Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 12: A necessidade de um avanço

Afundei outro soco no estômago de madeira. Continuei batendo até que minhas mãos ficassem vermelhas, até que meus punhos começassem a arder. 

Quando dei dois passos para trás, percebi que me faltava fôlego para manter esse ritmo, e que a raiva continuava ativa no meu peito. 

Puxei a adaga de ferro de minha cintura e cravei no peito do boneco, só então percebi meus lábios curvados para baixo e meus olhos, rígidos. 

— Jovem, descontar sua raiva em um boneco de madeira pode ser pouco eficaz. Que tal deixarmos o duelo um pouco menos desigual? — disse Gerould, o guarda de cabelo marrom alaranjado com mechas brancas e barba grisalha deixado por Alyssa.

Ele estava vestindo uma capa marrom, tinha dois cajados em sua cintura e uma poção azul fosforescente perto de seu peito. A escala de força dos reinos ainda me confundia, mas achei que, se eu enumerasse, ele era nível três… 

A brisa leve bateu sobre meu cabelo, que balançou pelo tamanho. Perdi a noção de quanto tempo se passou desde o ocorrido do minotauro, acho que era uns dois meses atrás, mas meu coração e minha mente se lembravam como se fosse ontem. 

— O garoto deve gostar da sua mágica, Gerould. — pronunciou Ataz, o guarda mais jovem. Ele vestia uma armadura azul com diversos detalhes dourados, símbolos os quais vi em livros, e tinha longos cabelos cor de trigo; o que destacava seus olhos azuis claro. 

— Faça como quiser. 

Gerould arqueou uma sobrancelha ao me olhar e resmungou algo sobre meu palavreado com os mais velhos. Ele ergueu seu dedo indicador e uma esfera de mana se formou flutuando em sua frente. 

Talvez fosse pelo meu estado psicológico atual, mas isso passou longe de me impressionar. Desviei o olhar enquanto ele direcionava a esfera de magia para o boneco e apreciei os ventos que sacudiam as árvores. 

Usar o espaço de terra para treinar foi uma ideia boa no início, mas, por ser um pouco mais de cinquenta metros de casa, eu precisava de “segurança pessoal”. 

Na maior parte do tempo eu era escoltado. Era legal, eu me sentia realmente seguro, mas era um saco nunca estar sozinho.

Uma sensação de perigo alertou a minha mente e eu cruzei os braços instintivamente. 

O punho de madeira colidiu contra meu antebraço da frente, o impacto fez com que meus pés arrastassem na terra e eu caísse de bunda no chão. 

Como assim, caralho!?

Gerould estava com um sorriso confiante no rosto enquanto olhava para sua criação, e Ataz manteve seu olhar — cauteloso — em mim.

— Meu feitiço de manipulação foi concluído com êxito. Os seus treinos devem gerar mais resultados a partir de agora — Gerould me ajudou a ficar de pé, e seu boneco entrou em pose de luta.

— Vocês já tiveram experiência com anormalidades? — perguntei, meu olhar sem vida focado no boneco.

Silêncio

A pergunta pareceu ter tornado o clima mais pesado, suas expressões de confiança ficaram sombrias. Eles se entreolharam e um suspiro de derrota escapou dos dois. 

— Algumas, mas nada que uma criança mereça ouvir — respondeu Gerould, seu tom áspero. 

— Como já devem saber, sou um coletor incapaz de usar magia. Não tem nenhuma dica de como eu posso continuar o meu trabalho sem quase morrer toda vez?

— Combate. Se sua única maneira de lutar é essa, faça valer a mais de cem por cento. É verdade que sem a magia você está em desvantagem em relação aos outros, então, como desistir está longe do seu olhar, foque em descer a mão — Ataz disse, dando uma piscadela enquanto batia o punho cerrado na outra mão aberta.

— Nós podemos ajudar nisso. Sofrer com esses bonecos pode te levar longe. É um método eficaz até para alguém no nível Fulgor.

Bonecos? 

Quatro outros surgiram atrás de Gerould. O estado deles era deplorável, mas o toque de magia os manteve de pé e ativos. 

Em parte me assustou, me veio à mente eu ter que descer para beber água e esbarrar com um deles andando pela casa. 

Iniciei o duelo corpo a corpo com o boneco número um, tive que me limitar a ficar na defensiva. 

Como sempre. 

Levantei a perna para acertá-lo no queixo e escorreguei, marcando o chão com o meu rosto. Ouvi risadas enquanto cuspia terra, e fui com agressividade para cima desse desgraçado. 

Passei aquela tarde comendo terra e apanhando, um boneco de madeira era o suficiente para me dar cabo. Nem precisava dizer que, quando Gerould colocou os quatro, eu fui espancado. 

