Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 15: Uma chance de lutar, um receio a superar

Uma árvore após a outra. A trilha parecia nunca ter fim enquanto eu corria. Acelerei, usando a raiva, o ódio, como impulso. Minha armadura foi imprestável, minha arma perdeu quase toda sua utilidade e eu falhei como membro. 

A culpa era minha. 

Eu atraí esse monstro, o encapuzado, a manada daqueles seres… E por causa disso, da minha incompetência e falta de força, Cirlan perdeu o braço e o meu grupo enfrentava uma criatura que nem eles sabiam se sairiam vivos. 

Corra, idiota. Você só tem uma única missão, faça ela direito. 

Berrei durante o percurso, amaldiçoei com toda a minha essência essa falta de força.

Eu podia ser diferente. Podia!

Arrastei os pés no chão em uma freada brusca, peguei a petrom do bolso e a taquei no solo. 

Nada. 

Arvid disse que viria me ajudar se eu quebrasse isso, talvez tivesse sido pouco. Repeti o processo várias vezes. A petrom continuava inteira, independente do que eu fizesse.

— O que es-está fazendo… i-idiota? Não é hora de chorar — Pequenas gotas tocaram o chão.

Guardei a pedra e mantive o ritmo. Na base da montanha, um cheiro de fumaça surgiu. Apoiei-me sobre a árvore para respirar e olhei atentamente para frente. 

Droga, o suor trazia um arder constante em meus olhos. 

Quando recuperei o fôlego e meu coração se acalmou, consegui ouvir vozes de muito longe.

Vamos, corpo, por favor, ouça tudo que puder!

Um gosto amargo chegou a minha boca quando ouvi gritos, som de cortes e chiados. Saquei a adaga, corri e pulei para fora do amontoado de arbustos. As casas fora da muralha estavam cobertas por chamas, inocentes estavam no chão sem seus membros inteiros — suas feições eram de pavor. 

Um, dois… 

Quinze goblins destruíram tudo com suas garras. Dois soldados se aproximaram — do reino dez, pelo uniforme — e chamaram a atenção de dois goblins. Eles vestiam uma armadura de ferro e couro, seguravam uma espada reta e pareciam apavorados. 

Naquele mesmo instante, uma criança gritou. A menina segurava um ursinho marrom, enquanto enxugava os olhos e berrava. Um goblin decidiu ir até ela. 

Dei um passo em direção, e um grunhido veio dos soldados.

As garras do pequeno monstro perfuraram a barriga de um deles. A dupla conseguiu arrancar a cabeça do inimigo, mas teve suas pernas rasgadas pelo segundo goblin. 

O monstro aproveitou a queda do humano e avançou de novo. O primeiro soldado teve o estômago arrancando vagarosamente pelas garras até parar de reagir conforme o goblin ria.

— Deixe ele! — berrou o soldado que ficou de joelhos. — Desculpa, Maji, eu não consigo ficar de pé. 

Meu coração apertou quando a menina gritou. Eu não podia salvar os dois. Eu rezei para que o tempo desacelerasse, implorei para que se houvesse algum poder oculto em mim, ele saísse. 

Com a adaga na mão, corri em direção a garota. O goblin mal teve tempo de reagir quando eu enfiei minha arma em seu crânio e trouxe para fora seus malditos miolos. 

Fiquei tonto pelo sangue brutal, a vontade efervescente de matar tinha morrido em mim.

O outro goblin enfiou suas garras no estômago do soldado e puxou as costelas para o exterior. Gritos e berros ecoaram, porém o monstro continuou. 

Sem tempo de ao menos cair, o homem teve suas escleras perfuradas como bolas e arrancadas. Seu corpo permaneceu ali de joelhos, com as costelas abertas, e com seus olhos pendurados na altura de sua boca.

Eu travei quando aqueles olhos vermelhos travaram em mim. 

Era um goblin anormal. 

O choro da garota me trouxe de volta. Aquilo veio em uma velocidade em que eu tive dúvidas se podia acompanhar. 

Ele saltou e abriu os braços, exibindo seus dentes afiados prontos para me devorar. Em um passo rápido para trás, estiquei o meu braço para um golpe lateral, o qual consegui atravessar sua cabeça em pleno ar. 

Prendi minha adaga no chão e vi o seu cérebro sair com um líquido verde. 

Com medo dele levantar e reagir, eu o esfaqueei novamente.

Peguei a criança no colo e ela me apertou. Parecia que pedir ajuda ia levar mais tempo que o desejado, mas meu time precisava disso. Essa menina precisava de segurança, e eu de reforço. 

Toda a tensão trouxe a dor de volta ao meu peito. Estar entre casas em chamas, corpos de humanos e goblins dilacerados trouxe o peso da realidade até mim. 

