Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 1: Vitória ou derrota

Um guerreiro segurava uma espada no alto de uma colina em meio às milhares de criaturas. Ele a ergueu, e com um punhado de luz a arma brilhou. As criaturas começaram a escalar a pequena montanha. Matavam uns aos outros, esmagavam os corpos que não eram capazes de continuar a corrida e rosnavam entre si. Um enorme brilho veio dos céus, se aliando à espada do herói, cuja face, tampada pelo brilho ofuscante, emanava um sorriso. 

Acordei, levantei e apertei a mão contra o peito. Olhei ao redor, para as roupas no chão, o armário aberto, o sol que atingiu a ponta da cama, meu cobertor encharcado. Notei a ausência de ar em meus pulmões e inspirei todo o ar que pude. 

— Foi só um sonho — sussurrei. 

Arremessei a blusa pesada pelo suor no chão, sentei-me na cama, olhei os vastos campos de plantações e fiquei de pé. Doía-me ter que abandonar a cama, se eu pudesse, ficaria o dia inteiro deitado enquanto lia livros. Livros... A palavra levou o meu olhar ao chão.

Droga, eu não arrumei minha estante. Bem, eu podia fazer isso outra hora. Estava de manhã, e um cheiro peculiar me levou à cozinha. 

— Bom dia, dorminhoco. — disse minha mãe. — Seu pai fez o café e foi trabalhar no milharal. 

— Ele sempre acorda tão cedo. 

— Bom dia, irmão — disse Emy, minha irmã, com a boca cheia de cereal. — Acordando tardi dinovo? 

— Bom dia, Emy — respondi, inseguro se podia segurar a risada. 

O ar fresco de fora invadiu a casa quando a porta se abriu e a minha figura paterna entrou com um largo sorriso. 

Ele era sempre deslumbrante. Alto, bonito, forte, tinha uma bela barba. Perguntei-me diversas vezes se eu realmente puxei o meu pai no quesito estatura, pois enquanto ele tinha mais de um metro e oitenta eu tinha um pouco mais de um metro e sessenta. 

— Bom dia, campeão! Você viu o jornal hoje? 

— Não vi. Há algo de interessante? 

— Oh, nada... Apenas o teste para a guarda de defesa da cidade. Nada demais. 

— Sério? Deixe-me ver! Deixe-me ver!

Peguei o jornal, animado, e o li. 

“A academia realiza hoje testes para guarda da muralha, o evento durará o dia inteiro.” 

Eu esperei por esse dia durante seis meses. Seis. Longos. Meses. Desde que comecei a ver aventureiros com belas, brilhantes e detalhadas armaduras e armas, nasceu em mim uma vontade peculiar de ser um também. 

— Eu quero. Posso ir? 

— Magro desse jeito? — Meu pai riu com o próprio comentário. Eu revirei os olhos em resposta. 

Ele me chamou para treinar diversas vezes, mas por motivos justos — considerar o treino físico pesado — eu recusava. Como alguém conseguia e gostava de acordar sem o sol no céu para correr?

— Pode. Porém, Lumi, eles exigem um pouco de experiência em algum estilo de luta, com ou sem armas... 

— Eu vou mesmo assim! — Levei minhas mãos à cintura. 

— O que te faz querer entrar lá, campeão? 

— Tive um sonho muito incrível hoje, estou inspirado — Mesmo que me faltasse o que todos chamavam de “magia”.

— Caso não consiga, pode tentar adentrar no grupo de coleta. 

— Não quero ser só um coletor, pai. 

— Ei, eles não são "só" coletores. 

Meu pai vivia se referindo aos coletores como "um grupo de arrasar". Sinceramente, eu nunca entendi bem o porquê, mas eu tinha curiosidade para saber mais sobre. 

Pouco depois do café da manhã, ele comentou sobre a exposição do corpo de um Minotauro. Emy, minha mãe e eu ficamos assustados no início, mas nós relaxamos quando ele disse que a criatura estava morta. 

Ainda tinha um bom medo de monstros muito grandes. Não sei. Talvez eu devesse ir vê-lo. Eu não podia ser um guarda se tivesse medo de monstros grandes, certo? 

A Aura de um Minotauro se equivalia a nível Real. Já li em livros sobre alguns que ultrapassaram tal nível e tornaram-se uma ameaça digna de um Rei. 

