Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 4: Realidade

Corra.

 Uma voz… feminina, confiante e experiente ecoou em meio ao borbulhar de pensamentos. 

O que era… ela? 

Inspirei com força ao estufar o peito, meus olhos fixos nos da criatura a frente. Uma calma sem igual veio a mim. Suas presas logo ficaram visíveis e isso foi o incentivo que eu precisava para correr. 

Disparei trilha abaixo, ignorando o som da criatura que me caçava para minhas pernas me manterem no ritmo. Minha visão começou a embaçar, e um arder preencheu as minhas costelas. 

Um gemido de dor, meu braço varreu o chão sujo de lama e cheio de insetos dourados. Minhas pernas doloridas se recusaram a se mover, e o café da manhã tomou seu rumo ao chão. 

Só então que — quando apoiei o cotovelo para afastar meu rosto no chão gosmento — vi o sangue escorrer do meu corte recém aberto. 

Gritei. 

Pouco adiantava tocar ou levantar, pois a ferida, feita por três garras, era profunda. O ser grande ficou de pé, suas garras estavam sujas de sangue. 

Vou morrer. 

Ele levantou o braço e abriu as garras. Eu podia ouvir o latejar do sangue fluindo pelos meus ouvidos e sentir cada gota de suor que descia da minha testa. 

Fechei os olhos enquanto rangia os dentes e esperei o golpe vir. Meu choro não era diferente de quando o minotauro surgiu. 

Nada mudou nessa merda de vida.

Um som de corte, um chiado, e algo colidiu contra o chão. Abri os olhos devagar enquanto tentava regular meu respirar. Kaled arrancou um braço da criatura com uma espada grande e curvada. 

Ele me olhou, deu um sorrisinho e estendeu a mão. Me dói admitir, mas nunca estive tão feliz em vê-lo em toda a minha vida.

 — Dormir em horário de missão é inapropriado.  — Kaled direcionou o olhar para a minha ferida e puxou a outra espada. — Parece que você não vai conseguir fugir… Me dói dizer isso, mas irei te proteger.

Ele deu um sorriso louco. Se alguma coisa faltava naquele rosto e naquele olhar…Era juízo, só havia vontade de matar ali. 

Sem eu ao menos responder, ele virou de costas e bateu suas espadas contra a garra afiada do monstro gigante; como se ele soubesse exatamente onde iria ser atacado. 

Sua defesa fez o chão afundar. Notei vários rasgos em suas roupas, a maioria com cortes leves ainda sangrando. 

Que Cirlan e Cacele estivessem bem!

Ele desviou com maestria de cada golpe, seus movimentos eram coordenados e precisos. O monstro golpeou o ar diversas vezes, mas Kaled o chutava e o socava rindo como se a luta fosse uma brincadeira. 

 — Ele é um Hoaster  — disse Kaled, enquanto desviava de um corte.  — Um bem grande. Anota isso aí.

A criatura, irritada, rosnou e avançou erguendo seu único braço para cima do aventureiro. Ele sorriu e contornou o Hoaster como um vulto. 

Eu mal pude vê-lo. 

Meu queixo caiu quando a espada do aventureiro atravessou as costas do Hoaster e com apenas um braço ele ergueu o corpo da criatura  — o pomo de sua espada foi coberto por uma aura branca que logo se transformou em chamas, o que fez a criatura gritar agoniada até seus movimentos pararem. 

Seu corpo foi ao chão e Kaled pisou sobre a sua cabeça. Ele estava coberto de sangue, sorrindo, com seu olhar concentrado em algo atrás de mim.

Em um passo rápido ele me puxou pela cintura e se afastou em três longos saltos para trás. 

Quando me virei e minha visão finalmente se estabilizou do borrão que havia se tornado, eu vislumbrei pelo menos vinte criaturas cinzas com olhares furiosos e dentes bem afiados. 

Eu não sabia que ser um coletor exigia experiência prévia em batalha. Se esse era o caso, eu preferia tentar ser um guarda de novo. 

A manada de Hoasters menores iniciou uma passada rítmica lenta enquanto rosnavam e arrastavam suas garras no chão, isso fez com que Kaled me colocasse atrás dele. 

Ele resmungou uma série de maldições, puxou uma espada um pouco maior de dentro da sua calça e se posicionou. A tensão no rosto dele levou embora o pouco de esperança que eu tinha. 

Peguei a primeira pedra que vi e segurei firme com o meu único braço bom até que, vindo dos céus como chuva, uma saraivada de flechas ergueu uma barreira de fogo entre nós e os monstros. 

Um sorriso preencheu o rosto de Kaled enquanto eu fiquei paralisado com o que via.

Cacele estava utilizando um arco e flecha totalmente branco, como se fosse feito de pura magia. A arqueira apenas puxava a corda e uma flecha surgia. 

Os monstros estavam caindo um a um enquanto tentavam desesperadamente chegar perto dela. Um Hoaster se aproximou das costas dela e Kaled disparou como o ar e o cortou ao meio.

Ele estava com o sorriso maníaco de novo. 

— Se você tivesse avisado antes sobre essa anormalidade… — falou Cacele enquanto disparava flechas de fogo.

