Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 2: Posso ser melhor

Eu vejo as suas mortes. Vejo o minotauro morto se erguer sem a cabeça e esmagar vocês dois. 

O uivar dos ventos soa e agita as árvores próximas e balança as minhas cortinas, o céu está coberto de nuvens escuras e de alguns relâmpagos. Eu… não consigo levantar da cama. Aquilo foi brutal. Aquela criatura sanguinária mata guerreiros sem a menor dificuldade.

Me sento na beira da cama com um pesar no coração, o tremor nos joelhos me impede de ir até a janela e cortar esse vento gelado sobre mim. Olho minhas mãos geladas, um pouco roxas, qualquer emoção está distante de alcançar o meu rosto.

Ele estava a um passo de mim e disposto a me esmagar como fez com aqueles dois. 

Isso é ser aventureiro? Lidar com monstros é sempre esse perigo de poder morrer a qualquer momento? Não tenho essa coragem, mas me odeio por ter sido incapaz de correr. 

Eu queria ter feito mais. Queria ter feito qualquer coisa além de ficar parado esperando a morte.

Me levanto com dificuldade e ando até a janela. Ela range quando apoio minhas mãos e recebo o vento frio direto no peito. Mas meu rosto não saia da expressão neutra, só sinto o pesar piorar e-

Como eu queria ter reagido. E se Emy estivesse comigo? E se o cavaleiro real não tivesse aparecido? Que droga! 

Bato a janela com força e meu quarto é recebido por um silêncio avassalador, cada segundo equivale a um minuto com todo meu corpo paralisado, assustado, desse jeito. 

Ah, não adianta ficar na cama o dia inteiro.

Me levanto e visto um casaco preto confortável e uma calça cinza. Coloco meias grossas e calço meu chinelo.

— Lumi? — Duas batidas na porta.

— Pode entrar.

Kanro abre a porta devagar, seus olhos preocupados encontram os meus. Ele usa um casaco marrom de tecido grosso, botas pretas com algumas manchas, luvas de jardinagem e uma calça com pelagem para o frio.

Ele respira fundo e anda até mim sem pressa, direciono meu queixo levemente para cima para olhá-lo. 

— Como você está? — Seu tom leve, a voz grossa.

— Não estou bem — Mantenho meus olhos nos dele. — Aquilo passa pela minha cabeça o tempo todo — O medo se instaura em mim, meus olhos começam a tremer. — Tive medo de que tudo acabasse ali.

Ele coloca as mãos em meus ombros, seu olhar ainda calmo.

— Você está aqui, vivo para mim — Ele olha para a janela por um segundo, depois para mim. — Aquilo nunca aconteceu antes, nem em minhas aventuras e nem em qualquer relato dos reinos. Aquele monstro não é normal e nunca estaria próximo de Karin. Pode ter certeza que eu protejo você de qualquer criatura ou pessoa que tente te ferir — Ele beija minha testa e um conforto quentinho surge em meu peito. — Está tudo bem ter medo do que aconteceu. Nem todo monstro é daquele jeito. 

 — Eu espero que não — Ergo de leve meus lábios, meus olhos pesam pela falta de sono. — Não sei como você tem tanta coragem — Eu admiro muito você, pai. Me sinto protegido em casa. — Tudo que eu queria naquele momento era correr.

Não… Eu queria ser mais como você, mas jamais me vejo enfrentando aquele monstro. 

— E não estaria errado em fazer isso — Ele dá um passo para trás. — Eu te dispenso do trabalho e do treino de hoje. 

— O que? Está um temporal lá fora, eu vou te ajudar hoje — Não vou deixar ele fazer isso sozinho. — Eu consigo. 

— Você não vai, Lumi Kai — Seu tom de autoridade. — Quero que fique aqui com sua mãe e sua irmã — Ele coloca a mão em minha cabeça. — Seu pai é um aurora experiente, e sua cabeça está muito cheia para fazer alguma coisa. Foque-se em esvaziar ela.

— Certo, pai — Respondo com desânimo, meu olhar baixo, e ele sai do quarto.

