Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 1: Ser de sombra

Respiro fundo enquanto observo a brisa agitar toda a plantação, balançar as árvores e derrubar algumas uvas. Uma tempestade está por vir. Nas montanhas ao longe, próximo onde os grifos circulam em busca de suas vacas e ovelhas da floresta, há um carregamento de nuvens escuras que cobrem o topo da montanha.

Meu cabelo cai ao rosto quando o vento para, e meus olhos vão ao meu pai, que incansavelmente colhe cerca de vinte quilos de batata. Ele larga o saco no chão e limpa o suor na testa, lançando um largo sorriso para mim.

A fazenda está próspera este ano, espero que tenhamos mais sorte com o arroz desta vez. 

Kanro é um homem alto e bem forte, tem um cabelo castanho claro curto que não passa muito da testa, enquanto seus olhos castanhos parecem mel à luz do sol. Uso minha blusa para limpar o suor do corpo e me aproximo dele em passos lentos, meus olhos alternam entre nossa colheita e as lótus de mana que nascem próximas às árvores. 

Sempre no fim do dia, eu sinto meu corpo exausto, meus braços e pernas doloridos. Mas Kanro sempre está no ápice de seu vigor, do bom humor e disposto a ser melhor, a buscar aprender mais. Eu admiro dele, de verdade. 

Talvez seja a vantagem de ser um ex-cavaleiro aurora.

— Está disposto a treinar hoje? Vou entender se quiser descansar — diz ele, seu tom compreensível, enquanto levanta um dos sacos de batata. — Sua mãe e Emy já devem ter preparado o almoço e nós estamos atrasados.

— Isso porque você decidiu não trazer o carrinho — Arqueio uma sobrancelha ao ver ele levantar os quatro sacos de batata nas costas e olhar para mim. —  Eu quero descansar hoje, João disse que ia fazer o teste para guarda da cidade e eu queria tentar ver o Bruno.

— Tudo bem — Ele começa a andar, seus passos pesados na terra. — Vamos, você é forte para levar as uvas, quero preparar um ótimo vinho para hoje. O arroz precisa da chuva que está por vir, então vamos dar de três a quatro dias para a colheita.

Concordo com a cabeça e faço o que ele manda. Tenho dificuldade para pegar os dois sacos de uva, mas consegui levar em minhas costas. Ao lado das costas musculosas de meu pai, eu vejo o muro branco que cerca a cidade de Karin. Consigo ver até dois arqueiros elfos em cima dele, conversando.

Eu não moro dentro dos muros. Casas mais simples e fazendas como a de meu pai ficam do lado de fora. Precisamos do espaço e do solo fértil para produzir e alimentar a cidade junto aos outros fazendeiros.

Não sofremos ataques de monstros e não há preocupações com dungeons próximas. O décimo reino classifica a região com o grau de perigo 0, então é bem raro ver um guarda da cidade aqui fora. Cidades como essa não tem uma guilda.

Após uma curta caminhada sofrida, largo os sacos de uva na varanda ao lado dos sacos de batata. Nossa casa é um pouco maior que as demais, inteiramente de madeira com dois andares e cômodos bem espaçosos. 

Kanro abre a porta e o cheiro de carne temperada irradia em minhas narinas, fazendo-me fechar os olhos ao imaginar o sabor. Entro logo atrás dele e fecho a porta, e meus olhos são tomados pela mesa da sala de estar repleta de comida.

— Lumi! — diz Emy enquanto arruma a mesa ao lado de Amice, minha mãe. — Como foi hoje!? — Ela me olha animada, seus olhos castanhos claros fixos em mim.

— Por sorte foi muito mais leve do que ontem — bufo, meus lábios levemente erguidos.

— Oi, amor — Amice diz para meu pai, um sorriso dócil em seu rosto. — Como foi a colheita hoje? 

— Tivemos sucesso — Ele a abraça e beija sua testa. — E logo depois da chuva vamos ter bastante trabalho com o arroz, as Lótus de Mana estão influenciando no crescimento e contra infestações — Ele sorri para Emy. — Quer dizer que você sabe cozinhar agora, é?

— É claro — Emy coloca as mãos na cintura e assente com a cabeça. — Agora eu posso cozinhar para vocês também.

A mesa de almoço tem algumas porções de arroz, bifes temperados com pimentas vermelhas, uma variedade de frutas, sal, azeite… Nós comemos até não sobrar um único grão, e agradecemos por ter comida sobre a mesa.

