Volume 1

Capítulo 7: A Era dos Fracassados, Parte 1

Confrontando aquele que incomodava o seu esquadrão, Proxie se opôs às risadas em sua volta, como um farol, que chamava toda a atenção dos arredores. Bebidas deixaram de chegar nas bocas de seus consumidores, se encontrando largadas sobre as mesas do estabelecimento. Nem mesmo a música era capaz de alcançar os ouvidos dos clientes, sendo interrompida juntamente ao show de luzes vermelhas. Após horas de conversas descompromissadas, a festa chegou ao fim.

— Desprezível como sempre, Proxie. A noite estava ótima, antes da sua chegada. Algumas coisas nunca mudam. — Falco não conseguia conter sua indignação.

— Não se preocupe, eu já estou de saída. Pode continuar comemorando com o que restou de seu rosto.

— Você é a mesma pessoa de cinco anos atrás, apenas alguém que fala demais. Não consegue aproveitar as oportunidades que lhe foram concedidas. No final, o resultado é sempre o mesmo: você retorna sem nenhuma relíquia.

O traje de Proxie reforçava cada, palavra dita pelo sujeito descabido. Sua vestimenta se destacava entre os demais Escultores, como uma farda que jamais poderia ser tirada. Um traje moldado para um único padrão de corpo, forçando qualquer indivíduo a se adaptar ao seu comprimento. 

Materiais resistentes contra o disparo mais letal se prendiam ao físico da garota que os vestia, marcados por uma coloração predominantemente preta, com exceção da região abdominal acinzentada e ombreiras vermelhas. O equipamento envolvia firmemente o corpo da jovem, sem a intenção de libertá-la de seu uso. Em suas costas, uma letra podia ser vista nitidamente, a consoante de maior repúdio entre os Escultores.

— Líder de um esquadrão de Ranque F. Imagino que não tenha contado tudo para o moleque. Está com medo de ficar sozinha novamente? — Falco revelava uma informação omitida.

— Hein? Então a moça andróide tem um título diferente? — supôs Roccan, em contraste com a reação silenciosa da garota.

— Não se trata de um título, é uma classificação. Nesse quesito, ela está na pior posição possível.

— O que? Isso não faz sentido algum. É definitivamente um erro!

— Pelo visto, alguém andou escondendo certos detalhes… que conveniente.

Inquieta, Proxie virou as costas para o homem invasivo. Sua perna metálica rangia, à medida que se direcionava para a saída do estabelecimento, alertando os demais sobre a sua partida.

— Não vai nem se despedir? Há poucos minutos estava defendendo o seu esquadrão com garras e dentes. O que houve com a sua rebeldia? — Falco insistiu na provocação.

— Criar um esquadrão é um dever que vai honrar o nome do meu pai. Quanto ao meu nome, fique à vontade para insultá-lo, nada disso importa.

— Mas deveria.

Proxie deixou o bar, em uma caminhada repleta de insatisfações. Sem saber o que fazer, Roccan apenas seguiu a jovem enfurecida. Não prestando atenção em ninguém ao seu redor, o rapaz foi abordado por um garçom, mas acabou o ignorando de maneira involuntária.

— Ei, moleque! Esqueceu de pagar pela comida!

— Pode deixar comigo. Eu cubro os gastos dele — Jiro respondeu o funcionário.

— C-certo. Me desculpe, pelo equívoco.

— A garota também consumiu algo?

— Não, ela só precisa pagar pelo nosso serviço.

— Sem problemas, pode acrescentar este valor nas minhas despesas.

Se opondo aos gestos de simpatia do homem sério, Falco fez um último comentário para a dupla que se retirava do bar.

— Não esqueça de dar um uniforme para o garoto. O menor ranque dos esquadrões não pode mudar de traje. Devem ser lembrados para sempre como a escória da resistência.