Muitos inocentes já estavam mortos aqui. Dez goblin que agora estavam mortos fizeram isso.

Minhas mãos suavam enquanto eu tentava me manter de pé. Eu tinha certeza que morreria se tentasse algo, mas ter uma vida para proteger me trouxe outra visão. 

— Eu-eu…quero ir pra casa. Que-quero a mamãe — Ela parecia a Emy…

— Eu vou te levar, tá bom? — falei, com medo de que ela tivesse percebido o tremor na minha voz. 

Levei ela em minhas costas enquanto eu rastejava pelos arbustos e restos de madeira, longe o suficiente para não sentir o calor do fogo e evitar os monstros soltos correndo. 

Todas as casas fora das muralhas haviam sido atacadas. Minha família estava bem?

Eu sabia que eles eram fortes, mas um pesar me incomodava. Anomalias eram conhecidas por surpreender qualquer um, independente do nível. 

Os goblins atacavam junto a outras criaturas que pareciam lobos, revezavam no ataque e entravam em formação quando pretendiam se mover ou atacar alguém. 

Três soldados lutavam bravamente contra oito goblins nos portões de Karin. Eles tinham uma desgraçada desvantagem em poder, só bastava um monstro para levar os três. 

Essas criaturas só brincavam ou tinham medo de atacar? Peguei a adaga e pus a garota em minhas costas. O cenário de dentro também era pouco agradável, com fogo, sons de explosões e casas parcialmente destruídas. 

Sempre que essas anomalias apareciam a cidade estava sem os capitães. Seria um ataque direto aos reinos. Então… só consegui pensar na volta dos Ritualistas. 

— Ei, cidadão, corra para dentro! — disse o soldado, enquanto defendia com dificuldade as garras de um goblin. 

— Como você espera que eu passe por eles?

Dois dos pequenos me notaram e avançaram contra mim. Esquivei-me com a cabeça para trás, cortei o braço do ataque e finalizei enfiando a adaga sobre o peito dele. 

O segundo monstro pulou para o meu lado direito, mas falhou em me acertar quando eu virei o corpo do amigo morto contra suas próprias garras — atravessei minha arma sobre os dois. 

Até que uma sombra surgiu. 

Era um goblin que vinha de cima e estava perto demais para eu desviar com ela nas costas. Fechei os olhos e me preparei para receber outra cicatriz, só que pude ouvir um som de água, e o ataque nunca chegou. 

— Tinha hora melhor para passear, sabia? — disse Bruno, enquanto cortava dois goblins juntos com sua espada reforçada de água. — Estamos evacuando todos para dentro dos quartéis de Karin, a guerra principal começou dentro da cidade. 

Eu, Bruno e três soldados estávamos sozinhos nos portões de Karin. Naquela hora, só havia goblins longe o suficiente para não nos preocuparmos.

— Bruno, eu preciso de reforços urgentes! O meu grupo está encarando uma criatura que eu nem sei o nível na floresta norte. Também preciso que leve essa menina em segurança para o quar-

— Estamos sem nossos melhores, Bruno. Já mandei que todos os cantos e chafariz da cidade fossem vigiados com três tropas de defesa. Os capitães auxiliares estão à disposição para eliminar os goblins e hoasters maiores. Se tivermos a chance de agir, a hora é agora. — Fui interrompido por um soldado de capa verde que não possuía um braço. 

— Andri, vamos levar essa menina para o quartel e solicitar reforços urgentes para o resgate da Tropa de Coleta na floresta norte. 

— Esse Sem Magia vai lutar? Aquele que você sempre fala? — Andri nos olhou confuso.

Deixei o ódio se manifestar no meu olhar. O sangue que escorria em minha testa, meu e dos monstros, ainda estava quente. 

Eu tive certeza de que esse Andri iria pensar duas vezes antes de me considerar indefeso. 

— Sim, ele mesmo. Não conte aos superiores que deixei ele lutar — disse Bruno para Andri, e depois olhou para mim. — Lumi, eu cuido daqui. Você precisa ir verificar se sua família conseguiu sair em segurança. Não se preocupe sobre os reforços, eu mesmo farei questão de reunir a tropa. Vou deixar alguns magos com você, eles devem te manter seguro. Aguarde aqui.

— Agradeço, Bruno. 

Entreguei a garota nos braços do meu amigo, ele confirmou com a cabeça e a levou correndo. O portão parecia um cenário de guerra, com braços, pernas, sangue verde e vermelho que cobriam o chão e as paredes, corpos… 

Cerca de três pessoas chegaram desesperadas até nós, quatro goblin corriam aos gritos atrás delas. Os guardas correram para os cantos para impedir o avanço dos goblin e as pessoas passaram por mim, e um único goblin tinha conseguido passar.