 

*

 

Sento no sofá em frente a lareira. As chamas crepitam e partem o tronco ao meio, a sala escura mesmo com as cortinas abertas em meio a manhã. Tomo um gole do café com leite, a fumaça quente saindo, afundo minhas costas na almofada e estico meus pés para frente. 

E a chuva começa a cair.

Eu realmente não quero que ele trabalhe sozinho. Como um aurora tem tanta resistência ao clima? Eu lembro que essa classe de poder é quase no nível dos cavaleiros reais, meu pai já lutou ao lado de alguns deles em dungeons perigosas para os reinos. 

Uma cidade que tem um lugar cheio de monstros próximos… Eu me arrepio só de pensar se uma dungeon surgisse perto de Karin. Eu gosto da segurança e de viver longe dos monstros, nossa maior “ameaça” são os grifos que se alimentam das ovelhas da floresta. 

O vento fica mais forte e agita a janela. Minhas mãos formigam e meu corpo gela, meu olhar fica fixo na pouca claridade que entra na casa. Aperto firme a caneca quente em minha mão e fecho os olhos, respirando fundo.

Meu pai acabaria com aquele minotauro. Ele não está mais aqui.

Abro os olhos devagar e Emy entra na sala. Ela pisca duas vezes e toma um gole da sua caneca. 

— Mamãe deixou eu ficar em casa hoje — Um sorriso bobo, ela vem ao sofá e senta ao meu lado. — Papai foi trabalhar?

— Foi sim — Olho para a janela por um instante e me viro para ela. — Eu acho que ele gosta muito de sair na chuva e carregar coisas pesadas.

— É que ele é muito forte — Ela dá uma risada leve, depois olha para a lareira. — E você também é. Às vezes você fica igualzinho ao papai — Lanço um olhar gentil e ela retribui. — Quando você conseguiu levantar a ovelha que tinha caído no lago sozinho — Ela gesticula com as mãos pegando o ar para baixo e lançando para cima, a animação ardente em sua voz. — Ou quando você fica praticando luta sozinho lá fora, fazendo aqueles movimentos e batendo no ar — Ela dá uma risada leve. — Eu acho você doido que nem ele. 

— Olha só — Uma risada sincera escapa. Eu sou parecido com ele. — Agora eu fiquei com vontade de ir lá fora ajudar — Tomo um gole e olho para a chuva. — Você tem ido bem nas suas tarefas de casa? Nunca mais me pediu ajuda.

— Ah… — Ela desvia o olhar. — Você estava muito ocupado, eu não queria atrapalhar você com a fazenda e os treinos… — Ela olha para mim. — Mas tem muita coisa difícil que eu não entendi. 

Depois que eu fiz dezoito anos, meu pai me deixou mais a par da situação financeira de casa e da fazenda. Aprendi várias coisas administrativas chatas, sobre as leis e a negociação sobre o espaço que nós tínhamos. 

E desde então meus treinos em combate corpo a corpo ficaram mais puxados. Ele e Amice consideram crucial um homem saber se defender e nunca buscar resolver conflitos de forma violenta.

Claro que também me ensinaram a nunca fugir se já estiver em um.

— Eu te ajudo — Falo com calma, e ela se anima ao me olhar. — Vamos sanar suas dúvidas e deixar você em primeiro nas colocação das notas. 

— Isso! — Ela se agita e um pouco de chá cai, mas ela ignora. — Você não tem nenhuma tarefa para hoje? 

— Nenhuma. Cadê a mamãe? Não vi ela hoje.

— Ela foi descascar os legumes para o almoço, eu acho. Depois disse que ia limpar o porão com o papai. Eu vou pegar o meu livro!

— Tudo bem, eu te espero aqui.

 

*

 

Abro a porta de madeira do espaço de treino e respiro fundo. Retiro meus chinelos e piso no tatame azul. A sala é iluminada por quatro lamparinas amarelas, uma em cada parede, possui dois barris de armas de madeira e tem alguns equipamentos de proteção presos na parede. 