Luzes vermelhas se acenderam novamente, devolvendo o ânimo para um ambiente no qual as atividades haviam sido interrompidas. A música reviveu a leveza de uma conversa entre amigos, enquanto bebidas alcoólicas eram servidas para que todos esquecessem o ocorrido. No fim, era apenas mais uma noite na base dos Escultores.

***

Distantes da algazarra, Proxie e Roccan conversavam no exterior do estabelecimento. Não havendo outras pessoas nas proximidades, os dois poderiam finalmente conversar com a privacidade necessária.  Com a maior parte da luminosidade no interior das construções, a caverna era visivelmente mais escura do que as metrópoles da superfície. As poucas lâmpadas no teto do local eram como um protesto contra o brilho excessivo das cidades superiores. Em uma vista rápida, a base parecia priorizar uma boa noite de sono, com suas ruas escuras e silenciosas. No entanto, a verdadeira natureza desta região se encontrava dentro de cada estabelecimento, como tartarugas dentro de seus respectivos cascos.

Sozinhos, o pequeno esquadrão aproveitou a tranquilidade da área. Um de frente para o outro, a dupla se preparava para descarregar todas as dúvidas que haviam se acumulado desde o seu último encontro. Desacostumado com o ato de pensar, Roccan gesticulou os primeiros questionamentos que chegaram à sua boca.

— Como você chegou aqui!?

— Eu que deveria te perguntar isso!!

— A sua nave foi explodida!

— E eu te vi morrer, duas vezes! Isso é muito mais chocante!!

As memórias do rapaz direcionaram suas ideias para um raciocínio infalível.

— Ah, me lembrei de uma coisa. Você sabe voar, deve ter sido assim que voltou.

— Eu uso um planador! A sua lógica é estúpida!

— Então… foi o robô na sua perna.  Ele deve ter algum truque secreto.

— É uma prótese! Isso só serve para me manter de pé.

Com uma pausa repentina no diálogo, nenhum outro som podia ser ouvido nos arredores. A quietude acalmou os ânimos da equipe recém-formada. Proxie respirou fundo, utilizando toda a paciência que lhe restava para falar sobre o seu paradeiro.

— Quando a minha nave foi partida ao meio, os Remanescentes foram embora, e eu fui deixada à deriva no espaço. Graças ao meu traje, consegui sobreviver por um tempo, mas logo perdi a consciência.

— Você… morreu?

— Claro que não! Eu não tenho os seus poderes! Acontece que eu fui resgatada por um companheiro confiável, talvez o único…

— Você teve sorte.

— Isso é inegável. Mesmo assim, Tyler não foi visto depois desse incidente. Perdemos um refém valioso… essa tinha sido a minha maior conquista desde que virei uma Escultora.

— Aquele desgraçado da SCONES ainda pode estar vivo?

— Essa informação está além do nosso alcance. Além disso, eu também perdi a relíquia dele. A explosão foi intensa demais.

— Sem relíquia. Sem nave. Sem refém. Essa tragédia foi minha culpa. Se eu tivesse pensado antes de agir, nós–

— Minha nave está sendo reconstruída. Conseguimos trazer de volta a maioria de suas partes. A manutenção está ocorrendo próxima ao nosso hospital. Ao menos, não foi uma derrota completa.

— Você foi resgatada por algum tipo de divindade?

— O Jiro não é tão poderoso assim. Ele apenas sabe exatamente o que está fazendo. Se quiser aprender mais sobre a resistência, esse é o cara que você deve procurar.

— Jiro? Eu acho que já ouvi esse nome.

— Foi ele quem te salvou? Isso explica bastante coisa.

— Eu acho que sim. Mas como isso é possível? Ele salvou nós dois, ao mesmo tempo?

— Aquele idiota… eu falei para ele parar de usar a relíquia.

— Hein?

— Não se preocupe com isso agora.

