Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 2: Capitão

O vento pairou sobre o meu rosto e balançou minha blusa e sacudiu a sacola em minha cintura. Observei os campos de vegetação por algum tempo, enquanto segurava sem a menor vontade um carrinho com variados tipos de temperos à base de vegetais. 

Suspirei, evitei fechar os olhos, mas as lembranças vinham. 

Elas sempre vinham. 

— Você saiu no jornal. — falou meu pai, tirando-me do meu transe. 

Virei para ele. Pisquei algumas vezes antes de focar, me senti afastado da minha consciência.

— Ainda me assusta. 

— Sei disso. Não é algo que pode vencer do dia para a noite, sabe? 

Engoli seco. Os arrepios correram por todo o meu corpo quando lembrei... do Minotauro. Peguei o jornal da mão dele. A maior parte da notícia falava de como isso era terrível e que os reinos iriam tomar medidas drásticas na questão de segurança. 

Na imagem no centro do papel estava eu na frente do menino, e na frente do minotauro. 

"Um menino corajoso..."

— Você pode não achar, mas seu ato de coragem lá foi incrível. 

— Eu tenho medo... Não sei se quero mais lutar. — Segurei as lágrimas, um aperto veio ao peito e, então, continuei. — Mas senti que devia fazer aquilo, o porquê… eu não sei. 

— Campeão... Um passo de cada vez, ninguém começa enfrentando um minotauro. E eu estou orgulhoso de ter seguido o que achou certo. 

Meu pai ficou muito preocupado ontem a noite, mas ele e a minha mãe tem um certo dom em manter a calma — ou esconder o desespero. Isso me ajudou. 

Ver eles desesperados por mim me deixaria tenso e inseguro. Emy não soube do que aconteceu. Achei que deveria continuar assim. 

— Tem certeza que quer entregar hoje? Lhe dou o dia de folga. 

— Não, eu consigo. 

— Ok, não exagere. 

Kanro andou em direção a trilha dando breves olhadas para trás. Antes de virar a curva rumo à cidade, ele fez dois com a mão e sorriu — dando uma piscadela no final. 

Se me lembrava bem, hoje ele iria a uma reunião para falar da segurança da fazenda. Minha mãe foi ajudar na guarda de defesa, então Emy… já devia estar na escola. 

Segurei firme o ferro de puxe do carrinho e tentei movê-lo. Grunhi. Era uma encomenda pesada pra cacete, mesmo utilizando toda a força do meu corpo eu movi com extrema dificuldade — lembranças do meu corpo magro no espelho vieram à tona e me fizeram ranger os dentes. 

Nota mental: Eu precisava treinar o físico. 

Ofegante, exausto e suado, eu me encontrei no meio da Rua de Karin. Um pouco menos movimentada que o comum. Bom. Assim iriam manter a atenção longe da minha humilhação de não conseguir carregar um simples carrinho. 

— Moleque da notícia? Achei bem bosta sua atitude, foi como a de um medroso — disse um menino alto de cabelos bege e um sorriso escárnio no rosto. 

A capa azul com o símbolo de lua ao lado de uma espada simbolizava a escola do Rei Enguerrand — ou décimo Rei de Laum —, ou seja, o problema era certo. Voltei minha atenção ao carrinho. Tentei ignorar, fingir que não senti nada com as suas palavras, mas parte de mim concordava. 

Seu punho acertou o meu rosto e eu caí. Meu cotovelo varreu o chão e tentei me levantar, mas um chute seguiu até o meu estômago. Precisei puxar ar desesperadamente para evitar a escuridão que surgia no canto dos meus olhos.

— Você nem ao menos pode usar magia — Ele riu. — Pensei que era mais forte. 

Minha visão estava borrada, vi várias gotas formando uma mancha no chão enquanto o garoto ia embora, até que uma voz feminina me chamou. 

— Ei, você está bem? —Virei para vê-la, e a menina me ajudou a ficar de pé. — Não liga para ele, Zelforne é um idiota só porque está na escola de magia. 

— Eu tentei — falei entre tossidas.

—  Você é o menino do jornal!? Incrível! — disse ela apertando a minha mão com suas duas — Achei muito corajoso. Meu nome é Aria. Você é Lumi Kai, certo? Claro que é. Todos sabem quem você é. 