Durante a batalha, consegui equilibrar meu ataque com o estilo evasivo, acabar com os pequenos monstros com efetividade graças aos…

 Admitir isso doeu em mim, mas os bonecos de madeira do Gerould fizeram esses goblins parecerem fáceis. 

A única diferença clara era que eles podiam me matar, e só fiquei mais alerta graças a esse fato. Os soldados pareciam exaustos. Suas armaduras desgastadas, armas danificadas e ambos ofegantes. 

Eles sobreviveriam assim? Só paramos três…

Bruno voltou com o seu grupo. Havia um soldado de armadura real, dois magos com cajados que continham uma pedra de esmeralda, uma guerreira que segurava uma espada e um bastão mágico e três soldados que vestiam a armadura clássica com o emblema do rei Enguerrand. 

Uma leve pergunta pairou sobre a minha mente naquele instante, porém precisei ignorar por hora. 

— Já sabem o que fazer — disse Bruno enquanto olhava para o seu grupo, logo então direcionou seu olhar para o batalhão dele. — Vamos resgatar a tropa de exploração, entenderam!?

Grato pela ação do Bruno, lancei a ele um olhar agradecido.

Marchei em direção a fazenda com o meu grupo. Durante o caminho, senti meu coração disparar várias vezes, fosse pela dor ou pela preocupação, eu falhei em me acalmar. 

Apertei a adaga, queria de toda forma me convencer de que eles estavam bem. Eu estava todo sujo de sangue, feridas e sujeira. 

Minha mãe ficaria preocupadíssima se me visse assim. 

Eu precisava de força se quisesse mudar a situação. Olhei para a frente, a longa e destruída trilha, e decidi que, independente do que estivesse lá, eu não ia dar para trás. 

Então por que essas palavras pareciam tão vazias para mim? Pernas, vocês deveriam estar firmes. 

Droga. Droga. Droga. 

— Ei, vai ficar tudo bem — disse o soldado de armadura, uma feição gentil. 

— Eu esperava que você fosse mais confiante, Sem Magia. Apareceu tantos nos jornais, mas é tão broxante pessoalmente. Não sei porque Bruno deu ouvidos a um lixo como você — citou a guerreira do bastão. 

— Chega, Amis, não precisamos de um conflito entre nós agora. — respondeu o soldado. 

— Conflito? Ele não dura três segundos comigo! 

— Ainda não acredito que fomos colocados para matar míseros goblins… — comentou um dos magos. 

— Vamos acabar logo com isso, irmão. Sem Magia, você sabe ao menos lutar, certo? — Abri a boca para responder, mas o tom da arrogância em sua voz me fez reconsiderar. 

— Claro que não sabe, aparecer nos jornais foi pura sorte. Espero que tenha um monstros forte de fato, para que eu possa levar a cabeça dele — implicou Amis.

— Você vai tentar. 

— Como eu parei em um grupo desse…? — questionou o soldado. 

Eram todos nobres de famílias irrelevantes de Karin querendo ter algum feito para serem reconhecidos. Com exceção dos três soldados, que ficaram quietos o caminho inteiro. 

Em parte, eu admiti que fiquei mais seguro em saber disso, porque eles eram fortes, apesar de arrogantes. Amis me rebaixou o caminho inteiro, mas me mantive focado na casa que ficava cada vez maior conforme andávamos. 

Foi quando eu vi um casal contra a parede da minha casa abraçando com força uma criança, enquanto tentavam evitar a poça de sangue em sua frente. 

Fiquei boquiaberto. 

Alguns goblins foram mortos brutalmente, e seus corpos ficaram espalhados por todo o chão. Alguns ainda sangravam por cortes fundos, outros desmembrados.

Seja lá quem esteve aqui, era forte. 

O cenário de horror pareceu motivo de piadas para eles, pois começaram a rir, sem se preocupar com as pessoas. 

Corri na frente dos demais para vê-los, mas eu não os conhecia. Suas roupas foram rasgadas a cortes, seus rostos carregavam desesperança, e seus olhos despejavam lágrimas. 

Sentindo meu coração sair pela boca, resolvi perguntar: 

— O que aconteceu aqui?

— Tem-tem uma coisa pior ali — respondeu o homem, antes de desabar em choro. 

— Calma, nós estamos aqui para resgatar vocês — O soldado olhou para mim, gesticulei negativamente com a cabeça, e ele voltou a olhar para eles. 

— Não, vocês não entendem. Devem fugir também. 

Todos paramos quietos quando vimos uma pessoa de capuz preto surgir no meio dos corpos. 

— Eu te protejo, Lumi. Fique atrás — sussurrou o soldado enquanto sacava sua espada curvada. 

— Ele vol-voltou — disse o homem, horrorizado, sem nem piscar.