Depois de colocar a cabeça no lugar, Proxie virou as costas para Roccan. Uma última questão ainda incomodava os seus pensamentos. Sem conseguir encarar o seu companheiro, ela fez um questionamento crucial, enquanto o rapaz conseguia ver a letra F, estampada na parte traseira do traje preto.

— Ei, moleque. O que vai fazer agora?

— Hã? Como eu poderia saber algo assim? Você é a líder do esquadrão.

— O que o Falco disse no bar não era mentira. Eu nunca trouxe uma relíquia para essa base. Nunca fiz algo significativo pela resistência.

— Do que está falando? Ainda temos outra relíquia sobrando, não? Nós roubamos uma daquela exposição esquisita.

— Você roubou. Todas as nossas vitórias foram graças aos seus poderes.

— Isso não é verdade. Você…

— Não faz ideia do que dizer, né? Afinal, nós mal nos conhecemos.

— Moça andróide, espere–

Uma fadiga descomunal. O corpo de Roccan despencou sobre o chão. Seus olhos se fecharam instantaneamente, incapazes de manter a consciência. 

— Moleque! Tudo bem?

Proxie se virou para ajudar o rapaz, correndo para segurá-lo em disparada. Apesar de sua rápida reação, ela havia chegado tarde demais, não conseguindo impedir o adormecer do companheiro. Braços ao longo do corpo e pálpebras pesadas, a imagem se assemelhava a de um cadáver. A jovem mediu os batimentos do corpo caído, quando obteve um resultado que fugia de suas expectativas. O coração não aparentava ter cedido ao cansaço. Uma voz grossa se opôs ao silêncio do anoitecer.

— A morte é o desfecho evitado, mas não é como se ele nunca tivesse entrado em combate. O desgaste físico e mental permanecem em seu corpo, mesmo que as feridas letais tenham sido curadas — Jiro esclareceu a situação.

— Se cansou de beber?

— Eu não estava no bar.

— Ah, então você é o verdadeiro.

— Esse é o garoto de quem você falou durante a viagem inteira?

— Me ajude a carregá-lo. Ele não deve ter muito tempo sobrando.

— O usuário da Relíquia da Morte, hein? Este mundo sempre encontra um jeito de me surpreender.

***

A escuridão proporcionou um descanso invejável. O desgaste nos músculos do rapaz era tratado lentamente, a partir de sua estadia em uma sala reconfortante. Um soro devolvia as energias que haviam se esvaído após batalhas árduas, reidratando veias outrora esgotadas.

Como de costume, Roccan acordou em um ambiente desconhecido, mas, desta vez, o contexto para tal momento parecia diferente. Um quarto de hospital utilizava tudo em seu alcance para impedir que o poder da relíquia do rapaz precisasse ser ativado novamente.

“Eu morri”, ele concluiu, de maneira errônea.

Mesmo com a afirmação equivocada, qualquer resposta soava irrelevante, visto que a única opção do corpo em recuperação era permanecer deitado. Ao aceitar o único tipo de entretenimento disponível, observar o interior da sala tornou-se uma tarefa obrigatória. O local era como qualquer outro quarto de hospital já experienciado pelo paciente, apesar de possuir certo nível de refinamento em sua estrutura. 

Até o menor ruído do exterior era interceptado por um isolamento acústico impenetrável, enquanto a temperatura era minuciosamente regulada por aquecedores de primeiro mundo. Também almejando um visual reconfortante, a iluminação do ambiente se ajustava de maneira automática, através de sensores de movimento pontualmente alocados.

Contrastando com os valores estéticos do cômodo, a tecnologia do âmbito medicinal não era nenhuma novidade para Roccan, que havia obtido esse mesmo tratamento em outras unidades hospitalares. A beleza do ambiente era como uma capa para esconder uma oferta de menor valor.

“Esse lugar… é chato”, o jovem compreendeu tudo o que precisava saber.

Olhos entediados se focaram no teto vazio. A cor branca – que compunha o quarto – carregava uma monotonia desprovida de interesse, como se cada parede remetesse a um deserto sem vida.

