Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 14: A chegada inesperada

A voz ficou na minha cabeça nos últimos dias, ela não parecia ser mal. Por hora, pelo menos. Mas as dúvidas de quem ou o que era continuou. 

Desde o início, era claro que eu deveria buscar poder, e que, independente do meu estilo de vida, eu deveria treinar. Porque minha vida estava em risco, aquele cara iria voltar cedo ou tarde.                                            

A varinha de Bruno se tornou um dos utensílios que eu mais tive apego, o feitiço armazenado em seu centro poderia salvar a minha vida. Então eu precisava de mais, qualquer coisa útil para substituir a ausência de magia. 

Deslizei a perna direita sobre a terra, ergui meu antebraço esquerdo e aguardei o chute me alcançar. A sola do pé de madeira atingiu com força total meu bloqueio, e logo em seguida ele girou no ar, levando sua outra perna direto na minha face. 

Utilizei o modo de luta evasivo para dar um passo atrás a cada golpe o qual eu desferia a direção. Durante boa parte do treino, eu me safei dos danos. 

Esquivar, bloquear e direcionar ataques era mais simples, como se o meu corpo naturalmente pudesse fazer isso. 

Gerould cessou os movimentos dos bonecos com o seu cajado, e no mesmo instante a brisa forte pairou em todos nós. Manter o foco no treino me impediu de ver as nuvens escuras chegando.

As plantações sacudiam no ritmo do uivar do vento. Olhei para meu estado sujo e deplorável e repensei todo o progresso, automaticamente um sorriso se formou em meu rosto quando vi a terra rabiscada. 

E a voz do meu mentor tirou-me do meu mundo. 

— É um estilo de luta de se admirar, sim. Mas não acha que está acuado demais? Os ataques são sempre ausentes nos seus treinos — Levantei o cabelo que começou a surgir no topo da minha visão esquerda e virei para ele, era engraçado ver dois guardas da rainha convertidos a professores de combate. 

— Sim, sei disso. Eu apanhei desde que entrei nesse ramo, então acho que usar o estilo defensivo e evasivo me trouxe segurança. A minha missão é a noite, isso também tem tirado o meu foco.

— Certo — respondeu Gerould com um suspiro. — Tenho algo que talvez possa te ajudar. Ataz me… auxiliou na lembrança deste utensílio.

— Auxiliei? Eu lembrei dele! 

— Não sabemos ao certo quem lembrou. Pegue, garoto. — Gerould arremessou uma poção branca brilhante, e eu segurei firme com as duas mãos. — Isso fará a mana circular pelo exterior do seu corpo temporariamente.

— Que incrível — falei, admirando o frasco. — Deve ter sido o olho da cara.

— Aceite como um investimento nosso, sei que você vai ficar forte algum dia. 

É o que eu desejo.



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Árvores para todo lado, nenhum sinal da clareira citada. Se não fosse pelas joaninhas brilhantes, nós com certeza iríamos embora daqui. Olhei para Kaled no galho de uma árvore enorme e fiquei determinado a tentar subir. 

Desembainhei a adaga e a cravei no tronco, logo pulei, apoiei as pernas sobre o mesmo e comecei a escalar. Porém senti minha gola ser puxada e eu caí no chão. 

Quando olhei para cima, percebi o olhar de decepção de Cirlan sobre mim.

— Sabe, subir lá não é uma boa ideia para você. Continue olhando as joaninhas, quanto mais delas haver, mais perto estaremos do material classe oito — Abri a boca para falar, mas o capitão me interrompeu. — E isso significa que o risco de morrer aqui também é alto, você vai ficar perto de mim e da Cacele.

Olhei para Cacele e fiz biquinho, mas ela olhou para o lado e assobiou. Kaled aterrissou, me fazendo cambalear. 

O grupo seguiu mais acima. 

Alguns chiados e sons de abate fizeram-me acelerar o passo, esse era o grande problema de ir para a floresta a noite. 

Certifiquei que a poção de Gerould e a varinha de Bruno estavam na minha bolsa, perder isso estava fora de cogitação. 

— Que nível vocês são?

— Ah, a criança aprendeu a nivelar agora? 

— Eu sou aspirante a Dilúculo — disse Cirlan, casualmente, enquanto usava seu feitiço de vento para afastar os arbustos.

— Eu sou uma excelente arqueira Fulgor! O nosso querido localizador, Kaledinho, é o mesmo que eu — Cacele cutucou o amigo com o cotovelo.

— E os dois membros que nunca mais vieram em missão?

— Eles seriam bem úteis aqui, já que um Nulo vale como menos um. 

— Pelo menos eu fiz uma missão solo. 