— Bom te conhecer, Aria. — falei, dando um fraco sorriso confuso enquanto tentava acompanhar as falas dela. 

— Bem, eu preciso ir agora. Vou ter um treino especial na escola e… você parece ter trabalho. Tchauzinho!

Aria correu e sumiu de vista tão rápido quanto chegou. Um inimigo, uma amizade, eu diria. Segui meu caminho, mas parei no início do maldito e desgraçado morro. 

Uma lágrima desceu pela minha bochecha, minha feição com certeza assustaria qualquer pessoa, pois minha indignação estava estampada na cara. 

Após muito sufoco, eu consegui. A entrega foi realizada com sucesso. Eu gritei, comemorei e me deixei cair de costas. Afinal, eu merecia. Taquei a blusa suada no chão, minha respiração irregular e o meu coração acelerado me deixaram tonto. 

Passei alguns minutos deitado ao lado da árvore. A casa dela era no alto do morrinho, então não passava ninguém — a menos que viessem visitá-la. 

Eu devia ter cochilado, pois acordei com um gosto de baba forte. Rajadas de ar fortes pairavam sobre mim, percebi que agitavam tudo ao redor. Elas balançaram a árvore até o tronco ranger. 

Levantei assustado, olhei para a cidade à procura de chuva. Nada. O céu estava parcialmente nublado, e a ventania parou de repente. Confuso, resolvi descer o morro. 

Até que vi o menino do teste — que me derrotou — treinando com um bastão de madeira. O que ele tinha com aquele bastão? 

Ele estava suado e vestia apenas uma calça azul escuro de um tecido fino e resistente. As veias eram visíveis nos seus músculos, seu abdômen era bem treinado; sua velocidade, surpreendente. Cada balançar, cada ataque, levava uma aura embutida de ar semelhante a um tornado em forma de serpente. 

Agachei atrás de uma árvore que tinha um arbusto em volta, levei alguns cortes mas consegui me estabilizar e ter uma boa visão. 

— Já passou da sua hora de treinar — disse uma mulher alta, uma espada de verdade em sua cintura. 

— Não. 

— Por que? Já disse que o descanso é essencial. E se você quiser mesmo derrotar um ser como aquele, vai precisar de muito tempo. 

— Eu não tenho muito tempo, Ayla! Para derrotar um ser como aquele minotauro eu preciso treinar! Não descansar. Você teria esmagado ele, assim como Alatar fez. — Ele encarou a mulher, seu olhar afiado. Rajadas de ar formaram-se ao redor das suas pernas. 

— Não é hora para isso, vai acabar se lesionando se forçar os músculos com magia assim! 

Os músculos dele estão além do limite? Ele parece em perfeito vigor. Afastei-me cuidadosamente e andei sem rumo pelas ruas de Karin. Minha mente perdida, assustada, sem saber como eu podia ser um aventureiro se mal conseguia correr. 

Olhei para o meu corpo magro e bufei, logo fechei os olhos e deixei os pensamentos fluírem. Eu falhei, mas era porque fui apressado? 

Eu nunca fui muito chegado ao exercício físico — e obviamente, nem à magia —, mas mesmo assim, eu tinha um pequeno desejo de servir a guarda da muralha. Por algum motivo, eu entrei na frente daquele menino. 

E mesmo que fosse inútil, que eu fosse incapaz de protegê-lo, eu senti que minha presença ali, na frente daquele monstro, faria alguma diferença. 

No fim, eu só ganhei um trauma em relação a criaturas enormes com potencial a genocídio. Ainda me doía pensar, meu coração ainda acelerava, uma lágrima ainda caia. 

Caminhei até a biblioteca da senhorita Heigor. Mostrei meu cartão para o recepcionista e sentei em uma mesa bem afastada — e atrás de duas estantes — após pegar um livro sobre um pássaro. 

Folheei algumas páginas para evitar pensar demais, porém foi uma péssima escolha. A ave podia pegar fogo e renascer das próprias cinzas. Isso não fazia o menor sentido.

Grotesco. 