— Pegue sua família e vá embora com esses três soldados, nós ficaremos aqui.

— Vocês devem chamar reforços! Parem de loucura! — Gritando e se recusando a sair, os guardas o levaram pelos braços, enquanto sua família o seguia. 

— Ei, você. Fez um bom trabalho limpando os goblins para mim, mas terei que te levar preso — Amis disse em alto e bom som e deu um passo à frente. 

— É só um. Vai acabar mais rápido do que pensei — falou um dos magos. 

Eu estava tenso. Por quê? Era o encapuzado que acabou comigo? 

A pessoa segurou a capa e a jogou no chão. Uma sensação de confiança surgiu nos rostos dos outros, mas eu dei um passo para trás. 

Era um goblin… alto, com dentes afiados, olhos vermelhos, garras e músculos. 

Anormalidade. 

Ele veio me eliminar. 

Eles se exibiam, mas todo o som foi abafado quando eu encarei aqueles olhos. Amis mirou seu bastão para ele, os dois magos ficaram em sua retaguarda e o soldado real na minha frente. 

Estava errado, eu precisava falar para eles. Eles iriam me ouvir? Não tínhamos chances.

— Amis- — Fui interrompido pelo grito de guerra da mulher nobre. 

— Vem, seu verme!

Com um único passo, o goblin entrou na área de ação dela e a esmurrou no rosto. O corpo de Amis saiu do chão por um segundo — e a anomalia aproveitou isso para enterrá-la na terra. 

Sua face foi espremida entre o punho do inimigo e o chão, enquanto seu bastão e sua espada voavam para longe. Pude ouvir algo estalando, e, mesmo com a metade do seu rosto dentro da terra, eu vi que seu maxilar havia sido deslocado. 

Os magos criaram duas bolas de fogo e arremessaram na criatura, que cobriu o braço com uma aura verde bizarra e rebateu o ataque. Os nobres pegaram fogo. 

Nos gritos de agonia, eles se ajoelharam, e o soldado real se pôs entre o goblin e eles. 

O impacto do braço coberto de magia com a espada foi ensurdecedor, e o chão rachou. 

Mas vacilei em ter esperança. 

A espada do homem foi partida em dois, e as garras do goblin perfuraram sua barriga e arrancaram suas entranhas. 

Ele vomitou sangue e caiu de bruços, e a criatura olhou para mim. Puxei o feitiço de Bruno e atirei quase que instantaneamente. 

Ele foi mais rápido. 

Eu gritei quando percebi o punho dele se aproximando do meu lado e acabei inclinando-me para trás. Vi o punho dele recheado de aura passar por cima de mim, até que, com um girar, ele me golpeou no estômago e meu corpo ricocheteou contra o chão.

O mundo girava, metade do meu rosto ardia. Quando minha visão estabilizou, eu vi o corpo queimado de um dos magos, nossos rostos muito pertos um do outro. 

Me afastei um dedo arrastando o rosto no chão e travei quando ouvi uma risada maníaca. Os passos ficaram mais altos, ele se aproximava. Eu estava com medo demais para levantar, a sensação do tremor me enganava. 

Eu sabia que tinha energia, mas meu corpo se recusava a reagir. Levei um chute nas costelas que me tirou um gemido e me fez ser arrastado na terra. 

O arder tomou conta do meu braço, e minha visão direita foi levemente danificada pelas malditas pedrinhas que voaram. 

Aquele ser estava ali, rindo e me encarando. 

Palavras vazias as minhas. 

Dar para trás? Eu já estava fazendo isso. Nenhum desses guerreiros conseguiu ferir ele. Que chance eu tinha então? 

Me ajoelhei, puxei todo o ar que pude e o encarei. 

Que medo. 

Eu sabia que era questão de tempo até eu ser espancado, e se eu corresse, ele com certeza me mataria antes de eu chegar nos outros. 

Comecei a rir.

Limpei as lágrimas que desciam pela minha bochecha e o vi se aproximar. Ele abriu as garras e ergueu o braço, e aquele sorriso afiado logo se tornou parte da feição de um demônio sério. 

Ele era três dedos mais alto do que eu, sua estrutura óssea humanóide parecia a de um cavaleiro real. 

Foi quando, de repente, eu senti de novo o mundo desacelerar, como se houvesse dois mundos com diferentes auras e energias, cada um com sua própria maneira de funcionar, e onde a mana corria livremente. 

O goblin recuou um passo e ergueu a guarda. Pareceu… assustado? Ele olhava para algo atrás de mim.

Eu logo soube o porquê disso. 

— Reaja, Kai, você precisa chegar aqui — A voz novamente surgiu, mas sem a calma e o silêncio de antes. As emoções pareciam… de pavor e medo. — Por favor… Você precisa chegar até mim.



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