Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 3: Imprevisto vivo

Ontem a noite, eu recebi uma carta do capitão Cirlan dizendo que a missão seria hoje às sete horas da manhã. Era muito mais cedo do que eu costumava acordar, lutei bastante para sair da cama e lembrar que tinha uma missão a fazer. 

Tomei uma xícara de café na minha caneca com a pintura de um porquinho e vesti uma roupa casual larga. Na pochete, nada além de uma garrafinha d’água. 

O vento frio foi como um soco na minha barriga, toda a área de frente da casa estava molhada e com poças de lama. O cheiro de terra molhada adentrando as minhas narinas fez valer a pena acordar cedo, era tão gostoso… Apenas me deixei aproveitar de olhos fechados. 

O céu estava nublado, foram dias chuvosos em Karin. O frio era bacana, mas eu desgosto. Eu diria que sou mais chegado aos dias quentes de sol, nos quais posso andar calmamente sem sentir meu corpo inteiro tremer mesmo agasalhado. 

O cheiro do café com leite recém-feito preparado por meu pai me fez fechar a porta e ir direto para a sala, onde sentei em uma cadeira e esfreguei as mãos em cima da fumaça na esperança de encontrar calor.

— O tempo está ótimo hoje! Devíamos ir correr.

— Ótimo!? Eu poderia morrer lá fora!

— Vai levar só uma garrafa de água? Seria bom ir de casaco, as montanhas geralmente são os pontos de coleta e, dado o clima aqui, você deve imaginar o frio que faz... Está animado para a sua primeira missão?

— Sim… E assustado. O time de coleta parecia muito cheio de energia, não quero acabar ficando para trás e ser demitido. — falei, pensando em qual casaco pegar.

— Não se preocupe com isso. Apenas tente se esforçar ao máximo. No pior dos casos, será demitido com experiência em Coleta. Cirlan é um ótimo capitão.

— Reconfortante, pai, mas não pretendo ser demitido. 

— Qual é o seu real objetivo, filho? Ainda pretende se tornar uma guarda da cidade?

Pensei bem antes de responder. Tomei um gole de café e tentei, três vezes, reunir as palavras.

— Caçar um goblin. — falei um tanto relutante. — É por onde eu quero começar.

— Olha, eu sei que os goblins são de nível Sombra ou inferior, mas- — Ele foi interrompido por minha mãe, que chegou colocando um casaco vermelho em mim.

— Tem alguns curativos aí se precisar, ok? Tome muito cuidado, Lumi. Missões podem ser perigosas. — Ela me abraçou, e eu retribuí, curtindo cada segundo do abraço quente e confortável antes de ganhar um beijo na testa.

— Boa sorte, campeão.

Passei rapidamente no quarto de Emy para vê-la dormindo como uma pedra. Um sorriso atingiu o meu rosto antes de eu deixar o quarto e partir rumo a guilda. 

Meu casaco era um pouco grande e tinha um tecido grosso, mas mesmo assim eu tremia de frio enquanto desviava das poças de água pelo caminho. 

Que desgraça. 

O vento diminuía à medida em que eu adentrava na cidade que, com exceção dos guardas, estava vazia. Nenhum comércio, nenhuma patrulha. Só água e sujeira espalhadas ao redor.

Dentro da grande torre da guilda, notei apenas três recepcionistas nos balcões e três pessoas de pé próximas ao quadro de missões. Reconheci o cabelo grisalho, as duas lâminas de prata presas às costas, os caninos maiores que o normal. 

Era o cara que zombou de mim. 

O casaco cinza dele aberto no peitoral o deixou, de fato, assustador. Ao lado dele estava a arqueira, o arco e flecha preso em suas costas, seu cabelo em um rabo de cavalo, suas mãos apoiadas na cintura. 

Ela era realmente bem bonita, ficava fofa usando o casaco bege com detalhes pretos nos punhos e pescoço. Cirlan estava observando o mural. Alto, cabelos encaracolados caindo sobre os ombros, um grande machado nas costas e um livro preso ao cinto preto na cintura. 

Cirlan tinha a aparência de um líder.

Todos eles usavam o cartão de bronze preso ao pescoço, eu logo tirei o meu do bolso…

— Olha só quem veio: o pirralho que não consegue carregar nada.

— Bem vindo, Lumi. Está pronto para a sua missão? Cirlan sabia que você viria, diferente de alguém aqui… — Kaled deu duas moedas de bronze para Cacele e eu já imaginei o porquê.

Dei uma risada ao ver a relação dos dois, achei que o ambiente ia ser tenso e difícil de interagir. 

— Bem, todos aqui. Infelizmente, nossos outros dois membros precisaram sair em uma coleta urgente e não poderão nos ajudar. Portanto, seremos apenas nós quatro. — Todos acenaram com a cabeça. — Bom que veio, Lumi, precisaremos de uma mãozinha hoje.

Kaled bufou e virou o rosto. Cacele pôs a mão em meu ombro e meu coração disparou, ela não parecia muito mais velha do que eu. 

— Vamos ao Pequeno Monte, o hospital de Karin solicitou vinte flores fosforescentes de lírio azul para fins de novas fórmulas de poções. Elas por si só possuem um potencial para capacidades curativas se bem utilizadas, todavia não será fácil encontrá-las. — Ele pausou e, então, virou o rosto para mim — Karin está em uma zona zero, não se preocupe com criaturas, é improvável que encontremos. 

Acenei em resposta. Meu olhar rapidamente atingiu o enorme machado de Cirlan e depois as espadas de Kaled. 

As chances de encontrarmos algum monstro eram realmente baixas? Eles não perderiam se houvesse… certo? 

Virei o rosto para Cacele, ela sorriu gentilmente para mim. Eu desejei que nada de ruim viesse a acontecer. 

 

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Já escorreguei e caí de bunda cinco vezes. O Pequeno Monte ficava por volta de meia hora da cidade, e o problema foi que eu me cansei nesse tempo. 

Estávamos seguindo uma trilha estreita, cheia de buracos e insetos. Cada passo nessa subida drenava minha energia a ponto de minhas pernas tremerem, precisei me apoiar nas árvores molhadas e cheias de insetos para descansar; apesar de eles continuarem andando sem mim. 

Minhas panturrilhas, coxas e abdômen não aguentavam mais, meu pulmão estava desesperado por descanso — porque mesmo puxando o ar minha visão começava a escurecer.

Eu odiava exercício físico!

Resmunguei ao ver eles se afastando e tentei correr, só que eu não contava com uma pedra posicionada bem em cima de uma poça de lama. Essa doeu. Eu precisava focar, droga, essa era uma oportunidade que eu necessitava agarrar.

 — Tudo bem aí?  — perguntou Cacele.

 — Por que não utiliza energia para reforçar seu corpo, Lumi? Isso pode facilitar a subida.

 — Eu não consigo manipular mana  — falei, enquanto levantava e gemia de dor.  

Eles me olharam como se eu tivesse acabado de lhes dar uma moeda de ouro. Queixos caídos, olhos arregalados. Parecia que eu era um tanto incomum para eles.

 — Bem, consegue continuar?  — falou Cirlan.

 — Consigo, foi só uma queda…

 — Ou cinco, seu merda. Devia ter vindo com um equipamento adequado  — Kaled tomou a frente da caminhada.

 — Por que… vocês usam armas?

 — Nem sempre as coletas são em zonas de baixo risco, nosso time já passou por péssimos bocados. Até o todo “durão” do Kaled teve seus dias.  — Cacele arqueou as sobrancelhas duas vezes e Kaled bufou.

 — Já disse que a culpa foi do ferreiro por ter forjado minha espada de forma errada.

 — Ou mau uso.

 O ritmo da caminhada diminuiu, e o ambiente se tornou mais leve com o papo. Acreditei que tínhamos passado por volta de dez minutos nessa subida, mas estar concentrado o tempo todo levou minha noção de tempo embora.

 — Você tem bastante disposição para quem cuja vida é ausente de exercícios físicos. Qual é sua motivação?  — perguntou Cirlan, ainda olhando para frente.

 — Quero me fortalecer e superar um medo.  — Os três olharam para mim, como se pudessem ver em meus olhos qual era esse medo.

 — Se continuar conosco, tenho certeza que pode avançar.

 — Criaturas.  — disse Kaled, o nariz procurando algo próximo como um farejador.

 — Por aqui? Ou animais selvagens?  — indagou Cacele, que puxava o arco de suas costas.

Kaled parecia um louco, ele abriu um largo sorriso e seus olhos focaram em algo dentro da mata. Sem nem mesmo responder Cacele, ele adentrou na floresta. O capitão e a arqueira trocaram olhares e logo viraram para mim. Meu coração disparou.

 — Lumi, as bolsas de água são importantes. Você vai cuidar delas e levá-las até o topo dessa montanha. Entendido?

 — Eu não sei se consigo, capitão — falei, a preocupação estava estampada no meu rosto e o desespero nascendo aos poucos em meu âmago.

 — Você está disposto a tentar, não está? — Acenei em um gesto rápido. — Ótimo. É tudo o que eu preciso saber.

Eles dois dispararam no caminho de subida e deixaram as bolsas de água para eu carregar. Foi incrível. A coordenação e a velocidade de corrida, ambos tinham o condicionamento físico nas nuvens. As bolsas eram pesadas, mas eu precisava responder à altura a confiança que ele pôs em mim. Melhor, eu queria ir além.

Dei o meu máximo para andar dez metros à frente. Meu corpo cedeu e eu caí. 

— Não, não é possível. Eu não sou tão ruim assim.

Tentei novamente. Senti cada membro do meu corpo gritar para parar. Minhas coxas ardiam e latejavam, meus braços pareciam estar perdendo a força e minha visão queria se fechar e ficar um bom tempo sem ver a luz. 

Gritei, corri, caí. Minha fé estava indo embora quando me apoiei em uma árvore para descansar. Kaled falou sério quando disse que eu iria ceder.

Um barulho veio de um arbusto próximo. Olhei para ele, meus pelos se agitando. O silêncio era absoluto, eu conseguia ouvir com clareza meus passos nos galhos e folhas, as batidas em meu peito dispararam. 

Cortes, chiados e um alto rugido. Abandonei as bolsas e resolvi escalar a árvore. Ganhei vários ralados, mas consegui. Duas criaturas pequenas e verdes passaram correndo no exato local em que eu estava, mantive-me em silêncio até que algo maior passou. 

O ser com pelo escuro e garras enormes perfurou as pequenas criaturas. Elas gritavam em agonia, tentavam fugir, mas nada adiantava. Todos foram mortos brutalmente pelo grande ser de olhos vermelhos. 

Escorreguei por conta da maldita madeira molhada. Tentei agarrar a árvore, segurar o mais firme possível, mas fui de encontro ao chão. Gritei ao sentir um estalo no ombro. 

Prendi a respiração, torci para que ele estivesse ocupado o suficiente com suas presas recém caçadas para me ignorar. 

Andei vagamente até o arbusto e vi ele. Era grande, aproximadamente três metros, parecia um lobo humanoide. Ele segurava a cabeça de um goblin ainda pingando sangue. Havia outros três corpos no chão multilados. O horror atingiu o meu rosto, minhas pernas tremeram tanto que eu cedi.

Minhas mãos tocavam o chão sujo de lama e sangue, a essa altura a criatura já devia ter me percebido — porque ouvi algo colidir contra o chão e com certeza era o que ela segurava. 

Olhei para cima; dentes afiados, músculos, sangue e restos de seres vivos pairavam em sua boca. Engoli seco, ele levantou as garras.

 Quando a criatura tentou me morder, eu dei tudo de mim para sair da frente e — por ironia do destino — nós dois escorregamos.

O chão tremeu, tive tempo suficiente para levantar e correr. Eu realmente precisava sair dali. Seus passos eram pesados, mas bem velozes, ele se aproximava mais rápido do que eu conseguia me afastar. 

Ouvi suas patas se juntarem e meus instintos disseram para eu me abaixar; e assim o fiz. O focinho dele passou rente ao meu crânio, um segundo a menos e minha cabeça estaria em seu estômago. 

Continuei a correr até chegar à trilha novamente. Tropecei e rolei, os espinhos rasgavam a minha pele enquanto eu me levantava. 

Lágrimas escorriam, o medo estava me deixando louco. 

A sensação foi semelhante à que tive com o Minotauro, mas desta vez eu consegui reagir — ainda que desesperado

Por isso eles carregavam armas! Cacete!

Olhei rapidamente para os dois lados e virei-me para trás. Ele me alcançou. Meu corpo estava paralisado, todo movimento que eu cogitei em fazer era negado instantaneamente. 

De repente, a criatura se mostrou assustada. Seus olhos grandes e vermelhos se arregalaram, suas garras ficaram maiores, seus dentes mais à mostra. Eu só entendi o porquê quando um ar quente veio diretamente na minha nuca, acompanhado do grunhido de algo maior.



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