Volume 1

Capítulo 8: A Era dos Fracassados, Parte 2

No setor especial do hospital, uma sala de operações realizava o tratamento de um paciente em situação crítica. Maquinários, com o mais alto nível de tecnologia, utilizavam todos os recursos disponíveis para manter o sujeito respirando. Entubado, de maneira deprimente, o corpo em recuperação não se deixava ser levado pela morte, lutando continuamente por aqueles que ansiavam pela sua melhora.

Após receber uma notícia comprometedora, os batimentos do homem operado oscilaram drasticamente, ocasionando no disparo de um alerta ensurdecedor. Respondendo ao chamado do sistema, um grupo de enfermeiras entrou rapidamente na sala, preparadas para lidar com a emergência repentina.

Em meio a inúmeros passos de carne e osso, um som metálico se destacava entre a correria. Proxie foi ao resgate de seu parente, mesmo que todo o seu corpo tremesse perante uma imagem desesperadora.

— Pai! 

— Ele é o seu pai?

— O que você está fazendo aqui? — Percebendo a presença inusitada de seu companheiro, a garota questionou Roccan.

— Esse cara me fez algumas perguntas. Eu pensei que deveria contar a verdade.

— Isso não explica nada! Me responda!

— Eu só estava tentando descobrir o que estava acontecendo e–

— Se quiser saber de algo além do seu alcance, pergunte. Tirar suas próprias conclusões é contraprodutivo.

O silêncio deixou a garota falando sozinha, sua agitação sobrepôs inteiramente as palavras do ouvinte. Luzes vermelhas acendiam e apagavam repetidas vezes, piscando sob o teto da sala, como um aviso que preparava os profissionais da área para uma operação extrema. 

O paciente respirava pelos aparelhos hospitalares, se agarrando ao último fio de esperança que mantinha o seu laço com a vida. Sem reação, Roccan apenas escutou o apelo da jovem.

— Agora, saia daqui e me espere na minha nave! Ela está sendo consertada ao lado do hospital.

O rapaz correu para longe da confusão, não se atrevendo a olhar para trás. Fechando portas que nunca deveriam ter sido abertas, ele se retirou do local, movido por uma ignorância sem tamanho.

***

Depois de percorrer todo o complexo do hospital, acreditando que em algum momento alcançaria o destino almejado, o jovem encontrou o veículo mencionado. O que restou da nave estava estacionado ao lado do estabelecimento de saúde, organizado para receber a manutenção necessária.

“Então, essa coisa realmente está sendo consertada. Se tudo correr bem, logo poderemos voltar para o espaço e procurar por mais relíquias!” Ele comemorou.

A estrutura do maquinário não estava mais partida ao meio, no entanto, estava longe de ficar pronta para uso. Com o formato de uma arraia, era como se suas nadadeiras tivessem despencado, enquanto o meio da arquitetura ainda não estava totalmente conectado. Suas turbinas traseiras precisavam de um reparo completo, ao mesmo tempo em que a cabine de controle se encontrava inutilizável. A aventura teria de ser postergada.

Não havendo ninguém nas proximidades, Roccan concluiu: “seja lá quem for o responsável pela manutenção, não deve trabalhar durante a noite. Neste ritmo, as coisas vão demorar bastante.”

Se aproveitando da mobilidade proporcionada pelos seus poderes, o rapaz fez uso de seus portais para alcançar o topo do veículo, descansando a partir de uma vista privilegiada.

O silêncio do exterior contrastava com o alarme dentro do complexo hospitalar. Todos os acontecimentos haviam fugido completamente da compreensão do garoto loiro, que não conseguia mais acompanhar o desenrolar da situação, nem mesmo com os seus ouvidos.

“Por que ela estava tão zangada? Eu queria ser capaz de ajudar, apesar de não saber como fazer isso…” em uma busca incessante por respostas, a mente inquieta — não acostumada a pensar — iniciou uma sequência de questionamentos.

