro, mas seu olhar acinzentado é ainda mais agressivo, combinando com os caninos ligeiramente avantajados. Seus braços são tão fortes que até Elanor se surpreende e os observa fixamente quando seus olhares se cruzam.

— Eu escolhi vir para cá, e não ir para a guarda — meu coração acelera quando ele se vira para mim com uma carranca, sua blusa desabotoada o suficiente para exibir seu peitoral definido. — Eu quero...

Ele para na minha frente, me encarando de cima. Sem pensar duas vezes, desvio o olhar para o chão, e um formigamento sobe pelas minhas mãos. É sério isso? Sua bufada faz meus joelhos fraquejarem, mas consigo erguer o queixo e enfrentá-lo.

Ferrou.

— Kaled! — O homem arrumado do balcão diz alto. — Já não temos um bom índice de contratação e você quer se livrar dele? — Ele cruza os braços e arqueia uma sobrancelha, Elanor segura meu braço e encara Kaled nos olhos.

— Ele é capaz, sim, de entrar no time de vocês — ela debocha, inclinando o rosto para frente. Kaled engasga, surpreso, e dá um passo para trás. — Deixa o meu amigo falar, entendeu?

— Tsc. Se ele cair na primeira trilha, eu não carrego peso morto. — ele responde, a voz seca e séria. Os olhos permanecem longe de nós.

Fico vermelho quando Kaled se vira, resmunga algo e segue até as caixas. Sinto uma leve euforia inflar meu peito e respiro fundo para evitar qualquer risada que piore minha situação. O homem loiro cruza os braços e finalmente me encara. Seu olhar é sério, perspicaz — como se me analisasse por completo.

— Eu me chamo Cirlan Brastor, sou o líder da Raiz de Ferro — Sua voz é tão grave quanto seu semblante impõe, mas ainda assim carrega uma estranha suavidade. — Este é Alverin Roderic, o escriba que trabalha conosco — Ele gesticula com a mão e Alverin nos cumprimenta em uma saudação formal, mas gentil. — Como devo chamá-los?

— Elanor Caelthorn — Ela dá um passo à frente e põe as mãos na cintura.

— Lumi… — Digo baixo, e encaro Cirlan. 

Meu pai tem feitos nos reinos e em algumas batalhas importantes que ocorreram contra um grupo de caras fortes. Isso torna o sobrenome “Kai” um pouco mais conhecido em questão de força e resiliência. 

Quero entrar aqui por mim mesmo, sem atalhos.

— É um prazer conhecê-los, Lumi e Elanor Caelthorn — Seu tom é mais gentil, seu olhar alterna entre nós dois. — Como Alverin disse, em Karin não recebemos muitos jovens dispostos a sair em expedições de Coleta. A demanda não é grande, mas um time ainda é necessário — Ele vira para mim. — O que o traz aqui, Lumi? 

Essa pergunta atinge meu peito em um baque leve, eu engulo seco e cerro os punhos decidido. Não ouso dar para trás. Meu coração palpita e lateja em meus ouvidos, mas respiro fundo com um toque de magia e falo em alto e bom som:

— Vim buscar um emprego… e me desenvolver — Isso, continua. — Sei que com vocês vou aprender bastante sobre materiais necessários, mapas e expedições. Eu quero me superar. Tenho uma afinidade com mana... consigo usá-la nos pulmões pra aguentar longas jornadas. — Kaled cruza os braços e me encara também, sinto uma gota fria de suor escorrer em minha testa. — Digo, eu não tenho praticado, mas posso me adaptar rápido se me derem uma chance. 

Não sei explicar direito, mas consigo segurar o fôlego por muito tempo com a mana. Aguento mais do que pareço.

Alverin ergue o mínimo de um sorriso e apoia as mãos na mesa, depois vira seu olhar para Cirlan e arqueia uma sobrancelha. O líder me olha por alguns instantes e Elanor dá um tapinha nas minhas costas. Kaled se aproxima da mesa de Cirlan e me finca o olhar.