Durante o dia, realizei as tarefas do cotidiano na fazenda: Espantar esquilos e macacos, chamar os Gatos-Fazendeiros, coletar e plantar. Longe de ser difícil — com exceção de espantar os macacos. Por algum motivo, eles se escondiam no milharal e atacavam quando uma pessoa chegava perto. 

Nada que pudesse ferir alguém. 

Voltei ao meu quart já a noite. Me arrumei com uma calça de tecido tênue bege e uma blusa azul de manga comprida. Peguei uma pochete velha e esparramada que continha três moedas de bronze — ou todo o meu dinheiro — e saí. 

— Vai fazer o teste, cabelinho de soldado? — disse meu pai, todo sujo de terra e mato. 

— Vou! Volto para contar minha vitória. — falei enquanto afofava meu cabelo quase inexistente. 

O caminho até a cidade de Karin era — como sempre — cansativo e um tanto distante e assustador. A entrada da grande muralha ficava distante, eu precisava contornar perto da floresta escura e cheia de barulhos para adentrar. 

Cheguei à porta da muralha e vi dois soldados. Um deles vestia uma armadura de ferro cinza escuro e mantinha a espada embainhada nas costas; já o outro, uma armadura de couro, e segurava um arco e flecha enquanto observava a estrada principal. 

Dei um leve aceno para os dois e adentrei no grande portão. O belo chão de paralelepípedo cinza claro polido, as casas bem iluminadas com velas e postes de magia, a agitação local e o cheiro de diversos temperos no ar me deixavam tão... Tão alegre.  

Dei um largo sorriso enquanto andava rumo à academia em que o exame estava sendo realizado. 

Notei uma quantidade maior de grupos com equipamentos brilhantes, armas desgastadas e poções ao redor das lojas — era como se a cada passo que eu desse eu pudesse ver cinco aventureiros de nível Sombra. 

Se aqui só tem aventureiros Sombra e o Minotauro é Real, a pessoa que o capturou era o motivo da cidade estar cheia? 

Bem, isso pouco importava por hora. A cidade só estava mais cheia que o comum. 

Após virar várias ruas, eu cheguei à grande academia. Tinham dois soldados segurando lanças de madeira na porta. Eles não fizeram muito caso para eu entrar, apenas deixaram. 

O lugar era razoavelmente grande. Um lustre mágico, tochas, estantes e baús com armas de madeira, pessoas praticando. Típico de uma academia feita apenas para treino. 

Andei até dois homens que estavam no centro com uma papelada. O homem vestindo uma capa verde com símbolos dourados me lançou um olhar encharcado de deboche, já o homem ao seu lado — que parecia malhar todo dia — apenas demonstrou curiosidade. 

— Posso ajudar? — disse o homem negro que tinha o braço maior que a minha dorsal. 

— Sim. Eu vim para o teste. 

— Você? Magro desse jeito? Sabe ao menos dar um soco? — Sujeito idiota.

— Ignore este professor patético. Apenas preencha o formulário, por favor. 

Fiz o que ele pediu. O formulário só exigia algumas informações básicas e uma descrição do objetivo e a razão de estar aqui. Os alunos ao redor estavam sussurrando algo como "Vamos ver o Minotauro", ou, "Ele é gigante! Preciso ver isso". 

Era claramente fácil perceber que todos estavam no mínimo animados com isso. Se olhasse as feições então... 

Entreguei o formulário ao professor forte. Ele deu uma lida rápida e acrescentou o papel a papelada. O outro professor me encarou de cima a baixo, como se eu não estivesse vendo. Desviei o olhar, nervoso, queria evitar causar problemas com qualquer um aqui. 

Meu coração acelerou de leve quando me deixei levar pelos pensamentos de falhar em participar da guarda, até que um som de uma colisão de espadas cativou a minha atenção.

Havia dois alunos duelando. Uma menina com um vestido longo azul que usava uma espécie de magia branca nas mãos, e um menino com uma calça de couro rasgada que erguia uma espada de madeira com traços de metal. 

Ele parecia bem ferido se comparado a garota. 

Ela conjurou uma espada de… mana branca e acertou a barriga do garoto.

Magia… Era magia! 

Ele grunhiu, mas sua espada ardeu em chamas quando ele tocou seu indicador. Com um passo rápido, ele a acertou. Ela caiu grunhindo, mas levantou sorrindo. 

Havia cordas mágicas ao redor dele. Como? Onde?

Se eu tivesse a capacidade de usar magia, com certeza escolheria fogo. 

— Bela luta — disse João, meu amigo de infância. 