Novas presenças interromperam o momento solitário. Um grupo de homens caminhava na direção da nave em manutenção. 

— Credo, essa coisa está pior do que eu esperava. Todas as partes estão caindo aos pedaços. — Falco desprezava o estado do maquinário.

Coberto por um colar de plumas vermelhas, ressoando perfeitamente com o seu traje preto, Kazo personalizava o seu visual da maneira que bem entendia. A vogal em seu ombro lhe concedia plena liberdade sobre o seu próprio estilo, classificando-o como um Escultor de Ranking A. 

— Você foi rude, líder. Seja mais gentil. O pai daquela fracassada se esforçou tanto para conseguir isso. — O homem exibido complementou o seu superior.

— E veja só onde ele está agora… acredito que até nos agradeceria pelo que estamos prestes a fazer.

O descanso de Roccan foi comprometido pelo esquadrão debochado. Tentando manter a sua concentração, altamente vulnerável à distrações, ele se viu obrigado a tapar os ouvidos. Os ruídos das redondezas não poderiam mais afetar a sua paz momentânea.

Falco percebeu a presença indesejada no topo do veículo. A imagem do rapaz se assemelhava a de um segurança em atividade, apesar de não fazer ideia dos acontecimentos ao seu redor.

— Ei, senhor Falco. Tem alguém ali em cima.

— Espere, eu já vi esse garoto antes…

Previamente deitado de barriga para cima, o jovem se virou para baixo, também tapando os seus olhos. A visão e a audição foram sacrificadas para atingir o foco absoluto, na tentativa de aproveitar ao máximo o seu momento de reflexão.

— Ele é o moleque do bar! O idiota que entrou pro esquadrão da Proxie!

— O que diabos ele está fazendo aqui?

— Será um papel de vigilante? Está protegendo a nave contra ameaças!

— Como alguém pode ser tão precavido?

— Será que ele nos viu?

Mesmo se livrando de possíveis distrações, a mente de Roccan ainda não havia alcançado a concentração desejada. Em uma estratégia para garantir o melhor raciocínio possível, ele bateu a própria cabeça contra o material metálico da nave.

— Isso foi um sinal! Ele com certeza nos notou!

— É um aviso para irmos embora. O que faremos, chefe?

— Tsc. Isso não estava nos nossos planos. Esse pirralho vai nos dar trabalho.

Falco se preparava para um confronto direto. Usufruindo de uma determinação inabalável, o líder do esquadrão se opôs ao jovem deitado.

— Você, aí em cima, vamos convers–

— Droga! Por que eu não poderia ter a Relíquia da Verdade? Eu só gostaria de saber o que fazer! — O desabafo da voz no topo alertou aqueles em sua volta.

O líder do esquadrão deu um passo para trás, obrigado a mudar a abordagem predefinida.

— Ele está enfurecido. Estejam prontos para enfrentar uma batalha imprevisível.

— Sim, senhor!

Kazo, você comanda os demais. Eu vou investir diretamente contra o alvo–

— Eu desisto. Pensar é difícil demais. — Roccan perdera a luta contra o conhecimento.

Olhos abertos e ouvidos livres para escutar encerraram a tentativa de reflexão. Previamente deitado, o rapaz se levantou para encarar o ambiente outrora ignorado. Finalmente prestando atenção nos homens em sua volta, ele estranhou a aproximação sem sentido. O grupo parecia cercar a nave com intenções que exalavam hostilidade.

Você disse que desiste? — Falco se espantou.

— Quem são vocês?

O líder trocou olhares com os seus subordinados, não acreditando na pergunta.

— Ele está de brincadeira, certo?

— Ele deve estar alcoolizado. Também pode ser que a sua presença não tenha sido muito marcante.

— O que disse?

— P-perdão, chefe! Eu quis dizer que a memória dele pode não ser muito boa!

Desapontado com o garoto, Falco tentou esclarecer a situação.

— Nós te levamos para jantar. Tivemos uma noite animada no bar, não se lembra?

— Ah, você é o idiota que apanhou da moça morta.

