Volume 1
Capítulo 9: A Era dos Fracassados, Parte 3
O silêncio prevalecia sobre qualquer ruído na região. Imobilizado, acima do palco, Kazo foi colocado em uma situação crítica. A luta havia sido completamente dominada pelo seu adversário, que não deixava espaço nem para o menor movimento defensivo. O Ranque A cedeu à determinação do Escultor de Ranque D.
Diante de um duelo unilateral, a plateia permaneceu quieta. Não era o momento para liberar o entusiasmo acumulado. Nenhuma palavra era dita, mas o público não demonstrava sinais de preocupação, como se aguardassem pacientemente pela hora de exercer o seu papel.
— O que está acontecendo? Tem algo de errado com esse evento. — Roccan questionou a situação, que fugira do seu senso comum.
— Isso é o que o seu instinto lhe diz? — Falco o indagou.
— Eu posso sentir. Para onde você me trouxe?
— Você ainda não entendeu, pirralho. Neste lugar, a sua intuição não serve de nada. Estamos na base dos Escultores, não na sua casa.
A luta parecia ter parado no tempo. Os competidores continuaram na mesma posição, como se estátuas estivessem sendo produzidas a partir de suas poses. Minutos se passavam um após o outro, no entanto, a mesma imagem permaneceu nos olhos dos espectadores.
Kazo utilizava toda a sua força física para se libertar do adversário, porém, não obtinha sucesso. A monotonia do palco se assemelhava à uma fotografia emoldurada, inalterada com a passagem do tempo.
— Já chega!! Essa luta acabou! O que estamos esperando? — Roccan perdera a paciência.
Sorrisos marcaram o rosto de todos na plateia. Da mesma forma que um espelho reflete uma figura, a reação de cada torcedor parecia reproduzir as expressões ao seu redor. Todos os habitantes se comportavam da mesma maneira, se tratando apenas de mais um dia na resistência. Falco sentia que devia explicações ao garoto.
— Nos Jogos da Folia, não é apenas o combatente que decide o confronto. Uma Convocação é vencida por aquele que luta ao lado da plateia.
— Qual o sentido de toda essa baboseira? Essa disputa já deveria ter sido encerrada.
— Não cabe a você decidir isso. Somente os gritos da torcida podem declarar um vencedor.
— Estão todos em silêncio. Isso significa que…
— A luta ainda não pode acabar.
Tremores chacoalharam o palco principal. A agitação do piso tornava impossível para qualquer humano permanecer de pé, fazendo com que o competidor dominante perdesse o equilíbrio.
Como se o fenômeno reproduzisse a batida de tambores, o chão de mármore tremia, mudando o ritmo do embate através de uma virada decisiva. Kazo enfim se libertou da pressão exercida sobre o seu corpo. Berros subsequentes reestabeleceram os ânimos da competição fervorosa. O público clamava por mais diversão.
— Levante, Kazo!!
— É a sua vez de ditar as coisas!! Coloque esse verme no lugar dele!
— Avance!!
— Acabe com isso!!!
— Vamos, Kazo!!
Cercado por uma energia contagiante, o sujeito exaltado voltou a ficar de pé. O Ranque A encarou o oponente desequilibrado, levando a competição para um rumo inevitável. Holofotes destacaram aqueles que passaram a vibrar com a vulnerabilidade do Escultor de menor classificação, ansiando por mais uma vitória da vogal absoluta.
— Esse evento é desprezível — afirmou Roccan, rangendo os dentes em uma demonstração de ódio.
— Nos Jogos da Folia, o vencedor não é o mais forte, muito menos o mais esforçado. O verdadeiro merecedor é o responsável por trazer o entretenimento que o público pede. Este é o real propósito de uma Convocação — informou Falco.
— Eu deveria ter imaginado que seria algo assim. Agora que acabou, estou indo embora.
— Pare de fazer suposições. Apenas aproveite o show.
Uma chuva molhou cada centímetro do palco principal, mesmo que toda a arena estivesse coberta pelo teto da caverna. A água possuía origem sobrenatural. A postura do competidor menosprezado se estabilizou novamente, à medida que gotas geladas escorreram pelo seu corpo, lhe despertando para o confronto derradeiro. Com a letra “D” estampada em seu peito, o sujeito enfrentava o favoritismo ao seu redor, honrando o esquadrão que manchou o seu nome.
Um dilúvio caiu sobre a cabeça de Kazo, banhando-o com o líquido que prometia mudar o fluxo da luta. Ambos os competidores tiraram um objeto de seus bolsos: relíquias elevaram o nível do confronto.
— Relíquias! — Os lábios de Roccan formaram um sorriso repentino, esquecendo momentaneamente da sua frustração.
— Isso é algum tipo de vício?