“Eu poderia estar procurando relíquias. Não é hora de ficar dormindo”, uma decisão foi enfim tomada.

O paciente se libertou do soro e partiu para uma aventura nos corredores do hospital. Saindo de seus aposentos, dois caminhos forneciam destinos distintos, porém com um propósito em comum: ambos levavam para rumos desconhecidos.

Com as costas para a segunda opção, o jovem se encaminhou pela primeira rota que surgiu diante dele. A possibilidade de escolha nem sequer havia passado pela sua cabeça, uma vez que seus passos continuavam adentrando na unidade hospitalar.

“Eu acho que morri pra valer. A humanidade não conseguiria construir um lugar tão sem graça”, ele questionou a sua existência.

Nenhum outro humano era visto nas proximidades, constituindo um estabelecimento vazio e sem vida, mas em constante funcionamento. Em meio às inacabáveis paredes brancas, uma porta semi aberta foi avistada no final do corredor.

A mente do garoto se aproximava da verdade, “são as portas do céu?” 

Contrariando as suas expectativas, a passagem parecia se fechar automaticamente, tratava-se de um sistema autônomo. Partículas rosas acompanharam a movimentação rápida de Roccan, que fez uso de seus portais para passar pela porta antes que ela se fechasse, garantindo a sua entrada para o interior de uma sala especial.

Maquinários, que fugiam do senso comum, eram utilizados para alcançar o ápice da tecnologia médica, cercando um único paciente com tecnologias do mais alto índice de eficácia. A sala de operações estava ocupada por um sujeito internado, deitado sobre uma cama com o triplo do seu tamanho. 

As máquinas trabalhavam de maneira independente, utilizando todos os seus recursos para manter o paciente respirando, formando uma imagem angustiante para o rapaz recém-chegado. O homem operado estava sendo entubado por dezenas de aparelhos minuciosos, que penetravam o seu corpo das mais diversas formas. De rosto inteiramente deformado e membros que iam pouco a pouco sendo substituídos por partes metálicas, o organismo de alguém estava lutando incessantemente para se manter vivo, ao lado da tecnologia milagrosa.

“Minha nossa! É possível alguém assim continuar vivo?” Roccan não conseguia organizar os pensamentos.

Os olhos do paciente não conseguiam mais exercer o seu papel, mas os ouvidos perceberam a chegada de um segundo humano. Com a sua boca completamente obstruída, um sistema acoplado em sua rede neural fazia o possível para lhe conceder uma possibilidade de comunicação. 

— Proxie…? É… você…? — Um computador traduzia os pensamentos do homem incapacitado, expondo as palaravas que permeavam a sua mente para que alcançassem o seu ouvinte. 

— Ah! Você fala! — Roccan foi surpreendido por uma reação inesperada.

— Não… é… a Proxie…?

— Esse nome é familiar. Está falando da moça andróide, não é?

— Quem… é… você…? Conhece… a Proxie…?

— Ah, não se preocupe com ela. Estamos todos bem. Tivemos um acidente agora há pouco, mas voltamos novinhos em folha.

— Um… acidente…?

— Isso, mas não foi nada muito grave. Já estamos prontos para qualquer coisa, hehe.

Os batimentos do paciente oscilaram drasticamente, fazendo com que o sistema emitisse um alarme ensurdecedor. O homem enfrentava uma situação crítica.

— Ei, ei! Tá tudo bem?

Nenhuma resposta era obtida do maquinário, deixando o rapaz apreensivo. A porta automática se abriu, permitindo a entrada de um grupo de enfermeiras. Passos apressados foram ao resgate do paciente, dentre estes, um som de metal se destacava notavelmente. Proxie adentrou na sala especial, desesperada.

— Pai!!! O que aconteceu!?

— Ele é o seu pai!?

— O que você está fazendo aqui? — Perante uma presença inusitada, a garota questionou Roccan.



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