 

*

 

Visto uma blusa preta de manga comprida e uma calça cinza simples. Pego minha algibeira do armário e dez moedas de bronze debaixo da cama. Deve servir. Respiro fundo e estremeço com o vento gelado que invade meu quarto agitando as cortinas, antes mesmo da noite chegar. 

Fecho rapidamente a janela e o uivar fica do lado de fora, meus olhos vagos nas árvores, nas folhagens que não paravam de balançar, nas flores mágicas que rodeavam e brilhavam a plantação de arroz. 

Monstros… Tive sorte de estar longe de todos eles, mas… Como será lidar com um? Meu avô fez parecer tão legal, com feitiços e armas contra criaturas ferozes. Sinto falta das histórias dele. 

Abro a porta do quarto e ando devagar pelo corredor. Emy surge da porta do quarto dela e cerra os olhos para mim.

— Tá indo aonde? Posso ir?

— Vou ver o João, você vai ficar.

— Ah… — Ela bufa, seus olhos baixam. Coloco a mão em sua cabeça.

— Na próxima eu te levo, ok?

Dou uma piscadela para Emy e desço as escadas até a sala de estar.

— Mãe, pai, estou saindo! Volto mais tarde — digo enquanto abro a porta. 

— Se cuida, Lumi! — Amice grita do porão, sua voz longe.

— Vai lá, filhão! — Kanro fala da cozinha.

O vento percorre a sala e eu saio, a fechando rapidamente. Esfrego as mãos e ando até chegar próximo do muro, da trilha de barro feita colada nele. Meu olhar na floresta distante, como se alguma coisa estivesse ali, prendendo a minha atenção.

Mas não há nada além dos insetos que caem sobre as flores vermelhas de mana, as fazendo brilhar conforme a escuridão se aproxima.

Apenas sigo meu caminho, passando entre as casas, observando suas colheitas e riachos. Os moradores acendem lamparinas, suas velas e chamam as crianças para dentro. O sol se põe nas montanhas geladas distantes, e o clima de vê-lo é sempre agradável. 

Então por que desta vez eu sinto um certo… calafrio? 

Olho para a floresta várias vezes durante a caminhada perto do muro, mesmo com um arqueiro ou outro em cima, o escurecer não me deixou relaxar. Chego próximo do portão, onde há dois guardas com armaduras de couro com algumas partes de metal e suas espadas retas na cintura, cada um em um lado da entrada. 

Na verdade, está aberto a tanto tempo que eu tenho certeza que esse portão não fecha mais. Até a madeira dele está meio desgastada. Aceno para os dois guardas e adentro na cidade de Karin, coloco as mãos nos bolsos pelo frio.

O chão é feito paralelepípedo acinzentado, as casas misturam blocos de pedra com estruturas de madeira e telhados que variam em laje, telhas de barro ou simplesmente madeira de uma forma bonitinha. Triangular ou em quadrado na maioria das vezes. 

Várias pessoas andam pelas ruas com pressa. As mulheres têm o costume de usar vestidos longos e curtos, e os homens blusa da manga comprida de um tecido mais grosso, feito de lã das ovelhas da floresta, e calças com um cinto de couro para guardar ao menos a algibeira.

As diversas lamparinas já estão acesas, e as estrelas no céu começam a surgir, o grande rastro roxo e vermelho me encanta quando olho para cima. Meu queixo cai por um instante, o suficiente para eu esbarrar em uma moça e receber um tapa no rosto. 

Sigo entre a multidão até o grande chafariz no centro do comércio alisando meu rosto. Algumas crianças brincam próximo da água, os adultos nos restaurantes comendo e bebendo, os comerciantes tentando empurrar seus últimos produtos para qualquer um que passasse perto. 

Distraídos o suficiente para uma gangue de 4 gatos e um cachorro roubarem uma caixa e sumirem na multidão. 

Está mais cheio do que minhas vindas anteriores. 

— E aí! — ouço João falar e me viro. — Você não vai acreditar — Seu tom animado. 

Ele está com botas de couro, uma calça bege justa e uma blusa azul com ombreiras de couro. Ele tem olhos verdes claro, o cabelo cacheado curto, mas que caia ao lados da testa. 

— Você passou!? Como foi? — pergunto animado e apertamos as mãos. 

— Basicamente você só precisa aguentar o treinamento inicial deles, não é como se Karin precisasse de guardas experientes para proteger a cidade de criaturas — Ele coloca as mãos na cintura, na altura onde sua espada de madeira está. — Mas sim, eu passei! Agora vou receber instruções do capitão de lá.