Ela está viva, infelizmente. Além disso, sua língua é bem afiada, moleque.

— O que vieram fazer aqui?

Se aproximando tranquilamente da nave, o líder do esquadrão tocou no veículo em manutenção, como quem acariciava um animal antes do abate. O ódio em seu contato poderia ser sentido até por um ser sem consciência, deixando clara a sua indignação diante do maquinário danificado.

— Viemos nos livrar de algo que foi dado para as mãos erradas.

Ferramentas de demolição foram reveladas por todos os demais membros, se preparando para seguir as ordens do líder enfurecido. Martelos enormes eram carregados na direção do alvo metálico.

— Eu sairia daí de cima se fosse você, pirralho. Nós só vamos parar quando essa coisa estiver em pedaços.

— Querem quebrar a nave?

— É tão simples quanto parece.

— Porque fazer algo tão estúpido?

— No papel, você é um Escultor agora, mas na prática, não conhece nem mesmo as nossas regras.

— Existe alguma regra que justifique essa estupidez?

— Esquadrões de Ranque F possuem várias limitações, que correspondem ao seu péssimo desempenho. Quando alguém com essa classificação tem a sua nave danificada, lhe é concedido um, e apenas um, reparo.

— Onde está querendo chegar?

— Se a nave de Proxie for destruída mais uma vez, ela perderá a posse sobre o veículo.

— Isso não vai acontecer.

— Os esquadrões que compõem a escória da agência não deveriam poder voar igual aqueles no topo. Aceite as coisas como elas deveriam ser e saia do nosso caminho.

— Esse é um pedido impossível.

Uma poeira rosa revestiu os pés de Falco, ameaçando o sujeito com um ataque impossível de ser desviado. Portais se preparavam para expulsar a equipe invasiva. 

— Tsc. Você é mesmo ignorante.

O homem confrontado largou as ferramentas destrutivas, se colocando em uma posição inofensiva. Seus subordinados não compreendiam a rendição repentina.

— Chefe, o que está fazendo?

— Vamos mostrar para esse moleque o que ele está perdendo. O pior e o melhor da resistência, todos no mesmo local.

— Está se referindo à…

— Vamos participar de uma Convocação. É melhor nos seguir, Roccan.

— Como sabe o meu nome? — O jovem se surpreendeu com a reação sem precedentes.

— O mundo é muito maior do que aparenta. Quando está no território de alguém, assuma que este sabe de tudo, e que você não está ciente de nada.

***

Na busca por respostas desconhecidas, o garoto loiro acompanhou o esquadrão de Ranque A. Seu destino os levou para um local distante de todas as demais construções. A paz da noite cedeu espaço para gritos carregados de agitação, transmitindo as emoções de uma plateia fervorosa.

Um palco aberto podia ser visto no centro do evento, de modo que nada impedia os espectadores de visualizar o show principal, possuindo apenas uma barreira de proteção, cuja transparência criava uma experiência visual sem obstáculos. 

Ao contrário do que se espera de uma apresentação de larga escala, a arquitetura depositava os seus esforços para elevar a presença da torcida, que se encontrava em uma posição privilegiada ao redor de toda a arena. Uma arquibancada, onde até o setor mais baixo havia superado a altura do palco central, enquanto os holofotes se privavam de destacar os competidores para focar no coração do evento: o público.

— Hehehe. Parece que chegou a sua vez, Kazo. — Falco alertou o subordinado.

— Chefe, você me registrou para a última rodada da noite?

— Mas, é claro! Vamos deixar todos impactados com um excelente desfecho para este dia. Isso inclui o moleque.

O esquadrão — acompanhado por Roccan — se encontrava em meio aos berros apaixonados da plateia, cujo som era amplificado por microfones, embutidos em cada assento. Aproveitando os privilégios do Ranque A, Falco e sua equipe garantiram o melhor setor da arquibancada, colocando-se na primeira fileira da plateia.