Entendi a lição que ele queria passar, só que eu avançava de maneira vagarosa, diferente dos usuários que possuem a magia e podem ir além do limite do físico humano. 

Minha habilidade em manusear a adaga avançou o mínimo, ainda distante de ser útil em uma luta com um ser inorgânico. 



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Cada passo me trazia um flash de lembrança, e a dor no meu peito latejava em constância. Se isso continuasse, eu precisaria visitar o hospital de novo. As pessoas, as luzes, os sons, tudo passava por mim como se fossem míseros detalhes da minha caminhada. 

Eu podia sentir meus punhos se apertarem com frequência, meu lábio inferior doía sem eu ao menos notar que estava o mordendo. 

Era difícil impedir o ódio ardente, cada célula minha queria reagir. Aquele encapuzado… 

Fosse dos Ritualista, Obscuros ou sei lá o que, ele iria pagar. 

Eu queria que todos pagassem. Mas como?

Ataz e Gerould disseram que era bom ter uma armadura de qualidade que permitisse livre movimentação. Dado meu orçamento, eu pegaria algo básico e que a magia estivesse ausente. 

Entrei na mesma loja que comprei a espada de bambu e o escudo de madeira e, depois que um arrepio percorreu a minha espinha, observei com atenção cada equipamento; afinal, o último foi destroçado por um maníaco. 

Estranho, da última vez eu só tinha visto armas. 

Peguei uma ombreira de couro e uma joelheira preta de pano fino. Era tudo que eu podia pagar. 

Caramba, eu só valia dez moedas de bronze, aquele psicopata devia estar sem um tostão para vir atrás de mim. 

Quando retornei à estrada, já estava de noite. A julgar pelo meu histórico, eu devia ficar próximo do aglomerado de pessoas. A cidade estava reluzente, com diversas luzes e enfeites espalhados e com mais pessoas que o comum. 

Os guardas locais estavam melhor equipados, e alguns tinham o símbolo de lua vermelha estampada na… Soldados do Reino Dez. 

Tia Alyssa havia comentado sobre. Talvez aqueles sucos verdes feitos de uma fruta azul tenham me feito esquecer. 

Estralei minhas costas e sentei na beira do chafariz, e eu podia jurar que uma criança tinha me chamado de velhote. 

Murmúrios vinham de todas as direções, mas uma conversa em específico chamou a minha atenção. Me surpreendi com a minha capacidade de ouvi-los com clareza mesmo nessa situação.

— O Rei Enguerrand está aqui? Isso seria histórico para Karin. Eu mesmo servi no décimo reino por seis meses e nunca o vi, seria esplêndido se isso acontecesse nessa cidade!

— Estou dizendo, apenas aguarde. Depois dos jornais espalharem as anormalidades pelo mundo todo, era impossível que ele não viesse, seja por fama ou para proteger o povo. 

— Só fico com pena do menino, o coitado nem mesmo é capaz de ser alguém.

Eu cerrei o punho, mas sabia. Se eu tentasse qualquer coisa agora, perderia muito mais que a dignidade. Fora que eles eram Sombras e eu, nulo. 

— Distraído por aqui? — A voz feminina familiar me tirou do transe, um conforto me atingiu quando olhei para o lado e vi o rosto da Ellie. Seu olhar, dessa vez, carregava seriedade, eu podia sentir sua energia mais sombria, assustadora…

— Sim, um pouco — Só agora que percebi o quão cansada minha voz estava, mas essa chance eu precisava segurar. — Eu realmente preciso da sua ajuda. 

Ela gesticulou com a cabeça e começou a andar, e eu apenas a segui. Ela usava uma calça jeans escura e uma camisa de manga comprida preta, seus cabelos loiros estavam amarrados em um lindo coque, deixando apenas algumas mechas caírem — beldade, perfeita

Olhei disfarçadamente para o meu visual: Um casaco vermelho, uma calça cinza e com certeza um cabelo esquecido. Senti ele chegar a metade da minha testa, um pente estaria como prioridade na minha lista. 

Passei a mão a fim de jogar o pouco que eu tinha para trás e continuei andando. 

Estávamos andando na trilha do pequeno morro, os moradores de Karin a chamam de Trilha dos Sonhos. Eu desconheço o porquê exato, mas soube que o céu podia ser visto com toda sua magnitude do topo. 

Fiquei em silêncio durante a caminhada, o som da multidão ficava menor à medida em que nós subíamos, e as árvores aos poucos tampavam a visão de baixo. 

Eu estava quebrando a regra imposta por Gerould. Eu sabia que era para minha própria segurança, mas eu queria aproveitar. 

Eu merecia

Ellie poderia facilmente me matar, então me afastar da sociedade seria a cartada perfeita para me silenciar de vez. 