— Muito bem, meu amigo! — Claro que conseguiu, ele se dedicou muito para isso. — Tenho certeza que seus pais vão adorar ouvir a notícia. Quero ver você no muro em breve, vigiando minha fazenda.

— Hahaha. Pode ter certeza que eu vou ser o primeiro a ir te socorrer — Olhamos juntos para uma multidão de pessoas andando para o mesmo lado, depois um para o outro. — Você viu o Bruno? Queria ver aquilo com vocês dois.

— Aquilo?

— Mentira. Você vive fora da cidade, por acaso?

João abafa um risada e eu arregalo uma sobrancelha para ele. Ele toma a frente, rumo a onde a multidão está indo. Ele é mais alto que eu, e suas costas estão mais largas que a última vez. 

Ele está mais forte.

— Vem — O sigo. — Pode ser nossa única chance de ver um ser como ele — Franzo o cenho e acelero o passo. Ando ao lado dele agora, mas desviando de algumas pessoas, e esbarrando em outras. — Os aventureiros do reino 8 abateram um minotauro na Montanha do Ser de Um Olho Só!

Que?

Ele puxa meu braço e passamos no aperto pela multidão, o som das pessoas falando e dos passos sem fim tomando conta totalmente da minha audição.

— Estamos indo ver um monstro!? — Abro bem os olhos, sinto meus dentes cerrados e um leve formigar nas mãos. — Está maluco!? A gente vive tão bem sem nenhum deles aqui e você tá me levando direto para um?

— Calma, seu cagão — Ele diz sem olhar para trás. — O minotauro está morto, nós vamos ver só a exposição do corpo dele. Algo para exaltar o poder do reino, eu acho. Eu só quero ir porque deve ser muito legal.

Começo a ver algo bem grande coberto por um pano roxo em cima de uma estrutura de madeira. Ao lado da coisa grande, que já faz meu coração disparar a cada passo meu, há uma mulher de cabelo preto longo com uma armadura com partes de metal e uma espada longa nas costas. 

Uma guerreira!? Céus, é uma aventureira de verdade! Como meu avô conta. Aqui em Karin eu nunca vejo mais que armas de madeira e armaduras de couro e malha, só os guardas do muro e do portão que usam metal.

— Você é doido. Minotauro não é aquele cavalo assustador que tem asas? Essas coisas fazem picadinho de nós.

Ultrapassamos as pessoas com mais velocidade e João larga meu braço, ficamos mais ou menos na quarta fileira e eu resolvo andar. Sinto a tontura forte quando paro, meu fôlego perdido em arfadas descontroladas e exaustivas para meu pulmão.

O escurecer nos olhos me faz cambalear, mas forço uma pisada e me mantenho de pé, com os olhos fechados. 

Essa foi quase, não tenho disposição para exercícios assim. 

Abro os olhos devagar. Eu não vejo mais o João, apenas desconhecidos olhando para a guerreira que toma a frente do pano roxo, seus olhos vívidos varrem a cidade. Três aventureiros, dois de arco e um de lança, ficam na frente da estrutura de madeira. 

Respiro com mais calma e ando entre as pessoas até a primeira fileira. Olho para os lados, mas nada dele.

— Querido povo de Karin! — A mulher exclama, e o som estridente se torna fracos murmúrios até atingir o silêncio. — Viemos até vocês com um cadáver de um monstro que muitos enfrentam e não voltam para contar a história!

Meu coração gela, uma dor surge em meu peito. Olho para o pano roxo e sinto o suor frio escorrer pela minha testa. 

Isso é pela corrida, certo? Aquilo está morto.

— Ele estava circulando nas redondezas da montanha, um lugar incomum para eles — diz o homem com a lança. Ele sobe com um pulo no palco e fica ao lado da mulher, seu semblante confiante. Seus olhos transmitem um certo deboche. — Por sorte de vocês, nós, bravos aventureiros da guilda, identificamos o rastro dele e seus rosnados furiosos distantes e o caçamos antes que tivesse a chance de vir para cá!

O povo grita erguendo os braços, o som estrondoso traz um zumbido horroroso para meus ouvidos. O grupo de aventureiros se olha entre si e começa a sorrir. Os dois arqueiros continuam embaixo, e os dois que estão em cima ficam ao lado do pano.

— Mostra ele pra gente! — grita um homem.

— Anda, queremos ver o que vocês mataram! — exclama uma mulher.

O povo grita em concordância. A mulher assente para o guerreiro da lança e coloca a mão no pano. O suor frio continua em mim sem parar, e a dor em meu peito fica mais constante a cada vez que eu olho para o que está debaixo da coberta. 