— Vocês não teriam me escutado mesmo se eu tivesse dito — disse Kaled, partindo mais um ao meio.

A luta parecia tranquila. O medo surgiu no olhar dos seres cinzas e raivosos quando Cirlan surgiu com seu grande martelo coberto por terra e água. 

A colisão da sua arma com o solo fez com que espinhos térreos surgissem e levassem os Hoasters para o alto como espetos de um churrasco. 

O vento logo me atingiu e eu bati contra a árvore, mas pelo menos o número do inimigo havia diminuído. 

Mesmo assim, a desvantagem era nossa. Cacele e Kaled estavam se cansando aos poucos, seus ferimentos cada vez mais notáveis e suas magias enfraquecendo. 

Cirlan conseguiu esmagar brutalmente vários monstros que o atacaram, mas ele foi pego desprevenido quando garras perfuraram suas costas e saíram próximas ao seu estômago. 

Sangue jorrou, pingou, e a esperança chegou ao fim.

— Lumi, corra — Dentre todo o caos, chiados, sangue, fogo e árvores caindo, eu pude ouvir o sussurro do capitão como um sino de ouro batendo bem ao meu lado. 

É como se naquele momento, naquele único instante, todo o som ao redor tivesse se anulado e o tempo congelado. Ouvi claramente meu coração bater e, infelizmente, o caos me trouxe de volta a realidade, e tudo parecia rápido de novo. 

Corri, sem parar, até onde o meu fôlego me permitiu. Eu estava em uma trilha estreita da montanha, acompanhado apenas pelo uivar do vento e da fraca luz solar que penetrava nas brechas das nuvens.

Não aguentava mais correr, precisei arrastar as pernas na areia boa parte do caminho. Pela primeira vez eu olhei para trás e, por sorte, estava vazio. 

Talvez esse tenha sido o meu erro, pois eu tropecei em uma bendita pedra e rolei em um poço de lama. 

Que droga. Eu era patético. Cerrei os punhos e gritei por ajuda, mas sabia que ninguém ouviria. As lágrimas apenas escorreram. Eu tinha dado o meu melhor, mas a magia… 

Se eu tivesse magia, teria sido mesmo diferente? 

Passei por volta de dez minutos reclamando e resolvi subir. Ficar o dia todo ali era inviável. A lama era escorregadia demais, minha mão dificilmente ficava onde eu queria e minhas pernas mal se afastavam do chão. 

Cada queda era acompanhada de um grito, mas também de experiência. Eu consegui chegar até a metade do poço, me grudar e evitar voltar ao ponto zero. 

Com um esforço absurdo do meu único braço bom eu consegui. 

Mas eu era um para-raio de problema. Os pelos do meu corpo se arrepiaram, eu senti o cheiro do perigo me observando. 

Desta vez, eu desejei ter continuado lá embaixo, porque a criatura que estava presente era pior que o Hoaster. Ela estava parada entre duas árvores, sua forma humanóide e olhos semelhantes aos de serpente fizeram com que minhas pernas cedessem. 

Me virei e, para piorar, havia um goblin. 

Por que eu estava com medo? Era a minha meta. Então por que, mesmo assim, eu permaneci imóvel? 

O ser humanóide apontou para mim e o goblin correu. Meu coração disparou, eu fechei os olhos, senti o dano. O atrito com o ar foi a única coisa que senti antes de colidir com o chão duro. 

 

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Abri os olhos ainda sentindo a agitação no meu sangue. Tentei erguer-me da cama, mas uma dor irradiante nas costelas me levou de volta. Eu estava em uma sala hospitalar

A maior parte do meu corpo estava enfaixada, e eu… estava limpo. Aos poucos eu me acalmei. Havia um copo e uma jarra cheios de água — sem pensar duas vezes eu bebi o máximo que pude. 

Infelizmente, meus movimentos estavam limitados a ficar na cama, sentir dor não era exatamente algo que eu gostava.

— Lumi! — disse minha mãe enquanto via correndo me abraçar.

Só então que eu notei como aquilo havia sido perigoso e o quão sortudo eu era por ainda estar vivo. Senti o medo cada vez mais próximo, mas o abraço dela era como a luz que eu precisava para me afastar dele. 

Me afundei no conforto e no calor que emanava da minha mãe.

— Foi assustador — falei, meu olhar vazio.

— Está tudo bem. — O tempo apenas passou enquanto eu recebia seu cafuné. Segundos, minutos, uma hora. O que importava? Eu ficaria bastante tempo aqui...

— Estou interrompendo algo?

—  Cirlan! A missão!

— Acalme-se. Ela foi concluída com êxito.

Uma sensação de alívio percorreu o meu peito, deixei um sorriso exausto formar no meu rosto. Cirlan colocou uma moeda de bronze em cima da mesa, cumprimentou Amice com um aceno e ficou à frente da cama; e respirou bem fundo antes de falar.

— Antes de tudo, quero que saiba que agora você é um membro oficial e não mais um ajudante temporário.

