Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 16: Um toque de luz

Eu me senti entre uma energia calorosa, confortável, e outra fria e sombria, maldosa e sanguinária. Meu corpo ficou de pé sozinho, meu olhar focado nos olhos vermelhos do inimigo. 

Ele direcionou sua atenção a mim. 

Ergui meus braços, observando com cautela o posicionar dos braços dele, como se eu tivesse certeza de que poderia defender. Limpei o suor da minha testa e afastei o cabelo ensanguentado do meu olho. 

A brisa de ar pairou sobre as árvores, trazendo um ranger rítmico e constante. Quando o céu nublou-se tão rápido? 

Eu estava confuso, todo o medo e o horror que eu sentia sumiram — e o meu corpo havia liberado a energia preservada e ocultada pelo receio de morrer. 

Era diferente da sensação de estar coberto por uma mana emprestada, mais como a benevolência- 

Fui interrompido e afastado do meu raciocínio por um golpe que ainda iria vir. 

Um soco. Um desviar. 

Inclinei meu corpo para trás e vi o braço do goblin ultrapassar com velocidade o local onde minha cabeça estava, e ele continuou. Utilizando o mesmo braço, ele tentou me cotovelar, mas novamente seu golpe atingiu o ar. 

Eu conseguia ver além da aparência física dele, onde habitava dois tipos de esferas de energia. 

Seguimos um duelo no qual eu esquivava de qualquer ataque, enquanto ele tentava desesperadamente me perfurar com as suas garras. Seus socos, cortes e chutes pareciam mais lentos… e ao mesmo tempo mais rápidos. 

Minhas costas bateram contra a árvore. Pisei com força no tronco e joguei o meu corpo para cima, e eu vi com clareza a perna esverdeada arrancar um pedaço do grosso tronco. 

Caí atrás dele e fui recebido com um chute traseiro bem no estômago; por sorte consegui amortecer o impacto segurando a canela dele. 

O goblin forçou a perna para o chão e iniciou uma chuva de socos em minha guarda. Ele sorriu, seu olhar era como o de um guerreiro sedento por sangue. 

Eu sabia que ele podia pensar agora, a maior parte da sua mana estava contida.

Eu pude ver a magia. 

Seus socos se tornaram mais intensos, minha visão teve dificuldade para acompanhar. Se ele estivesse acertado em vários pontos do meu corpo, eu iria perder a luta aqui e agora, mas ele mirava apenas em meus antebraços. 

O estresse no meu osso trouxe diversos estalos, e uma dor agonizante crescia. Ele matou todo o meu grupo de resgate, seu amigo monstro arrancou o braço do meu líder e… aquele encapuzado tentou me matar. 

Eu estava cansado de apanhar.

Abri a guarda e um soco entrou direto no meu rosto. Senti meu cérebro sacudir. Chutei com força a lateral da cabeça do maldito, eu coloquei toda a minha raiva naquele golpe. 

O goblin voou e bateu contra a porta, ficando, por alguns segundos, desnorteado. 

Andei vagarosamente na direção do inimigo. Minha casa estava quase inteira, apesar da situação. Os degraus da pequena escada da varanda rangeram com os meus pés. 

Eu olhei de cima para a pobre criatura e amassei meu calcanhar no centro de sua maldita cara. A porta foi destruída, e seu corpo ficou entre os escombros dentro do meu lar. 

— Levante, Goblin. Eu vou acabar com você.

Seu sorriso foi de canto a canto e ele se ergueu. Entramos em uma troca de golpes rápido. A cada cinco socos meus em suas costelas, ele acertava três em meu rosto. 

Um pouco desvantajoso, supus, então levei minha canela para o que achei ser a parte íntima do monstro. Pra minha sorte, ele abaixou a guarda e grunhiu, e eu acertei um soco lateral que o derrubou contra um móvel. 

Pulei e afundei meus joelhos contra o estômago dele, mas fui tirado de cima com um perfurar na minha perna. Contive um gemido de dor e larguei dois socos, fazendo a cabeça dele bater contra o chão e criar um leve rachado na madeira. 

As pernas do goblin me arremessaram longe, a ponto de eu colidir contra a parede e convertê-la em míseros pedaços. Cuspi um bocado de sangue quando me ajoelhei. 

A cozinha… perfeito. 

Peguei a maior faca que vi e me posicionei como se segurasse a adaga. Minha perna estava em carne viva… Isso vai doer muito quando o sangue esfriar.

O grandalhão levantou e cerrou os punhos. 

Esqueci como ele me assustava. 

O barulho de uma espada sendo desembainhada soou quando as garras tornaram-se duas vezes maiores. 

Me senti mal por segurar a faca e por tê-lo chutado, ele não estava lutando comigo como uma criatura. Estiquei o braço e larguei a faca. 

De início, ele me olhou confuso, mas recolheu as armas naturais e fez uma pose de luta

Entendi.