— Essa vista nunca me cansa. Não desperdice essa oportunidade, pirralho. Você nunca vai conseguir um assento tão bom novamente, a menos que mude de esquadrão.

— Por que me trouxe aqui? — Roccan questionou as ações do líder.

— Esse lugar vai te mostrar o que acontece com aqueles na escória deste mundo.

— Acha mesmo que vai me convencer a trocar de esquadrão?

— Esse não é o meu papel. Mostrarei as verdades ainda não compreendidas pela sua mente. Depois disso, pode tomar as suas próprias conclusões.

Como se estivessem diante de um terremoto, todo o evento tremia com as emoções da torcida. O palco recebera a entrada de Kazo, causando a agitação de inúmeros espectadores. Gritos ensurdecedores foram amplificados pelos alto-falantes da arena, dando o destaque merecido para o coração do entretenimento.

— Acaba com ele, Kazo!!!

— Deixe esse idiota em pedaços!!

— Você já é o vencedor!!!

— Só pare quando ele estiver chorando ajoelhado!!!

— Vida longa ao Ranque A!!!

Compondo o segundo lado do confronto um contra um, um garoto — com a letra "D" estampada em seu peito — subiu no palco, onde o seu adversário estava esperando. Tremendo, com o nervosismo inevitável, ele respirou fundo para enfrentar um oponente poderoso. A chegada do novo competidor foi recebida pelo mais absoluto silêncio.

— O que aconteceu? — Roccan murmurou para Falco.

— Não há nada de errado. É uma batalha de alguém no topo contra um fracassado. O público sabe quem deve vencer.

O jovem loiro se levantou, após ouvir uma resposta desprezível. Um único grito exaltou o Escultor em desvantagem.

— Ei, você!!! Acho bom acabar com esse desgraçado!!!

A ação surpreendeu o restante da plateia, que logo reagiu com gargalhadas subsequentes. Sem acreditar no que ouviram, os espectadores não conseguiam parar de rir da inocência do rapaz.

— Escolheu o lado errado, pirralho. A humilhação é o mínimo esperado para sujeitos como você. — Falco esclareceu as coisas para Roccan.

A voz do apresentador ressoou por todo o evento, interrompendo os deboches incessantes.

— Muito bem, chega de esperar!!! Sem mais delongas… O último confronto desta noite é entre um Escultor de Ranque D e um Escultor de Ranque A!

Olhos despreocupados espalharam-se por toda a torcida. O resultado parecia já estar decidido antes mesmo do início da luta, mas a atenção do público continuava sendo mantida, a partir do mais sincero prazer pelo entretenimento.

— Mantenha os olhos abertos. Esse momento deve ficar marcado em sua mente. — Falco sussurrou para o seu acompanhante.

Os competidores encerraram a etapa de aquecimento. Luzes vermelhas passeavam pela plateia apaixonada, que podia mais uma vez vibrar por aquilo no qual acreditava fielmente. A ação aguardava ansiosamente por um novo começo.

— Que os Jogos da Folia comecem!!! — O apresentador declarou.

Correndo pelo palco extenso, Kazo investiu contra o adversário nervoso. O ânimo dos espectadores acompanhou o seu avanço repentino.

— Vai, Kazo!!! Acaba com esse cara!!

— É a sua chance!! Ele nem está se movendo!!

O Escultor de Ranque A ficou lado a lado com o competidor ofuscado, ambos pretendiam partir para um combate à curta distância. O duelo se aproximava de um momento decisivo. Um contra-ataque fugiu do radar de qualquer ser-vivo. Kazo foi ao chão.

— Escultor de Ranque A no chão!! — informou o apresentador.

O silêncio voltou a assombrar o campo de batalha. Kazo havia sido completamente imobilizado sobre o piso de mármore, mas a batalha nunca parecia chegar ao fim. Diante de uma situação que fugia do senso comum, Roccan se questionou.

— Ele perdeu!! Por que a luta não está acabando?

Como um espelho que refletia a reação da plateia, Falco sorriu.



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