Engoli seco enquanto imaginava tal atrocidade. Parei de andar quando percebi que meu olhar havia descido de suas costas para o seu traseiro. 

Minhas bochechas queimaram na hora e me senti endurecer, mas me abstive de tais sensações quando desviei o olhar. 

Ellie virou para mim, seu olhar sereno penetrando minha alma. Meu coração disparou. Ela virou para o céu, e realmente era uma vista maravilhosa. 

A cidade inteira podia ser vista, diversas cores inundavam as ruas, o pequeno castelo da guilda com seus orbes mágicos flutuantes, a água do chafariz alcançando incríveis alturas, a grande muralha, os portões, Ellie na frente de tudo… 

A névoa densa escura ficava com as montanhas distantes e a trilha caminho afora. 

Um sorriso alcançou o meu rosto.

Ellie colocou sua bolsa no chão, próxima ao banco branco, e estalou os punhos. Coloquei meu equipamento de lado e fiquei de frente para ela. 

Eu desejava, ansiava, evitar enfrentá-la, mas quando ela se posicionou eu perdi as esperanças. 

Fiz a postura que eu sabia enquanto a encarava. Me distraí por um momento com ela, uma beldade, e o céu estrelado formando um cenário perfeito. 

Que vista. 

— Ataque. Me mostre o que sabe fazer.

Senti minhas pernas vacilarem naquela hora, aquilo estava longe de ser um pedido — era uma ordem. Seu tom calmo e seu olhar penetrante passavam um tipo de autoridade que eu teria medo de desafiar. 

Dei um passo rápido para frente e arremessei meu punho esquerdo como se nada mais importasse. Ela segurou meu antebraço com força e eu perdi o contato com chão, logo ela fez pressão para baixo e eu caí com tudo. 

Foi como dar um mortal, parecia que Ellie havia usado meu próprio peso contra mim. 

— Táticas. Pense. Atacar cegamente o torna previsível — Poucas palavras, entretanto eu havia entendido o recado. 

Levantei, e desta vez lancei uma série de socos na direção dela. Ela rebateu cada um com extrema delicadeza, até mesmo o chute frontal que tentei acertar foi ineficaz contra sua técnica. 

Ela se aproximou com um passo rápido e me deu três socos na barriga.

Tentei contragolpear, aproveitar que ele estava perto, mas acertei o vento. Ela surgiu atrás de mim e chutou as minhas pernas, me fazendo cair de joelhos com as mãos no chão. 

Apoiei totalmente nos meus braços e tentei chutá-la com as duas pernas. Ela se esquivou e afundou o tênis em meu estômago antes mesmo de eu tocar o chão, e eu rolei como uma batata.

Perdi a conta de quantas vezes fui ao chão, Ellie era muito boa e seus movimentos muito precisos. Independente da situação, ou da minha tática de acertá-la, ela se manteve séria e calma. 

Seria difícil dizer se havia acontecido algo, eu conhecia pouco a Beldade, mas da última vez ela estava mais alegre. 

João e Bruno sempre falam dela como a melhor, a mais assustadora e a mais complicada de se aproximar, fosse pela família renomada ou pelo caráter. 

Com pouco tempo que passei com ela, eu podia dizer que tinha muito mais ali que só talento mágico. 

Ela prendeu o meu braço com o dela, me apoiou sobre suas costas e me lançou no chão. Seu joelho atingiu a minha barriga antes que eu pudesse levantar, então tentei socá-la. 

Ela segurou meu punho e prendeu meu braço contra o chão. Ellie sentou na minha barriga e fez o mesmo com o outro braço, seu rosto se aproximou demais do meu. 

Tentei sair, mas ela não permitiu. 

Seu olhar sereno ficou mais suave quando nossos lábios se aproximaram. Meu coração estava saltando a essa altura, aqueles olhos verdes estavam em mim com intenções para mais que um simples treino… 

Senti seu respirar, o calor do seu corpo. Ela afrouxou a pegada e ficou de pé, logo me deu a mão para me ajudar a levantar. 

Ela fez de propósito. Que posição tentadora. Eu queria aquela boca na minha.

Ellie pegou o seu equipamento como se nada tivesse acontecido e se aproximou de mim. 

— Mantenha o ritmo de treino. 

— Irei tentar — Era a minha única escolha se eu quisesse viver. — Como conseguiu alcançar seu nível? Você é muito boa e forte. A técnica pode mesmo fazer tanto assim?

— Se tiver um grande objetivo, você já deve ter a resposta de como alcancei. Sobre a técnica, vai descobrir em breve. Eu espero — Ela deu uma leve risada. — Tchau, Lumi. 

Ela apenas tomou seu rumo, deixando-me no silêncio e no vazio da trilha.

— Tchau, Ellie…



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