Vários pedaços de madeiras desbotavam do teto e das bordas pontiagudas e destruídas das paredes. Parecia que uma coluna importante da casa havia sido destruída, ficar aqui dentro se tornava cada vez mais hostil. 

Foi quando paramos por apenas alguns segundos que o sangue começou a esfriar, trazendo à tona todo o dano que eu havia recebido ao longo das lutas. 

Minha visão direita encheu-se de vermelho e parou de funcionar, meus antebraços doíam e foram tomados por um roxo que tirou parte da sensibilidade do tato, minha perna estava em carne viva espumando pus, meus punhos vermelhos e inchados e algumas costelas quebradas. 

Todo hematoma e corte leve se tornaram piada perto dos danos atuais. Puxei todo o ar que pude — isso doeu muito —  e encarei o meu adversário que estava a apenas um passo de distância de mim. 

Inclinei meu rosto levemente para cima e nossos olhares se cruzaram. Ele estava ferido, o sangue vermelho escorria na lateral da cabeça. 

Eu era capaz, eu era capaz! Posso vencer dele.

A próxima sequência de golpes foi mais intensa e veloz que a outra, cada golpe, cada mínimo movimento, se tornou fatal. Destruímos algumas paredes, móveis e janelas. 

Ele segurou minha cabeça e me arremessou contra o chão e os cacos de vidros adentraram em minhas costas. Pressionei minha mão no chão e o bandei, logo nós dois fomos atordoados pelo cenário. 

Meu braço direito foi rasgado, mas ignorei e enfiei um soco no estômago dele, tirando sangue de sua boca. Logo utilizei o esquerdo para lhe acertar o queixo, e o direito novamente para quebrar umas costelas. 

Ele conseguiu levar o seu punho contra os cacos do meu braço, fazendo alguns atravessarem a minha carne. Seu outro punho afundou-se em minha barriga tão forte que…

Eu gritei enquanto voava para o segundo andar, destruindo o piso e caindo próximo ao corredor.

Bater as costas contra o chão me tirou boas lágrimas, e rapidamente fiquei de joelho para ver o inimigo subir. Ele estava rindo, seus punhos haviam sido cobertos por uma aura verde densa. 

Os olhos vermelhos brilhavam, a criatura, antes humanóide, agora parecia um monstro que saiu de uma banheira de sangue. Mesmo com os cacos de vidro, seus ossos quebrados e o dano levado ele estava subindo as escadas com ânimo. 

Fiquei de pé, e o primeiro soco que passou sobre mim foi como o do mascarado. O punho energizado que afundou em minha barriga me tirou do chão por alguns segundos. 

Bati contra a porta e vomitei. 

Meu olho direito latejou, mas o inimigo continuou. 

O próximo soco destruiu a porta e rachou as paredes, por pouco eu consegui desviar. 

Pense, pense

Outro soco. 

Outra parte da casa sucumbiu, e o teto passou a desmoronar. O quarto dos meus pais foi preenchido por um enorme buraco, e eu vi a chuva chegar. 

Os golpes dele eram acompanhados por fortes ventos, como se toda vez que ele errasse uma corrente de poder destruía tudo em volta. Partes do chão foram destruídas, estava difícil evitar pisar nas brechas. 

Quando me desviei de um pedaço afiado de madeira que caía, ele quebrou a distância entre nós dois em um único passo. Estávamos cara a cara. Meu coração disparou, eu congelei. 

Senti minha perna afundar quando dei um passo para trás, e o momento seguinte passou devagar diante dos meus olhos. Eu comecei a cair, e o braço iluminado dele passou a um dedo do meu peitoral. 

Até que, quando colidi com o chão instável, ele desceu o seu punho na minha direção, e nós dois caímos em meio aos escombros. A área em que estávamos do segundo andar desabou… 

E eu desabei até abaixo do primeiro piso.

 

Eu abri os olhos, meu corpo estava pesado. 

Eu desmaiei? Que dor de cabeça de merda.

Fumaça, madeira e terra pairavam sobre o local. Apoiei sobre o chão detonado e fiquei de pé. Um borrão sombrio surgiu dentre as fumaças, logo tomou a forma de uma pessoa e olhos vermelhos se destacaram. 

Ele havia caído de pé, seus braços ainda estavam cobertos de energia. Meu braço direito parou de reagir e minha visão estava recheada de um vermelho escarlate. 

Droga, se esse olho cedesse também, já era. 

Ele era poderoso. O que eu tinha na cabeça para enfrentá-lo? Oh… A voz. 

Sua aura verde se assemelhou a fogo. Uma expressão confusa no rosto do inimigo. Ele olhou para algo ao meu lado. 

Era a espada. A porra da espada!

Estiquei meu braço e agarrei a espada. Por um segundo, o goblin ficou boquiaberto, mas sua confiança voltou tão rápido quanto se foi. 

Era uma katana leve, sua energia constantemente caçava absorver algo em mim, como se soubesse e quisesse usar o poder do usuário. 