— Eu diria que a estratégia foi arriscada — falou Bruno, meu outro amigo. 

— E aí, pessoal. Vieram para o teste também? 

— Pode ter certeza, vou ficar musculoso se treinar aqui — João fez uma pose com seus músculos. 

— Quero iniciar nos combates de alguma maneira — disse Bruno, sem esboçar nenhuma emoção em seu rosto. — E você, Lumi? Pensei que odiava exercício físico.

— E odeio, mas hoje-

— Lumi Kai! Por favor, na plataforma. 

Todos os pelos do meu corpo subiram instantaneamente. As borboletas sobrevoaram pelo meu estômago enquanto meu coração tentava pular fora da caixa torácica, e meus olhos deram o melhor deles para se abrirem. 

Andei até a plataforma; cambaleei enquanto subia os degraus,mas consegui. Muitos olhares, muitas pessoas. Engoli seco e tentei me concentrar em manter as forças nas pernas. 

Meu adversário subiu do outro lado. Ele segurava um bastão de madeira, tinha olhos com tons variados de roxo e uma roupa verde rasgada e suja de terra. 

— Prontos? — O instrutor falou, posicionando seu braço enorme entre mim e o menino. 

Engoli seco novamente, ergui os braços da forma que sabia, acenei com um balançar da cabeça. E ele gritou: 

— Comecem! 

Levei meu punho até onde sua cabeça estava um segundo atrás. Ele havia sumido. Senti a ponta de seu bastão colidindo contra a boca do meu estômago e cuspi saliva misturada com sangue. 

Caí de costas, ofegante, tossindo, tentava me recompor de alguma maneira. O instrutor disse algo relacionado a parar a luta e a chamar um médico, antes de se aproximar e tocar o meu nariz — porém sua voz saiu abafada pelo zumbido e eu mal senti o toque. 

— Consegue se levantar? — perguntou ele, sua voz distante.

Sentei, tonto, e observei ao redor. Alguns estavam rindo, meus amigos preocupados, meu adversário aguardava ao lado do instrutor. 

— Não se pode esperar muito de um camponês — disse alguém no qual distinguir a voz era inviável. Vários sussurros sobre mim procederam. 

— Estou — Uma leve irritação na minha voz, senti meu coração queimar. 

— Certo, iremos prosseguir. A derrota é de Lumi — O instrutor se levantou.

— Veio despreparado — disse o rapaz de olhos roxos.

— E você é muito bom. 

— Não muito. Não ainda. 

Desci da arena mordendo o lábio, cerrei os punhos até as unhas tirarem um pouco de sangue e grunhi. O pior foi ter ouvido diversas vezes "ele é fraco" e "ele não pode usar magia", isso tirou toda a motivação que já era ausente em mim. 

Ignorei o máximo que puder até sair do lugar. Fui a um pequeno espaço com bancos de madeira e sem pessoas e chutei um desses troncos malditos e meu pé ardeu. 

Sentei nele e gritei — olhei em volta para verificar se ninguém tinha ouvido, mas não havia como; nem de longe havia pessoas. 

Eu ignorei os treinos. Havia me interessado pouco nisso, só queria ser um simples guarda. Nada mais. Talvez eu devesse ter pensado mais, meu objetivo era tão superficial e patético. Se tornar um guarda? Eu não era capaz nem ao menos disso! 

Bruno e João saíram depois de alguns minutos, eles disseram que passaram. Fiquei feliz ao saber, mas me frustrei comigo mesmo por ter sido incapaz de fazer o mesmo. Resolvemos ir a um restaurante próximo para comemorar, eles não comentaram sobre a minha derrota. E isso devia ter sido o melhor. 

O restaurante de hambúrguer era simples e barato — se comparado a maioria. Conseguimos uma mesa próxima a janela, o lugar era bem pequenininho, mas muito confortável; com lustres de mana e mesas e cadeiras de madeira escura polida, além de pequenas velas azuis em cima de cada uma. 

Na porta de vidro, havia um pequeno sino de prata com pequenas bordas douradas. O garçom nos mostrou um cardápio com novos tipos de sanduíches. 

— Quero um hambúrguer de Defin — falei, despreocupado com o preço.

— Certo. Esse é apenas três moedas de bronze. 

Três? Apenas? Senti meu coração apertar e uma lágrima escorrer, mas dei as três moedas para ele. Coloquei a bolsa vazia no meu bolso, isso me deixou levemente chateado.