Neste instante, Kaled virou de dentes cerrados e ergueu o punho, mas chiados próximos me salvaram dessa surra. Algumas criaturas quadrúpedes saíram dos arbustos. 

Elas rosnavam e aos poucos se aproximavam. A coloração de suas grossas camadas de pelo era preta, seus caninos eram imensos, seus músculos maiores que o comum e seus olhos… vermelhos. 

Anormalidade. Puta que pariu. 

Kaled enterrou o punho no crânio de um deles. Ele pressionou até a cabeça bater no chão, criando um pequeno buraco com o corpo agora morto. 

Cirlan uniu as mãos e três escudos vermelhos surgiram ao seu redor, e Cacele ficou entre eles dois posicionada com o seu arco para qualquer um que se aproximasse. 

Com medo da minha posição ofensiva, saquei a adaga e dei lentos passos para trás. 

Entramos em combate! Isso!

Um passo atrás.

As garras pontiagudas arranharam a minha arma a ponto de pequenas rachaduras surgirem, antes mesmo de eu tentar desviar.

Quando escorreguei na lama e o meu peitoral ficou aberto, cerrei os dentes e pensei em como seria a dor de outra cicatriz, mas uma flecha atravessou a cabeça dele, levando seus miolos para o chão enquanto ele dava dois passos antes de cair. 

— Atenção, Lumi — Cacele disse, e eu concordei com a cabeça. 

Virei, apertei com força o cabo da adaga e gritei no meu ataque. A lâmina passou longe de perfurar um coração, ela foi segurada… por um cara mascarado. 

O tremer do meu corpo me fez perder a posse da adaga, e para finalizar, ele me chutou. Bati contra a árvore, as criaturas me cercaram. 

Elas eram bem grandes quando ficavam de pé. 

De novo, me encontrei incapaz, eles iriam me esfolar a qualquer hora. 

Uma saraiva de flechas verdes os fizeram recuar, e a mão da minha companheira estava estendida para mim.

— Temos problemas. Consegue lutar? 

Se ele era o cara, ou pelo menos tivesse alguma ligação com ele, eu precisava lutar. As criaturas fizeram um círculo que cobria qualquer possível rota de fuga que pudéssemos usar, o que, por algum motivo, levou um sorriso ao meu rosto. 

Todos eles tinham pelo menos dois metros quando ficavam de pé, suas garras arranhavam o metal. 

Coincidência… 

Eu estava estressado e queria reagir, mas tremia só de pensar em haver alguém por trás disso. 

Quem poderia controlar e evoluir monstros e mandá-los até mim? E por que eu? O erro desse imbecil, se ele existir, foi ter me provocado.

— Sabe… Lutar é tudo que eu mais quero — Peguei firme a mão da minha amiga e fiquei de pé, logo tomamos um a guarda do outro. — Ainda mais com o maluco aqui.

— Eles dois foram atrás do cara de máscara, ele fugiu com o material que precisávamos pegar. 

— Suponho que a horda ficou conosco. 

— Pensei que não tinha percebido. Posso usar minhas flechas de energia como espadas, assim a gente consegue alguma brecha e fugir desses Hiasters. — Os muitos Hiasters se aproximaram e riram, utilizando as quatro patas novamente. — Esses anormais pensam? Isso me assusta…

Cacele concentrou energia amarela em sua mão direita, mas segurei gentilmente o braço dela. 

— Você com suas flechas pode varrer eles sozinha, certo? 

— Sim, mas preciso de um atacante… Espera.

— Vou avançar até a minha adaga e lutar.

A primeira garra veio de cima. Rolei para frente, e o impacto do ataque dele no chão levantou terra para todo lado. 

Sem perder tempo, esquivei de uma bocada que quase levou minha perna esquerda, e em seguida pulei para o lado, evitando um ataque que vinha em minhas costas. 

A adaga estava a cinco passos de mim, e Cacele ainda estava manipulando o arco. Ela confiou em mim, estava tentando mesmo com os Hiasters em cima dela. 

Eu disse que ia ser o atacante, e eu serei. 

Um Hiaster veio me atacar frontalmente, suas garras afiadas estavam juntas, como se ele quisesse abrir um buraco em minha barriga. Corri para cima dele, apoiei minhas mãos sobre as longas garras e, com um mortal, atravessei a criatura por cima. 

O golpe dela perfurou o estômago do amigo, o que levou todas suas entranhas para o chão. O sangue jorrava para todo lado, e o olhar furioso dele me encontrou. 

Cara… ele era alto. 

Cacele tinha a roupa estava rasgada e estava com vários cortes pelo corpo e ofegante. 

Era agora. 

O Hiaster abriu os braços e tentou me dar o abraço da morte, mas…

Eu agachei. Um corte ecoou. 

O sangue cobriu o meu corpo. 

Sorri enquanto ouvia o enorme monstro cair atrás de mim após ter o estômago rasgado pela minha lâmina. Meu cabelo colou em minha testa pelo sangue, minha roupa ficou mais pesada e senti-me pisando em um lago raso. 

O frio no estômago, formigamento nas mãos, o tremer dos joelhos… Talvez eu tivesse ficado louco, pois, na mesma intensidade, uma calma habitou em mim, e o sorriso queria ficar no meu rosto. 

— O que foi? Estão acanhados? — falei calmamente, mantendo o meu tom baixo. 

A manada avançou furiosamente em minha direção. 

Perfeito, agora ela iria acabar com a raça deles, ninguém segurava a Cacele. 

Bloqueei a primeira garra que chegou até mim, desviei do segundo e, antes de ser acertado pelo terceiro, uma flecha estourou o seu corpo inteiro. 

O chão estava coberto por órgãos ainda pulsantes e um rio de sangue, anormal ou não eles iriam morrer. 

Aproveitando a brecha, cravei minha arma no pescoço de um deles e subi em sua cabeça. 

Mantive o duelo distante dela, enquanto era auxiliado por flechas muito poderosas. Esquivar dessas criaturas imensas pareceu natural, foquei os cortes em suas articulações, e quando eu ia levar um crítico ela me cobria. 

Me afastei, ofegante. Percebi que minha roupa também rasgou. Diversos cortes, leves e fundos, foram feitos no meu corpo. Mas, se comparasse com a cicatriz, eram irrelevantes. 

Restaram apenas três. 

Segurei a adaga e apontei a lâmina para fora.

Cacele se aproximou e acertou três flechas no grandão. O segundo ia atacá-la pelas costas, mas ela cobriu seu braço com aura amarela clara e o repeliu sem tocá-lo

O que era isso? 

Cacela usou um movimento circular e arrancou a cabeça dos dois com o próprio braço coberto por magia. 

— De queixo caído por algo simples assim, fofinho? Pensei que queria caçar um minotauro.

Um estrondo veio do norte da floresta. Nos olhamos e acenamos com a cabeça. Corremos por alguns arbustos e flores verdes fluorescentes. Não havia momento com mais tensão do que agora. 

Ele tentou me matar? O que eu poderia fazer? Não tive a menor chance.

Até que chegamos em uma pequena clareira, onde Cirlan e Kaled estavam de frente para o homem de máscara.

Meus joelhos foram ao chão. 

Eu cansei? Logo agora!? 

— Nossa, Sem Magia! Eu ouvi falar de você. 

— Vocês estão bem? — Kaled falou, sua testa sangrava…

— Eu poderia perguntar o mesmo — respondeu Cacele, tensa.

— Sabemos que você não quer os cristais, mas iremos te levar a guilda, procurado número três — comentou o líder. 

Pela reação dos dois, parecia que eles também não sabiam disso. 

— Depois vocês levam a minha cabeça, eu quero falar com aquele merda ali, o que não tem poder — Ele apontou para mim.

Definitivamente não era o que me atacou antes, mas quem se importa?

— Maldito — Tomei a poção de Gerould e corri.

Eu me senti muito mais leve. Minha visão foi tomada por uma tonalidade mais branca, o meu corpo havia sido coberto pela mana e eu senti que possuía mais força. 

Uma força emprestada

Eu os ouvi gritar, mas ignorei. Os olhos vermelhos se arregalaram. Ele ergueu os braços para usar magia, mas era tarde demais, eu já estava perto o suficiente para atingi-lo. 

Todo o ódio, a angústia e a dor seriam descontados. Mantive meu olhar no dele, ergui meu braço, que, apesar de leve, parecia muito mais pesado. 

Firmei meu pé direito no chão e lancei meu braço esquerdo na direção daquela maldita máscara. 

Uma batida mais forte no meu peito. Meu coração apertou. Eu caí de joelho, e toda a magia do meu corpo se esvaiu, como se o ambiente fosse o seu verdadeiro dono. 

Gemi de dor, levei minhas mão para a região que me agonizava e meu corpo inteiro cedeu. Sangue escorreu da minha boca, e logo um vômito surgiu. 

Um zumbido ia e vinha, enquanto eu tentava me recompor e olhava pras botas pretas do inimigo. 

— Lumi! — Cirlan gritou, desesperado. 

Levantei a adaga, mas ele a segurou, a cobriu com uma aura negra e quebrou uma parte dela, a jogando no chão em seguida. 

— Não! — Era um presente! Droga!

Ele apertou o meu pescoço, me levantou até o meus pés saírem do chão. Tentáculos negros saíram de suas costas e miraram em meu peito.

— Eu posso deixar ele aqui, sem uma ou duas pernas, e vocês permitem à minha fuga.

— Você não vai fazer mal a ele — Cacele exclamou e apontou o arco. 

Um tentáculo rasgou um pedaço do meu braço. Eu gritei de agonia, me movimentei para tentar esquecer a dor, mas me toquei que era impossível quando as lágrimas tomaram conta da minha visão. 

O olhar de Cacele carregou arrependimento. Eles estavam discutindo, entretanto eu podia ouvir o mínimo. 

Esses tentáculos… Uma espécie de magia? 

Tentei imaginar diversos cenários bons para esquecer o que aconteceu, e uma ideia surgiu com a minha falha.

Chutei o seu pescoço no gogó. 

Os tentáculos desapareceram, e ele se ajoelhou com a mão na garganta e buscou o ar desesperadamente. Vi um borrão chegar e perfurar a sua barriga, levando parte das suas entranhas, logo depois Cirlan utilizou a lança mágica para pendurá-lo no ar. 

Kaled foi menos paciente. Ele arrancou a perna do mascarado com um corte. Vê-lo pedir perdão e gritar sem parar foi satisfatório. O sangue escorria, o osso podia ser visto. 

Kaled pulou e o partiu em dois. Seu corpo se abriu, cada parte caiu para um lado, enquanto alguns ossos e órgãos ficaram presos na lança de Cirlan; o coração bombeava na ponta de sua arma, levando toda a atenção dos restos do corpo sob a luz da lua.

Que morte do caralho.

Pensei que tinha acabado, que tudo estava bem, até uma coisa do tamanho da árvore aparecer. 

Eu vi em livros, em pesadelos, mas nunca achei que veria um pessoalmente. 

Cirlan, Kaled e Cacele tiveram péssimas feições, como se o horror tivesse dominado a mente deles. 

Ele era grande, tinha a pele cinza cheia de cortes cicatrizados, dentes afiados, um único olho semelhante ao de um dragão, garras afiadas e curvadas… 

Eu tremi identicamente ao dia do minotauro. 

Não, ele era pior. 

O ar estava com cheiro de matança, mais do que os Hiasters e o mascarado. Ele sorriu, seu olho cravou-se em mim. A tremedeira aumentou a ponto de eu permanecer estático. 

Um raio amarelo esbarrou em seu abdômen. 

Era a flecha da Cacele. 

Mas quando a fumaça sumiu, nenhum dano foi feito. 

Kaled cobriu os punhos e as pernas com uma armadura mágica cinza, e Cacele imbuia cada flecha com uma quantidade absurda de magia. 

Flechas, socos, fogo. Nada podia penetrar aquela pele. O monstro ergueu o braço lentamente, e todos sabíamos em quem ele iria mirar. 

Bloquear isso era impossível. 

Observei o braço dele subir, a aura vermelha se formou em seu bíceps. 

Nada mudou, não é? 

Novamente eu dependia de outros para viver. Eu seria um peso se permanecesse aqui.

A aura vermelha subiu em seu antebraço como uma serpente. Ele moveu o braço como a espada cortante na mão de um guerreiro, e uma espécie de corte vermelho claro veio em minha direção. 

Meu coração bateu tão forte, e a adrenalina era tanta, que meus olhos se recusaram a fechar. Meu líder entrou na minha frente, seu livro vermelho estava brilhando. 

Um corte. Sangue. Fumaça. 

O braço do meu líder foi aos céus. Ele estancou o sangramento com um feitiço verde. Cacele e Kaled gritavam incessantemente, mas de repente o silêncio veio até mim. 

Cirlan virou as costas para o monstro, se ajoelhou e segurou a minha mão. 

— Não é hora de chorar, coletor, você está em missão — Seu tom era calmo, tranquilizador. — Você sabe que ele te quer, e por isso eu ordeno que você corra e chame ajuda. 

— Não, Cirlan, por favor — falei, mas o choro era insegurável. — Eu não quero que você morra por mim, me deixe lutar.

— Para quem quer desafiar um minotauro, você é um chorão.

Ele segurou o meu ombro e me virou de costas. Senti um gosto amargo e horrível na boca, enquanto o pesar no meu peito se tornava cada vez mais letal. 

A gota da água para abalar toda minha estrutura psicológica foram suas últimas palavras, e logo me empurrou com um toque de magia. 

— Eu acredito em você.



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