Difícil pensar quando se tinha um goblin enorme se aproximando, mas eu senti isso na katana. Respirei fundo. Ele também estava à beira de cair. Um ataque, um corte e uma vitória. 

— Forte, eu admito… — sussurrei, deixando um leve sorriso aparecer. — mas parece que derrotar você vai me deixar um passo mais próximo daquela voz. 

Levantei a espada e corri. O goblin reforçou apenas um braço com a chama verde, iluminando todo o local com o brilho ofuscante de seu poder. Mirei a espada em seu pescoço e a balancei. 

No entanto, minha experiência com katana era insignificante. O confronto criou um pequeno raio de energia que destruiu os pilares do porão, e mais uma parte da casa despencou. 

A katana fez isso. 

O braço dele arranhou o fio da minha lâmina, e ela se perdeu da minha pegada. Desde a palma da mão até o ombro, as garras dele rasgaram parte do meu braço. 

Eu gritei, pensei que ia cair e finalmente acabar com toda a dor, mas desceu suas garras ainda empoderadas e rasgou o meu peitoral, completando, agora, uma cicatriz em x. 

Tentei falar, mas me engasguei com o sangue. 

Será que eles combinaram isso? Que droga de derrota…

 

Tudo ficou escuro. Nenhum som, nenhuma dor.

Eu morri? 

Uma esfera branca e ofuscante surgiu em meio ao breu, e, ao lado dela, uma mísera gota de energia verde. Ambas me trouxeram a sensação de serem idênticas, até que uma fumaça vermelha as possuiu, tornando-as da mesma cor. 

As esferas se fundiram e a nova forma se explodiu em vários pontos, que aos poucos se conectaram com fios de raio puro. O ambiente de repente se tornou a superfície de um lago. 

Um que eu já vira antes. 

Outro brilho ofuscante chegou, mas acompanhado de passos: o único som que predominou o local. Eu não conseguia enxergar. A pessoa, ou o ser, alisou os fios e os observou com cautela. 

Ela estendeu a mão para mim. Eu estiquei meu braço, mas antes de tocá-la eu acordei.  

O som do desabamento voltou. Eu estava sentado contra a parede, e o goblin de costas, enquanto ia embora. 

Nossa, como eu detonei o meu corpo… 

Um brilho veio do meu braço esquerdo, e por um único segundo eu me senti revigorado. As dores ainda estavam aqui, a exaustão continuava impregnada nas minhas costas, mas eu sentia que podia levantar. 

O goblin parou e virou-se para mim. Um enorme sorriso surgiu no rosto dele, novamente ele reforçou o braço com a magia das chamas verdes. Fiquei de pé e o encarei. 

Meu braço ainda estava roxo e doía bastante, mas uma espécie de aura branca quase transparente o cobria. 

Aquele pessoa me permitiu usar isso? 

Dei um passo à frente e arremessei o meu braço com o máximo de força que pude. Quando nossos punhos se colidiram, o chão ao nosso redor rachou-se para cima e as paredes estouraram e circularam junto ao vento e a poeira. 

Quanto poder. Quanto poder!

Era impossível não me admirar com tamanha beleza da magia. Forcei o braço até que chegasse ao rosto dele. O corpo verde bateu e afundou na terra e um bocado de sangue fugiu da boca dele. 

Meu braço esquerdo entrou em um estado crítico, o músculo estava bombeando sangue para fora e havia vários pequenos buracos; fora o insano roxo. 

Avancei e afundei outro soco potente no nariz do goblin. Ele tentou se levantar desesperadamente, mas meu último golpe atravessou a boca dele. 

Eu apenas dei mais um, o que estourou a cabeça e jogou miolos para todo lado. O corpo dele estava ali, sentado sobre uma brecha gigante na parede. 

Eu havia vencido. Contra. Uma. Anormalidade. 

O poder que recebi se esvaiu, e eu me vi de joelhos. Meu ouvido zumbiu quando algo despencou atrás de mim e trouxe muita fumaça. Até que o corpo do goblin brilhou em verde claro e se esfarelou em um mar de “vagalumes”. 

Uma pedra surgiu em seu lugar, com um brilho imenso e lindo, uma tonalidade de verde que eu jamais vira antes. 

O resquício de magia do corpo dele fixou-se em letras irregulares na parede, que aos poucos tomaram forma e se converteram — pouco a pouco — em uma frase. Limpei meu único olho bom e li:

— Se bem a usar, ela pode favorecer. Se mal a tratar, ela se voltará contra você… Mas que porra? 

Peguei a pedra e guardei no bolso. Subi com muito esforço a simples escada e saí de casa. O ar bateu sobre meu peito, e a ardência retornou. Sentir as gotas de águas caírem sobre mim foi relaxante, uma lembrança bem clara que eu estava vivo e que a batalha acabara. 

Uma fraca neblina se espalhou lentamente sobre o local. Até que, em algum lugar da névoa, eu ouvi um golfar.

Alguém conseguiu viver?



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