Eu e Amice nos entreolhamos e, desta vez, nossos sorrisos chegaram às orelhas. Olhei esperançoso para ela e a abracei. Eu virei um membro oficial! 

Levantei razoavelmente para erguer os braços e a dor veio, além de levar um cascudo da minha mãe; que me mandou ficar quieto.

— Cacele e Kaled estão bem, não é a primeira vez que foram emboscados assim. Preciso admitir que a manada de Hoasters é um tanto rara em zonas de risco baixo, para Karin, então, foi considerado uma anormalidade. 

— Espero que mantenha o meu filho vivo, Cirlan.

— Ele é mais forte do que parece, senhora Amice. Já notificamos ao Reino de Enguerrand. Uma investigação será aberta.

— Quando nós vamos sair de novo?

—  Depois que você se recuperar, falamos disso. Por ter menos de dezesseis anos, não posso permitir que saia machucado.

Depois do nosso curto papo, eles se retiraram, e a médica chegou com uma pauta na mão. Ela me olhou de cima a baixo e fez algumas anotações. 

Isso me deixou relevantemente preocupado. 

Fizemos alguns testes básicos para testar meus nervos. Eu estava bem. Ela disse que eu precisaria de pelo menos um dia de descanso e, obviamente, comer e beber bastante. 

Segundo a Doutora, era surpreendente que eu tenha saído apenas com alguns ferimentos por causa do meu corpo “desprovido de músculos”, mesmo com a lama amortecendo a queda.

Meu pai entrou e correu até mim para me dar um forte aperto. 

— Campeão! Como foi a primeira missão?

— Foi diferente do esperado, mas agora eu sou um membro oficial! 

— Parabéns! Você conseguiu quebrar a diferença de idade? 

— Mais ou menos. 

— Por que o baixo astral?

— Eu preciso ficar forte rápido, eu fui praticamente inútil na missão. Mesmo se não houvesse monstros, eles não precisavam de mim. —  Minha voz falhou, minha visão parecia úmida.

— Filho… Não existe ficar forte rápido. Você tentou, mas, assim como eles, possui limites. O processo é demorado, aprender e errar é o que mais vai fazer. Por isso, precisa aproveitar o processo e entender ele no seu ritmo. E, independente de vencer ou perder, pra mim você é um campeão. 

Seu sorriso era tão… claro, cativante.

Eu concordei enquanto limpava os olhos e sentia o coração se acalmar. Deixei suas palavras percorrerem os meus pensamentos, eu precisava refletir. 

E mesmo com mais gotas pingando no lençol eu me sentia melhor. Ele colocou a mão sobre a minha cabeça e disse:

— Agora, qual é a sua grande meta? Algo que parece impossível atualmente, mas você quer muito fazer.

A pergunta havia me pegado. Cerrei os olhos e pensei. Um goblin já parecia impossível o suficiente, mas…

— Um minotauro. Eu quero matar um minotauro — falei reunindo toda a coragem possível para acalmar minha voz de gatinho assustado.

— Bom. Eu acredito em você, lembre disso. 

Nós tocamos os punhos e ele saiu. Meu pai é impressionante.

Bruno e João chegaram em seguida, eles pareciam preocupados. Conversamos sobre tudo o que ocorreu, contei os detalhes da missão e sobre eu ser um membro oficial. 

Eles ficaram felizes com o meu avanço, mesmo que tenha sido pouco — ou nulo. Meus amigos iriam iniciar uma nova sequência de treino voltada para o teste de aventureiro e, de acordo com Bruno, irão duelar contra grandes nomes. 

— Um dia quero ir em uma dungeon. Então, não fiquem para trás — disse João.

— Ou a borda de uma alrofy — falou Bruno para João, logo virou seu olhar para mim. — De qualquer maneira, que bom que está vivo e bem. Já conseguiu acessar ou sentir sua magia?

— Eu já desisti de acreditar ter isso, Bruno. Mas não importa, irei acompanhar vocês como um bom coletor.

— Passe lá na academia de vez em quando, eu soube que o grupo de Cirlan tem direito a treinar junto com a guarda.

— É sério? — Deixei um sorriso escapar.

— Sim, meu caro amigo! 

Passamos um bom tempo conversando antes deles saírem. Finalmente sozinho, apaguei as velas e me deitei para dormir. Exausto para conseguir mudar de lado, resolvi colocar o travesseiro entre as pernas. Suspirei as montanhas distantes pela janela.

— Aberta… — sussurrei enquanto olhava para todos os cantos da sala.

Quando me dei conta, havia uma pessoa alta, vestida de um manto preto e uma máscara verde, me encarando. Seus olhos escarlate brilhavam sobre o luar, e sua respiração era calma como um suspiro em dias de neve. 

Quando levantei o braço para reagir, sua espada atingiu a lateral da minha cama. Meu corpo rígido já havia me deixado na mão. Ela aproximou o seu rosto do meu e sussurrou:

— Cuidado, Kai — A voz feminina era semelhante ao tom ameaçador de uma cobra prestes a atacar. — A realidade é não tudo que você vê agora.

Então eu simplesmente acordei no meio da madrugada suado, com a sensação ruim, o peso, daquilo ter sido real.



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