Esbarrei em uma, duas, três pessoas que passaram correndo em direção à exposição. Caminhei ao lado de João e Bruno com certa dificuldade, senti meus pés saírem do chão quando dois homens enormes tentaram passar. 

Fui espremido entre eles, mas consegui chegar perto o suficiente para ver um pano sobre algo imenso. 

Se fosse por mim, com certeza eu conseguiria ver costas e traseiras por ser baixo. Uma mulher alta de cabelos ruivos chegou ao palco, ela levantou as mãos e os murmúrios lentamente se dissiparam. 

Dois guardas chegaram e seguraram o pano, direcionaram o olhar para a mulher em busca de confirmação. 

— Meu caro povo... Como todos sabem, Karin está em uma zona neutra. Nenhum monstro ou portal aparece aqui há anos. — Ela pausou. — Mas hoje, aventureiros e guardas de Karin encontraram esse monstro nas Montanhas do Ser de Um Olho Só... E venceram essa luta! 

Neste exato instante, gritos e aplausos ecoaram tão alto que eu mal pude ouvir minha respiração. Os dois caras em meus lados se mexeram o suficiente para que minhas costelas doessem. 

Eu devia comemorar, pensei. Afinal, não é todo ano que um Minotauro é vencido. 

— Sim, meu povo! Vencemos! 

Levantei os braços e gritei. De repente, o silêncio surgiu. A mulher olhou para os dois guardas — que estavam tão confusos quanto ela — e, depois, voltou seu olhar à multidão, como se estivesse procurando alguém pequeno e escondido. 

Senti um calafrio na espinha, uma sensação horrível, um tremor incompreensível em minhas pernas. Sussurros ecoaram, guardas chegaram, uma aura escura translúcida surgiu. 

O pano se mexeu — um soldado gritou e se levantou. 

Caí no chão, na frente dos dois homens que me espremeram. Não só eles, mas todos ali estavam de olhos arregalados e com o queixo caído enquanto olhavam para o que estava atrás de mim. 

Meu coração pesou, eu não queria olhar, eu queria correr sem parar. Ouvi o som do pano contra o chão e os gritos começaram. 

Correria, pessoas caindo, berrando, chorando. Todos tinham algo em comum: Todos sabiam que precisavam fugir, que ficar aqui significava a mesma coisa que morrer. 

Como eu sabia? A aura negra passando como um fluxo de água perto de mim me dizia isso. 

Girei o corpo devagar. O Minotauro estava de pé, segurando a perna de um soldado sem vida. Olhos vermelhos ofuscante, o corpo com diversos cortes e sangue negro. Ele estava vivo — por mais que não parecesse. 

Mesmo com seu coração batendo fora do corpo, com suas entranhas caindo e inundando o chão.

Não localizei a mulher ou os guardas que vieram para cá; ninguém mais estava aqui. O monstro me olhou e eu engoli seco enquanto tentava me manter de pé. Minha visão começou a embaçar quando ele deu seu primeiro passo pesado. 

O chão tremeu e o palco se destruiu, o corpo do soldado caiu entre os escombros. Só então que vi outros corpos ali, nos pés dele. Quando isso aconteceu? 

Não importava mais, eu era o próximo. A criatura deu outro passo em minha direção e manteve seu olhar fixo em mim. Meu coração estava cada vez mais apressado e minha respiração, cada vez mais irregular. 

Um menino berrou não muito distante. O Minotauro olhou para ele, e eu soube que ele era o próximo. O monstro andou até ficar próximo do menino e levantou o enorme e musculoso braço. 

Minhas pernas, por algum motivo, andaram — se arrastando — até ele. De frente para o Minotauro novamente eu agarrei o menino que berrava sem parar. O Minotauro bramou tão alto que o chão começou a tremer, sua aura ficou mais forte e seu corpo mais que sangrento. 

Senti um líquido quente escorrer pela minha perna quando eu gritei, eu não queria morrer aqui, assim. Não conseguia parar de chorar, berrar…

O som do desembainhar de uma lâmina veio dos céus junto de um estrondo, mas quando alcançou o chão parecia um raio. O som do corte foi da minha frente até uma casa próxima, e, ao que parece, a casa desmoronou. 

Um homem sorria no meio do fogo e das faíscas amarelas que se moviam como se estivessem vivas, ele segurava uma espada irregular dourada no pescoço do Minotauro caído no chão. 

— Ainda bem que eu cheguei a tempo. — falou o homem que vestia uma armadura com um símbolo de lua no peito. 

Ele era um guarda real.



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