— Lumi? Parece um pouco abalado hoje. — A senhorita Heigor falou, colocou a mão suavemente no meu ombro e continuou. — Quer levar um livro a mais hoje? 

Ela tinha a idade bem avançada. Cabelos brancos, óculos de grau alto, um xale colorido. Ela estava sempre de bom humor, o que me surpreendia. 

— Não... Só... Desacreditado. 

— Bem... Posso ajudar de alguma forma? — Ela puxou a cadeira e se sentou. 

— Eu não sei. Até ontem eu queria ser um guarda, ouvi tantas histórias legais. E estou aqui, com medo. Nunca, nunca, nunca que eu vou conseguir vencer aquele… — engoli seco, senti a garganta arder — minotauro. 

— Lumi... Você acha que um grande campeão começou enfrentando um minotauro? Eles assustam até os veteranos entre os Auras Dilúculos. E você, você entrou na frente de um menino — Sua voz era calma e… reconfortante. 

— Por que isso seria um feito incrível, senhorita Heigor? 

— Porque é assim que começa. No chão você teve coragem, diferente de muitos dos guerreiros treinados que fugiram sem pensar duas vezes. Então, acalme-se. Mire em uma meta mais rasa, eu sei que você pode. 

Naquele instante, ela pôs o braço em meu ombro e sorriu fracamente, então se levantou e saiu. Eu agradeci pela biblioteca estar vazia nessa tarde. 

Saí segurando um livro sobre goblins. Eu decidi no dia de hoje que caçaria um. Se eu corresse, podia chegar a tempo do teste para o time de coletores. 

Disparei em uma corrida, percebi o sol já se pondo e as luzes das lojas ganharam destaque. O chafariz esguichou bem na hora que eu passei.

Cheguei a guilda parecendo um condenado à morte. Eu estava ofegante, olhos bem abertos, de joelhos no chão e sentindo minha visão escurecer. Da biblioteca para cá são por volta de duzentos metros. 

Considerando que eu caí — intencionalmente — para descansar apenas três vezes, esse era o meu maior recorde. 

Depois de vários minutos tentando recuperar o fôlego, eu finalmente andei até a moça do balcão. Eu devia estar com uma aparência horrível, pois a expressão dela quando fixou os olhos em mim foi assustadora. 

Se ela não tivesse disfarçado em seguida, eu ia correr para casa. 

— Olá! — falei, um pouco mais alto que o desejado. — Eu gostaria de entrar para o time de coletores. 

— Bem… — disse ela, com os olhos arregalados e um sorriso forçado. — Veja se você está dentro dos requisitos, por favor. 

Ela colocou um papel na mesa. Requisitos mínimos para o time de coletores: Ter dezesseis anos, um bom condicionamento físico, persistência, dedicação... 

Senti minha sobrancelha mexer sozinha, eu não me encaixava em nenhum desses pré-requisitos. Devolvi o papel, derrotado, para as mãos dela. 

— Você pode... Tentar daqui a...? 

— Dois meses — falei, desviando o olhar. 

Andei de volta até o enorme portão de madeira com partes metálicas da guilda e sentei. Havia poucas pessoas aqui hoje. O cinza de quartzo metálico polido possuía algumas rachaduras e alguns cortes, o que significava que aqui devia ter tido teste também. 

Observei o grande lustre iluminando a área circular com velas de chamas brancas, a energia emitida por ele dava vida aos demais meios de iluminação do local... que legal.

— Ei, garoto! — Um homem alto e razoavelmente forte me chamou do canto da sala, e havia duas pessoas atrás dele. 

Olhei para trás para me certificar de que não havia mais ninguém e, então, respondi: 

— Eu? 

— Sim, você. Não era você que queria entrar no time de coletores? Se ainda não desistiu, chegue mais perto. 

Andei até ele devagar, semicerrei as sobrancelhas.

— Eu sou o Capitão Cirlan, eu lidero o time de coleta da cidade de Karin. Você está realmente disposto a esse trabalho? Não é nada fácil coletar. 

— Eu... — penso nas palavras de Heigor, nas do meu pai. Para superar isso só dependia de mim. Bem, isso que me preocupava, na verdade. Eu quero, eu quero, eu quero! Se um goblin eu queria caçar, eu precisava começar.

— Sim, eu quero. 