— Você não é apto pro serviço — Ele rosna e me olha de cima abaixo. — Braços fracos, pernas sem músculo — Ele arqueia uma sobrancelha e encara Elanor por um segundo. — Uma capacidade de mana nos pulmões nada promissora e falta de treinamento adequado — Ele vira para o líder ainda de braços cruzados e aponta para mim com o polegar. — Eu sou contra. Mana nos pulmões? Tá achando que isso aqui é natação, garoto?

Cirlan permanece impassível, dando apenas um breve olhar para Kaled antes de voltar a mim. Elanor encara Kaled em uma carranca e Alverin fica cabisbaixo olhando o companheiro. Um rangido ao fundo me faz virar o rosto, outra pessoa vem carregando uma caixa de rabanetes. Ela a apoia desajeitadamente em uma cadeira de madeira capenga e bufa.

— Uh? — A mulher gira para mim e meu coração dispara.

Seus olhos cor de âmbar encontram os meus, seu cabelo loiro liso com leves ondulações dão espaço para as orelhas pontudas. Suas feições são tão suaves e lisinhas, sua aura me passa um tom amarelado confortável e quentinho. 

— Bem-vindos, rapaz e moça! — Seus lábios prendem minha atenção e meu rosto queima como pimenta. 

— Obrigada! 

Pisco duas vezes quando Elanor me belisca e coço minha nuca dando uma risada vergonhosa. 

Ela é bonita pra caramba.

— Temos responsabilidades para com a cidade — diz Cirlan, a voz firme. — Karin, por estar entre as montanhas dos grifos e as praias do oeste, fica longe das rotas principais de comércio de Elderer. Como não há dungeons próximas nem ameaças hostis, o décimo reino decidiu não estabelecer uma rota oficial para cá.

Kaled me lança uma carranca, e Cacele se posiciona ao lado de Cirlan, desviando minha atenção.

— Parte dos ingredientes culinários e pedras afinadoras usadas por ferreiros simplesmente não chegam à cidade — continua Cirlan. — Fica a nosso encargo suprir essa demanda.

As palavras dele pesam no ar. Não é só sair por aí e "coletar". 

Eles sustentam uma cidade inteira.

Minha respiração está irregular. Estou disposto… Mas meu corpo ainda não acredita.

— Contudo, há regiões que oferecem riscos e adversidades pelas quais temos que lidar. Enfrentamos tempestades, atravessamos correntezas e lidamos com criaturas hostis. Normalmente, não enfrentamos monstros e evitamos áreas próximas das dungeons, mas nada garante que você não tenha que, em algum momento, escolher entre lutar ou fugir — Sinto minha blusa encharcada. — As jornadas podem levar mais de um dia, é preciso estar decidido se realmente quiser vir conosco.

Eu ainda vejo aquele monstro enorme na minha frente, Cirlan. Ainda me apavoro só de lembrar dele vindo na minha direção. Talvez eu nunca supere — e, sinceramente, nem acho que vá —, mas quero, pelo menos, parar de tremer e conseguir dormir em paz. Quero ser capaz de me mover se outro ataque acontecer. Quero ser mais do que o garoto que travou e sujou a calça.

— Eu quero ir com vocês, senhor Cirlan — Estufo o peito e inspiro, mantendo meu olhar afiado e vacilante nele. — Estou disposto a aprender e me esforçar para acompanhá-los!

Mesmo que isso signifique estar diante de um mísero goblin. 

Ha, o que estou dizendo? Com certeza eu saio correndo se ver um.

— Eu acredito que a melhor maneira de se provar, Lumi, é na prática — Alverin dá um sorriso confuso e Kaled cerra o olhar. Cacele une as mãos e Elanor coloca a mão em meu ombro. — Alverin, prepare os papéis com tudo que o Lumi precisa saber e traga-os para ele assinar, por favor.

Alverin assente sutilmente feliz, e eu juro ter visto Cirlan quase sorrir.

 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora