Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 11: O início do pesadelo

Minhas mãos… Inteiras? Sem sangue? 

Eu estava em uma espécie de lago, tudo o que eu podia ver era o meu reflexo na superfície. 

Eu morri? Por que meu corpo ainda tinha cortes? 

Ainda sangrava no peitoral, com uma abertura enorme. Iria deixar cicatriz. Uma brisa confrontou as minhas costas, virei-me calmo para olhar, mas o horizonte permanecia inalterado, e uma forte luz surgiu. 

Eu cobri a frente dos meus olhos com um braço, o clarão era semelhante a luz do sol, porém seu tom amarelado logo se tornou azul e ardeu em chamas brancas. Eu consegui ver um único reflexo por baixo de toda a grandiosidade de tal poder… 

Parecia uma mulher.

 

Abri os olhos, minha respiração estava acelerada. Desta vez, meu corpo inteiro doía. Eu estava enfaixado da ponta dos pés até o pescoço, e, pelo que pude sentir, até o meu rosto foi ferido o suficiente para isso. 

Um sonho… Era incerto dizer, mas aquela voz era real, eu podia ouvir ela claramente

Um baque na janela tirou-me dos meus pensamentos e veio um arrepio. A janela era de madeira, parecia que tinha sido reformada para ventos fortes. 

Esse lugar era idêntico ao quarto hospitalar que fiquei da última vez… 

Impossível. 

— Você de novo. Sim, eu sei — disse a doutora que cuidou de mim da outra vez, e a mesma que entreguei as benditas frutas. 

— O que aconteceu? Preciso ir ver os meus pais- — Uma pontada atingiu minhas costelas quando tentei me levantar, a ponto tirar um gemido árduo. Porém, voltar a mesma posição parecia mais desconfortável. 

Merda. 

— Eu só recebi você aqui quase morto e fiz o meu trabalho. Arvid trouxe você aqui.

— Arvid?

— Ele é um Guarda Real. Você dormiu por três dias — Mentira. Eu vi a beldade da Ellie já fazia tempo. — e vai ficar mais quatro. Aliás, beba todo esse suco verde aí. 

— Espera, eu preciso ir treinar. Quatro dias é muita coisa! — Falar em um tom que fosse maior que um sussurro trouxe uma dor agonizante para a minha garganta.

— Você vai repousar e fazer bons usos das frutas que trouxe — disse ela antes de sair, como se tivesse sido uma ordem definitiva. 

Na terceira tentativa de pegar o copo, finalmente percebi que meu braço queria tirar férias e desisti. 

Espera, a fruta era azul. Então por que o suco era verde? 

Bem, eu com certeza tinha muito o que pensar, apesar disso ter trazido à tona a minha curiosidade. 

A ausência de um livro aqui me trouxe pensamentos misturados, como se a minha mente quisesse ter posto isso na mesa há tempos, e só agora teve a chance — ou a peça certa — para juntar tudo.

Me lembrei aos poucos do que ocorreu. 

Aquele cara surgiu quando eu estava voltando do hospital e me arregaçou. Sinceramente, eu sabia que era fraco para enfrentar ele ou qualquer um; e isso era o mais aceitável. 

O som da água e do balançar da janela me trouxeram um arrepio tenso e um pesar no coração, mas logo me acalmei com um longo suspirar. 

Era difícil compreender. 

Por que diabos essas coisas aconteceram comigo? 

Um cara normal, sem nem mesmo usar magia, ser humilhado toda vez que quer sair em missão. Foi demais até para mim engolir. 

— Boa noite, meu menino — Ouvi uma voz familiar da porta, quando virei o rosto, pude ver a mãe de Bruno entrar. Logo atrás dela seguia seu filho, com o olho direito enfaixado. Ele estava vestido com um casaco e uma calça pretos, mas suas mãos também estavam cobertas por ataduras. 

O que houve com ele?

— Tia Alyssa — falei em um tom desfavorável para mim. Ela parecia tão poderosa como de costume, com seu manto de rainha vermelho detalhado com bordas douradas. Seus olhos azuis na tonalidade da superfície de um lago cristalino se destacavam ao lado de suas mechas do adorável cabelo castanho claro. 

Meu estado atual me impediu de lhes dar um abraço apertado, então me contive com um aperto de mão. Fazia tempos desde que eu a vi pela última vez. 

Ser rainha do reino sete se tornou uma tarefa que exigia tempo demais, até mesmo Bruno ficou sem vê-la por um período.  

— Precisei passar aqui, Bruno disse que você tem se metido em muita coisa. Pode me explicar isso agora — Ela zangada me assustava tanto quanto a minha mãe. 

Levei um tempo para contar todas as coincidências que passei, ela ouviu com clareza e sentou-se ao meu lado. Bruno permaneceu quieto no canto. Parecia que o “fardo” ficou mais leve após isso, me senti menos triste com minha situação de indefeso e sem magia.

— O que aconteceu naquele dia foi um ataque. Essas atividades trouxeram a atenção do Reino de Enguerrand desde o incidente do minotauro. — Ela suspirou. — E como você, curiosamente, esteve em todos, estarei deixando dois dos meus guardas para te defender, tá bom? Quero também que evite encrenca.

Eu sempre evito!

— Entendido… — respondi, relutante. 

— Gerould Alb'en e Ataz Oligron já estão por aqui, qualquer coisa é só gritar — Acenei com a cabeça em resposta. Ela deu um beijo em minha testa. — Eu preciso ir agora.

— Aqui — disse Bruno ao me dar um livro. Cansaço fluía em sua voz. — Vai gostar. 

Abri a boca para responder, mas ele virou as costas e saiu junto com Alyssa. A visita deles tornou o ambiente mais pacífico. Senti falta dos momentos que tínhamos antes, me perguntei várias vezes como tudo foi mudar tão repentinamente. 

Na capa estava escrito “Contos de Lu’ir”. O clima de frio e chuva estava maravilhoso para ler, era uma pena que meus braços estivessem em repouso total.

— Lumi. Kai — Um tremor chegou ao meu corpo, essa voz trouxe, na mesma intensidade, terror e proteção. 

Um homem bem alto passou pela porta, seus passos eram desprovidos de som. Seu olho esquerdo era dominado pela tonalidade de um verde claro, e o direito por um azul escuro e leves linhas claras. 

Ele estava vestindo um terno preto com uma gravata vermelha, seu cabelo castanho e verde caía sobre o seu pescoço. 

Ele se aproximou da cama, enquanto me lançava um olhar pacífico. Fiquei sem um modo certo de reagir, só de olhar para ele eu podia sentir sua força. 

Ele ergueu uma capa preta em forma de espada — pequena — e colocou sobre a minha mesa. A capa tinha alguns pequenos detalhes quase invisíveis, como algumas serpentes e pássaros raros duelando em uma espécie de ringue em cima da lava. 

Olhei para ele e arqueei uma sobrancelha, ele apenas sinalizou para que eu olhasse novamente para a capa. Depois de poucos minutos, admiti para mim mesmo que já tinha visto tudo que era para ver. 

— É apenas uma adaga de ferro, por que a encarou por tanto tempo? — disse ele, seu tom brincalhão, apesar da voz grossa.

— Você deu a entender isso — resmunguei. 

— De qualquer forma, preciso que mantenha isso entre nós dois. Essa adaga é uma prevenção… Um meio de te ajudar, digamos assim — Ele ergueu a mão e juntou o dedo médio com o polegar. — E isso… é só uma prevenção.

Ele estalou os dedos e uma corrente de ar se formou no seu antebraço, logo tomou a forma de tornado e girou por todo o seu corpo. 

O ar estava infundido com magia a um ponto que eu jamais vira antes, tamanho controle e maestria elementar eram incomum em Karin. 

O ar começou a circular e cobriu uma área maior ao redor dele, e rapidamente pairou sobre as paredes, o teto e o chão desta sala. Fiquei maravilhado em como a mana podia ser bem aproveitada, me perguntei se eu também seria capaz disso. 

Cabeça para frente, Lumi, só usa magia quem foge da porrada. 

Se bem que aquele cara de capuz usou os dois. 

O homem tirou uma pedra verde escuro, que tinha uma ou duas luzes fosforescentes em suas pontas.

— Mais um presente: esse se chama Petrom. Pela sua cara, imagino que desconheça. Bem, ela basicamente serve para você chamar ajuda caso precise, o que, no seu caso, acontece bastante. — Abri a boca para retrucar, mas pensei duas vezes. — Você é um menino complicado, Kai, espero que já tenha percebido isso. 

— Espera, por que está me ajudando? Quem é você afinal? E como uma pedra pode chamar ajuda? E pra que essa parede de ar? 

— Infelizmente eu preciso esconder algumas informações por hora. Inclusive, essa conversa também precisa ser mantida em segredo. Sei que parece muito confuso pra você agora, mas peço também para que desconfie de todos, não é mais seguro aqui.

— Eu nem ao menos conheço você, é contraditório com o que você diz! E eu quase fui morto recentemente, acha que surgir assim do nada para me alertar foi uma boa ideia? E por que aqui não seria seguro? É Karin! 

— Veja por si mesmo. Todos os fenômenos que vocês chamam de “incomum” são categorizados como Anormalidades — Pude sentir a empolgação em sua voz. — E me responda com sinceridade, ok? Em quantas dessas anormalidades você esteve presente?

Minha mente ficou cada vez mais confusa conforme avançávamos na conversa. Sempre que eu buscava uma conclusão, uma resposta, eu caía na mesma pergunta. 

O sujeito disse que se chamava Arvid Milo. Era o homem que me encontrou.

Ele se apresentou como um Investigador Real, e que por livre e espontânea vontade resolveu aderir aos casos de Karin.

— Ok, o fato de eu estar presente na manada de Hoasters, no Goblin, no urso de chamas, no minotauro e no cara de capuz verde me faz querer chorar por si só, e você me diz que tem algo maior nisso tudo? — falei, incrédulo. Eu mal fui capaz de sobreviver até agora. 

— Admito que pensei bastante sobre contar ou não para você, mas seria injusto. Prefiro que você veja essas imagens enquanto eu falo, assim entenderá a gravidade da possível situação. 

Gesticulei com a cabeça. Ele pegou algumas folhas de dentro do seu terno e colocou sobre as minhas — imóveis — pernas. Três ficaram em destaque, e meu coração já queria sair pela boca. 

O primeiro usava uma máscara com olhos pintados, e eu só gelei. Essa merda era bizarra. Embaixo de sua foto estava escrito: “Procurado: vivo ou morto. Recompensa: Mil moedas de prata”. 

Fechei o olho direito pelo pulsar que me atingiu e olhei para Arvid, que manteve a feição séria desta vez.

— Que porra é essa? 

— Acredito que essa organização tenha tentado te matar, eles são chamados de Ritualistas. Ficaram sem atividade por dois anos, mas parece que voltaram desafiando os dez reinos após invadirem sua cidade.

— Arvid, eu não estou acompanhando. 

— Se eles tentaram te matar, seja de forma direta ou indireta, você precisa ficar atento. Não tenho a mínima ideia do por quê, mas tudo indica que continuarão tentando até conseguirem — Eu… eu chorei.

Seria difícil dizer se era raiva ou tristeza, as emoções pareciam reprimidas, como se sair agora apenas piorasse o meu estado. 

Ele estava falando a verdade, nada daquilo que aconteceu foi normal. 

— Sei que é muito para processar, para qualquer um seria. Só tenho mais três pontos a tratar. 

— Continua. É difícil piorar depois disso.

— O terceiro papel é o que você deve tomar mais cuidados — Era a imagem de um criminoso vestindo uma máscara laranja com dois buracos para os olhos vermelhos semelhante aos de serpentes. De cara, ao olhar o que estava escrito, percebi a diferença. 

“Só morto. Obscuro. Recompensa: Mil moedas de ouro”.

— Eles não agem a anos, porém são os que mais causaram problemas. Até sabermos o porquê de você ser um alvo, deixarei a Pétrom. Lembre-se, desconfie de todos, tem pessoas que com seus próprios poderes rivalizam com um minotauro no auge de sua vida. — engoli seco ao imaginar alguém enfrentando aquela coisa. 

Arvid se virou e foi em direção a porta.

— Espere, e o terceiro ponto? 

Eu já estava lascado, então mais uma informação era tranquila. 

— No mínimo você é, ou pode se tornar, uma ameaça. Caso contrário, por que tentaram te matar? Assim como os reinos possuem o sistema de recompensa, os vilões também têm o deles. 

A parede de ar se desfez, e um papel rapidamente flutuou para o meu colo. Arvid saiu com um sorriso no rosto, isso me fez duvidar de sua sanidade. Quando olhei o papel, eu também ri — se foi de nervoso ou de medo, já era indiferente. 

— Lumi Kai. Só morto. Recompensa: dez moedas de bronze.  

Minha garganta já estava seca, mas os meus olhos fixaram-se na minha imagem da capa. Era uma foto minha… de dentro da minha casa.



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