— Esse pirralho não dá dentro não — falou o homem atrás de Cirlan, ele era musculoso, tinha cabelos grisalhos grandes e usava blusa social com os botões soltos na região do peitoral. 

— Kaled, deixe o líder terminar! — falou a moça de cabelos loiros, um vestido verde e branco e um arco e flecha. Os olhos azuis e exaustos dela se fixaram em mim, eu desviei o olhar, sem jeito, sentindo o rosto queimar. 

— Temos uma caixa de Peso Um aqui. Levante-a, e eu permito que entre mesmo sem estar dentro dos requisitos — Ele apontou para o caixote de madeira no chão. 

— Eu topo. 

Kaled riu, e disse algo sobre eu não conseguir em um tom de zombaria. A arqueira apenas olhou preocupada. Puxei todo o ar que pude, agachei e segurei a caixa. Tentei levantar. 

Gemi tanto por esforço quanto por frustração. Senti meu corpo inteiro aquecer, todos os meus músculos trabalhando. Porém mesmo com todo esforço eu caí no chão — e o caixote permaneceu estático. 

Kaled caiu em gargalhada, Cirlan me observou com cautela.

— Nem uma caixa de Peso Um. Deixa ele de lado, Cirlan. 

— Ele tem razão, eu não consigo. 

— O físico é algo que se constrói com o tempo, não é preciso ter pressa para isso. 

— Você ainda é jovem, pequeno. Terá outras chances. 

— Essa tarefa é árdua, pirralho. Você é incapaz de carregar uma caixa Nível Um, quem dirá acompanhar a gente em uma jornada. Melhor voltar quando estiver preparado, não quero levar nenhum peso a mais na missão. 

— Dois meses! Eu volto em dois meses! 

Os três se entreolharam, confusos. 

— Farei dezesseis anos. 

— Não. Dois meses, não. — Cirlan jogou um cartão de bronze em minhas mãos. — Sairemos daqui a poucos dias, esteja pronto. 

Um sentimento de euforia tocou a boca do meu estômago, logo subiu para o meu rosto e fez minha boca se curvar em um largo sorriso. Minha respiração acelerou, mas, desta vez, foi por um bom motivo. Gritei tão alto que todos ao redor olharam. 

Kaled deu um sorriso escárnio, parece que ele tinha intenções de me fazer suar. Eu desconhecia o porquê dele ter me aceito, mas pouco importava. 

 Eu estava dentro.

Sem me tocar muito dos detalhes, eu saí feliz, cantarolei, saltitei e gritei a maior parte do caminho até em casa. 

A trilha era sempre assustadora à essa hora. Olhei dentre as árvores, apenas uma névoa densa pairava sem nenhum som vindo de lá. Esguichei-me para perto do muro. Nele havia tochas com um espaçamento longo, mas pelo menos iluminavam. 

O único som era dos meus passos na terra e do crepitar do fogo. Com o passar do tempo, eu só ouvia minha respiração. Se fosse porque eu estava nervoso ou pelo silêncio, eu não sabia, mas uma vontade enorme de sair correndo crescia em mim. 

A ficha caiu quando eu parei de andar e as tochas se apagaram com o vento. Um vento forte e repentino. Um passo atrás, de dentro da mata. Alguém estava aqui. 

Por um momento entendi meu corpo gritar "corra". 

Me virei, tremendo, e uma aura negra imensa fez meu corpo bater contra a parede e colidir contra o chão. Rangi os dentes e senti o horror chegar ao meu rosto. Dois olhos vermelhos se formaram em meio a névoa. 

Era algo grande. Aquela coisa exibiu dentes afiados, eu já estava quase deixando o líquido escapar de novo. Meus pés formigavam, meu corpo se recusava a reagir, as lágrimas começavam a escorrer — até que uma voz veio de cima do muro. 

— Ei, está tudo bem? 

Olhei para cima e vi a figura de uma elfa loira que apoiou os braços na beira da muralha e me lançou um sorriso fofo. 

— Sim... Está — falei, fungando com o nariz. Cada parte do meu ser agradeceu por ela estar ali.

Pedi a supervisão dela para percorrer o resto do caminho; e por sorte, ela concordou.



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