A batalha continuou, seguindo o frenesi da torcida apaixonada. Tremores almejavam derrubar o Escultor de menor Ranque, constantemente ameaçado pelos poderes de Kazo. Em contrapartida, o rosto favorito da plateia era alvejado pela intensa queda d’água, sendo pressionado pelo peso da chuva em suas costas.
Pernas que lutavam para se manter firmes eram repetidamente desafiadas por fenômenos fundamentais da natureza. Ninguém pretendia se render perante um teste de resistência. Aquele que cedesse, precisaria enfrentar a humilhação de ser superado uma outra vez. Em um cenário onde ambos os competidores corriam risco de despencar no chão, o público consentiu, silenciosamente.
— Hehehe… a Relíquia da Chuva contra a Relíquia do Tremor. É um confronto entre desastres naturais. — Falco murmurou para si mesmo.
— Por que todos ficaram quietos? Perderam a confiança? — Roccan questionou o seu acompanhante.
— Você esquece tudo o que eu te ensino? Os competidores devem lutar ao lado da plateia. Isso significa que todas as partes possuem relevância para a vitória.
— As pessoas estão torcendo a favor do seu amigo.
— Isso indica que ele tem o controle da situação, mas não determina o vencedor. Se ele for derrotado enquanto a torcida estiver gritando, então desta vez ele perderá de verdade.
— Que tipo de louco criaria um esporte como esse?
— Essa é a nossa resistência.
O dilúvio despencou sobre Kazo, afetando o equilíbrio de alguém que sempre se manteve no topo. Os poderes pluviais, responsáveis por colocar a sua postura em xeque, atingiram o potencial máximo para formar uma tempestade artificial.
Subitamente, a audição da vítima encharcada percebeu algo crucial: a queda da água era o único som capaz de chegar aos seus ouvidos. Nenhuma voz se opôs ao ruído da chuva. O Escultor de Ranque A desabou propositalmente sobre o chão.
— Isso é brincadeira, certo? — Perplexo, Roccan compreendeu a situação infeliz.
— Você finalmente entendeu, moleque. Meus parabéns — Falco parabenizou o rapaz.
— Eu não quero ver esse desfecho.
— Essa é a nossa realidade, não a sua.
— Isso é injusto! É praticamente uma partida armada!
— Ah, fala sério. Seu senso de moral não funciona aqui.
— Ninguém vai intervir? Por que ninguém interrompe esse evento ridículo?
— Nessa base, você é o único deslocado. Você é apenas um, contra todos os demais. Entenda o seu lugar, pirralho.
Participando dos momentos finais da disputa, o competidor menosprezado percebeu o seu destino cruel. A consoante estampada em seu peito faria com que ninguém comemorasse o seu possível momento de vitória, mesmo que seu adversário tivesse acabado de cair em sua frente.
Por outro lado, o seu próprio corpo estava prestes a ceder à pressão dos tremores incessantes. Considerando que o inimigo havia despencado propositalmente, ele ainda estaria guardando energias para se levantar. A partida já estava definida.
— Quando ele estiver prestes a cair, o seu amigo idiota vai se levantar. Depois disso, todos vão gritar — comentou Roccan, repleto de indignação.
— Correto. Esse é o desfecho inevitável. A queda de um competidor, quando unida com os berros da plateia, resultam no fim dos Jogos da Folia. Vence aquele que estiver sendo prestigiado de pé.
Os olhos do rapaz loiro não conseguiam mais encarar o cenário desprezível. Ele já estava observando há tempo demais. Sua visão se focou no rosto do Escultor de classificação mais baixa: o sujeito continuava tentando se manter firme, enfrentando todas as injustiças que o levavam para o caminho impossível, mesmo que ninguém sequer soubesse o seu nome.
Partículas rosa preparam um jovem para o combate. Portais se demonstraram prontos para afastar uma conclusão que ultrapassara os limites do aceitável.
— Já cheg–
Uma mão conteve o avanço do rapaz enfurecido. As ações de Roccan foram interrompidas antes de serem concretizadas. Uma voz grossa acalmou os nervos esquentados, outrora prontos para o combate. O recém-chegado correspondia a um sujeito conhecido por todos ali presentes.
— Se quer mudar este mundo, precisa entender como ele funciona. Alguém que acabou de se tornar um Escultor não vai resolver tudo sozinho — afirmou Jiro.
Após o comentário sincero, o homem se afastou lentamente, procurando um local para se sentar na extensa arquibancada. Vestindo um traje que reforçava a mediocridade de seu esquadrão, a letra "C" era combinada com vestes casuais, lhe permitindo uma leve customização para seu visual.
— Ei, Jiro! Por que não senta conosco? — Falco fez um convite.
— Essa não é uma opção válida, meu assento está reservado.