Eu.. Não consigo me mexer.

— Apresento a vocês… — Ela puxa a coberta com força. — O minotauro!

É… como um humanóide muito musculoso. Ele tem uma leve pelagem preta e está coberto de cortes e sangue. Posso ver parte do estômago por um corte grande na barriga e os restos do osso do pescoço. 

A cabeça está entre as pernas dele, e um terror sem igual toma conta de mim. Olhos vermelhos vívidos, um chifre quebrado e outro tão afiado quanto uma espada, cortes que ainda sangram e moscas rodeando.

O gosto de bile vem a minha boca, mas engulo o que está para vir. O povo grita e comemora, e os aventureiros batem palmas entre si. Mas…

O corpo dele se mexeu?

A guerreira olha para trás, confusa, depois para a cabeça do minotauro, que a olha de volta. O terror alcança o semblante dela, pulando rapidamente para o resto do grupo. As pessoas cochicham em confusão. 

Antes de qualquer um sequer enxergar, a mão ensanguentada dele agarra o corpo dela. Ela grita se debatendo, o homem com a lança olha perplexo para a cena e os dois arqueiros começam a correr desesperados. 

Um rugido com uma densa aura escura coloca muitos de joelho. Os que ficam de pé correm em gritos de agonia e medo. Mas eu não, eu não consigo tremendo desse jeito. Minhas lágrimas caem sem parar, meu coração parece que vai sair pela boca.

Ele ergue a guerreira ainda se debatendo e esmaga o corpo dela no chão. Sangue espirra em cima de mim e algo gosmento cai em meu ombro. Os olhos dele alcançam o homem. Ele puxa a lança com o medo no olhar, o pavor explícito ao ver a aliada morta.

Eu não consigo parar de chorar, o vômito travou em minha boca junto a um grito gutural de desespero.

Ele retira o braço de cima da mulher, os ossos presos na palma da mão e nas unhas, o corpo completamente trucidado cria um trauma em minha visão. 

— Eu- eu- — Por favor. — Eu- — Por favor, faça alguma coisa! — Não consigo!

Ele se vira e corre. O minotauro avança em cima do homem e o segura pela cabeça. O corpo do minotauro leva o homem até a própria cabeça, que o encara com um olhar de… Vingança?

Essa coisa é inteligente? Nã- não existem monstros assim.

— Me perdoa! Por favor! Eu não quero morrer! — Ele grita e grita, e o minotauro leva a cabeça dele até a própria boca e a arranca.

Um silêncio desconfortável chega no lugar. Olho pelo canto dos olhos, todos se foram. Eu estou sozinho aqui. Os olhos daquela coisa me encontram. Eu abro a boca e todo o vômito cai, e eu me vejo de joelhos. Meu olhar desacredito no corpo que vem em minha direção.

Por favor, alguém. Socorro. 

Cada passo dele esmaga a estrutura de madeira e treme todo o chão. Agora seu olhar era de desprezo. Tento me mover, mas minhas pernas escolhem não reagir. Toco o chão com as mãos, o vômito e sangue misturado tentam tirar o que já não tem mais em meu estômago. 

Olho para frente sem esperança quando ele fica a dois passos de mim. O choro cai sem parar, e meu coração acelera como nunca. 

Socorro, por favor. Alguém me salva!

Ele ergue o braço e de repente para. A cabeça olha para algo atrás de mim e abre bem os olhos. Desta vez, o medo atinge ele, e eu vejo uma aura dourada no seu olhar. Ele rosna tão alto que derruba meu corpo no chão com o tremor, e seu corpo parte para cima de mim com os dois punhos cerrados.

O que ele viu, se não alguém para me salvar?

Um fio mágico vermelho cruza seu corpo dos céus. Eu vejo com clareza enquanto minha consciência vai. Chamas laranjas seguem o fio criando faísca por todo o corpo dele, partindo-o ao meio com um único corte poderoso e limpo. 

Cada parte voa para um lado e seus órgãos caem em minha frente, uma poça de sangue se cria e molha metade do meu corpo. Não entendo bem. Há fogo por todo lado agora, mas minha audição leva todos os sons para bem longe.

Passos distantes ecoam na minha frente, e a silhueta de um homem alto aparece. Uma espada em sua mão, a boca parece se mover, mas nem ver eu consigo. As chamas ficam tão altas quanto casas, e ele se aproxima.

Até minha consciência ir embora. 



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