Na parede frente a porta, há uma grande janela de vidro que dá visão a fazenda e a montanha dos grifos. Dois bonecos de madeira nos cantos, meio surrados, e um no meio da sala. 

Ando até estar de frente a ele, que é praticamente do meu tamanho e fecho os olhos. Respiro fundo novamente e mantenho meu corpo em posição de ataque, um punho erguido na altura das costelas e o outro quase todo esticado para frente com a palma aberta. 

Dobro um pouco a perna de trás e menos ainda a da frente. Respiro fundo e me concentro na estranha sensação mágica que corre em meu coração. Meu peito se aquece e o som mágico surge em meio a chuva que cai sobre o teto.

O uso de magia é muito comum na minha cidade, seja para tarefas básicas ou para combate. O que difere uma pessoa da outra, eu acho, depende do que herda da família e da afinidade natural que recebe ao nascer.

Uma pessoa que nasce apta a dominar a água é quase impossível que venha depois a manipular o fogo também. Pessoas elementares com mais de um elemento tem muita sorte na vida ou uma família muito poderosa.

No meu caso, eu só consigo sentir e melhorar um pouco o meu fôlego.

Abro os olhos e acerto dois socos rápidos no maxilar do boneco, seguidos de um chute com o peito do pé na orelha. Antes de recuar o chute, eu pulo e giro no ar, acertando o calcanhar da segunda perna na cabeça dele. 

Toco o chão agachado e puxo mais ar. Uma leve tontura surge, eu fecho os olhos por alguns segundos. Estou fraco, não consigo sentir a mana direito. Fico de pé e acerto mais alguns golpes rápidos, meu fôlego vai embora em menos de trinta segundos de ataque.

Recuo em um passo rápido e mantenho a postura meio caída, a falta de ar quase me faz desmaiar. A porta ao meu lado se abre e eu reconheço a energia: meu pai. Viro para ele devagar e saí da postura.

— Acabou… — digo ofegante. — rápido hoje. 

Meu corpo todo suado.

— A estrutura protegeu bem nossas plantas do rio — Ele olha para o boneco a para mim. — Os ataques estão quase tão precisos quanto antes, mas vejo que não tem dado atenção à prática diária.

— Não tenho — Não julguei necessária, nunca imaginei que eu precisaria brigar de verdade. — Mas eu pensei que morreria lá. Quero poder ao menos fugir como todos fizeram, aquela coisa era forte a ponto de um cavaleiro Real ter que finalizá-la. 

O medo no peito volta a nascer. 

Eu quero ser melhor. Quero saber lutar de verdade. 

— Você quer fazer melhor — Ele diz e entra no tatame. — Trouxe algo para você.

Kanro me entrega um cartaz meio rasgado e um pouco úmido. Está escrito que um “Grupo de Coleta” está contratando para carregar materiais. Alterno meu olhar entre ele e o cartaz.

— Eu acho que vai ser bom você tentar algo novo. O grupo de Coleta de Karin tem boas pessoas. Você não deve ter contato com monstros, e se tiver, não será nada mais forte que um goblin pequeno.

— Eu gosto de trabalhar na fazenda — Uma oportunidade de presenciar lutas contra criaturas, minhas mãos formigam só de pensar. — Você acha que eu preciso de experiência coletando coisas?

— Você tem o potencial de um Kai para lutar. Vai ser uma boa experiência você ver de perto como é o combate contra criaturas. Não quero que se limite apenas a trabalhar na fazenda, Lumi. Quero que veja que você pode muito mais. Você ainda nem desenvolveu sua magia. Não é porque começou fraco em Nulo que você precisa ficar nessa posição pra sempre. 

— Eu… — Olho para o cartaz manchado, meu coração acelerado. 

Bruno frequenta dungeons em seu treino de príncipe, e João agora é um guarda da cidade. Eu quero impressionar eles também. E se eu gostar disso e virar aventureiro? E se eu acabar me machucando ou ficando perdido? E se-

“Não viva de incerteza, meu neto, se não qualquer caminho servirá para seguir seu rumo na vida.”

— Eu vou — Olho para Kanro. — Quero entrar para esse time de Coleta.



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