— Tá de brincadeira? Você chega no último momento da disputa e ainda decide ficar sozinho?
— Eu precisava aliviar a minha mente.
No palco principal, o confronto prosseguiu sem intervenções. O resultado inevitável enfim ocorreu: Kazo utilizou as energias conservadas para se levantar mais uma vez, enquanto tremores abalaram as últimas esperanças do adversário menosprezado. Como um roteiro minuciosamente preparado, o perdedor já havia sido decidido desde o início.
Gritos fervorosos acompanharam a queda do ranque inferior, ao mesmo tempo em que consagraram a vitória daquele que nunca se permitiria perder para alguém tão abaixo na classificação dos Escultores. Com as costas de seu oponente no chão, Kazo foi o vencedor da competição.
Um show de luzes era proporcionado por holofotes vermelhos, destacando as risadas de cada espectador na plateia. Purpurina e confetes pintavam o local com cores repletas de vida, na mesma proporção em que banhavam o competidor derrotado com uma humilhação sem limites. Diante de uma visão capaz de contrariar todos os seus princípios, Roccan sentiu o mais profundo desgosto pelo evento mais popular da resistência.
— Isso é nojento… como ninguém percebe algo assim?
— Está na hora de se levantar, pirralho. Você é o único de fora da festa. — De pé, Falco chamou pelo rapaz.
— Isso não é verdade, tenho certeza de que–
Entre incontáveis pessoas comemorando, o jovem notou a presença de um único homem conhecido. Do outro lado da arquibancada, Roccan avistou Jiro. Ambos estavam ocupando extremidades distintas da arena.
O único rosto no qual o rapaz confiava se encontrava conversando com as demais pessoas na plateia. Os lábios do homem, que outrora impediram uma catástrofe movida a ódio, se uniram para formar a mesma expressão daqueles ao seu redor.
— Entendeu agora? Nada disso é novidade. Você é o novato aqui. — Falco apresentou a dura realidade para o rapaz ignorante.
— Ele não era o único em quem eu acreditava. Também tem a moça…
— A Proxie? Você nem ao menos consegue dizer o nome dela. Assim como foi com ele, você também não sabe nada sobre aquela fracassada. Ela carrega frustrações e segredos que você nunca poderia imaginar!
— Isso não é verdade, eu sei que ela me salvou.
— E acha que isso é o suficiente?
— Não, não é…
Roccan percebeu algo que já deveria ter aprendido há muito tempo, olhando fixamente para a grandiosidade do evento finalizado. Centenas de pessoas formavam uma imagem nunca antes explorada pelas suas pupilas, mas um único ponto familiar despertou novamente a sua curiosidade.
Após expressar um irreconhecível lado sorridente, Jiro assumiu a faceta séria que sempre marcou sua identidade. O sujeito dispensava novas conversas e se direcionava para a saída do local, esboçando um notável desconforto.
— O que foi? Parece que viu um fantasma. — Falco questionou os motivos por trás da reação do jovem.
— Eu finalmente entendi que esse é apenas o começo.
As pernas de Roccan se moveram mais uma vez, porém o momento possuía uma diferença fundamental: seu corpo tremia, agindo em conjunto com uma mente repleta de incertezas.
“Eu ainda preciso aprender muito sobre esse lugar”, ele concluiu. O rapaz se distanciou de Falco e seu esquadrão, despertando uma enorme indignação no líder impaciente.
— Ei, pirralho! Realmente se acha capaz de sobreviver na resistência?
— Eu ainda não faço ideia. A pergunta pode esperar um pouco mais?
— Tsc. Como quiser.
O jovem deixou a arena, procurando por alguém nas redondezas. A pessoa requisitada não poderia ter ido muito longe. Durante o trajeto, memórias justificaram as últimas decisões tomadas.
Roccan se lembrou de seu diálogo com Proxie, ocorrido na noite do reencontro da dupla. A garota expressava palavras genuínas demais para serem simplesmente esquecidas.
— Acontece que eu fui resgatada por um companheiro confiável, talvez o único… — comentou ela, anteriormente.
Em sintonia com suas recordações, o garoto loiro encontrou o alvo da sua busca pessoal. Em um local afastado da multidão, Jiro ouviu o pedido genuíno de uma mente interessada por respostas.
— Tiro, não é?
— Jiro. Você não aparenta ser muito bom com nomes.
— Eu tenho um pedido.
— Não estou interessado.
— Ah, qualé!? Eu te salvei uma vez! Você ia morrer para os poderes da Relíquia do Raio!
— Relíquia da Eletricidade.
A voz de Roccan fraquejava, acentuando a honestidade de um ato vulnerável.
— Você é a única pessoa para quem eu posso pedir isso…
— Desembucha.
— Eu quero saber mais sobre a moça voadora.
— Quem?