Volume 1

Capítulo 4: A Era dos Escultores, Parte 1

Com uma mescla de cores exóticas, um espetáculo de luzes neon se tornava um convite irresistível para os olhos adormecidos de um rapaz, que se sentia constantemente tentado a abrir suas pálpebras. O céu noturno de uma cidade chamava pelo garoto com a clareza de um amanhecer. Roccan despertou em um lugar familiar, porém consideravelmente diferente daquele em suas memórias.

— Ei, moça andróide…

O jovem procurava por sua companheira, mas encontrara muito mais metal do que apenas uma prótese. Pequenas naves ocupavam os corredores do transporte aéreo, gerando um intenso tráfego sobre as cabeças humanas.

— Eu voltei para o futuro!

Curioso, ele caminhava por ruas onde parecia não haver um único espaço vazio. Centenas de humanos frequentavam a mesma avenida, atraídos por inúmeras propagandas digitais, variando desde painéis eletrônicos até hologramas interativos. Em um lugar que nunca deixava o interesse de seus habitantes cair, nem mesmo os veículos terrestres encostavam no chão, rodas haviam se tornado um empecilho.

— É tudo tão exagerado quanto da última vez. Sem dúvidas, eu já estive por aqui. Mas, aquilo…

As semelhanças com uma localização já conhecida chegaram a um desfecho, juntamente com o final da rua movimentada. Roccan se deparou com um longo beco, funcionando como um mediador entre o familiar e o desconhecido. A travessia o levou para uma visão capaz de expandir ideias preestabelecidas. Do outro lado do trajeto, uma observação limpa lhe garantia plena noção do espaço à sua frente. Os prédios não eram mais capazes de atrapalhar a contemplação do horizonte, uma vez que a sociedade aparentava ter descido de nível.  A metrópole, que parecia sempre se estender rumo às estrelas, desta vez traçava o seu desenvolvimento para as profundezas. Na beirada da cidade alta, o garoto se surpreendia com a existência de um distrito subterrâneo.

— Nossa… parece até que o mundo foi partido ao meio.

Tiros foram disparados de maneira descuidada. O som ecoou por todo o subterrâneo, chegando até os ouvidos daqueles na parte alta da metrópole. Tal conflito poderia facilmente ser confundido com o início de uma guerra, gerando uma reação agitada por parte de Roccan, que tentava alertar todos em sua volta.

— Um tiroteio! Pode ter gente em perigo, alguém deveria…

Nenhum interesse. As pessoas da superfície conversavam normalmente, vivendo o restante do seu cotidiano como se o confronto armado fosse apenas um plano de fundo para um dia tranquilo. Adultos realizavam ligações de trabalho, crianças corriam em uma brincadeira sem fim, enquanto casais tinham um encontro romântico sobre a vista ampla da beirada. Era apenas mais um dia normal na cidade superior.

“Isso é algo comum? Eu não conheço esse lugar… mas não importa! Não posso deixar as coisas assim!” pensou o rapaz.

Um raio ofuscou toda luz artificial. O fenômeno atingiu diretamente o distrito subterrâneo, apesar de não ter se originado de nenhuma nuvem carregada. O som de uma trovoada assustou brevemente alguns cidadãos desavisados, mas estes logo retornaram para as suas atividades diárias.

No meio de tantas posturas indiferentes, para o que imaginavam ser somente um desastre natural, o jovem carregava uma certeza. Desta vez, Roccan sabia exatamente o que estava acontecendo.

“Uma relíquia! Sem dúvidas, esse poder vem de uma relíquia!” Ele concluiu.

***

Na cidade baixa, o tiroteio se intensificava. Um esquadrão composto por homens e mulheres se reunia para derrotar um único alvo. Se escondendo debaixo de construções para garantir uma boa cobertura, a equipe evitava o ataque de dezenas de raios subsequentes, ao mesmo tempo em que tentava acertar a fonte de todo esse caos. Cabelos brancos eram destacados pelas descargas elétricas, reforçando uma personalidade forte a partir da espessura de seus fios, cujas pontas espetadas exalavam enorme poder ofensivo. Sparklez utilizava uma relíquia de ação para manter seus adversários constantemente pressionados.

— É impossível se aproximar desse cara! Ele está evitando locais cobertos!

— Se sairmos a céu aberto vamos virar picadinho!

— Mirem nas pernas! Temos que derrubá-lo, rápido!

Os poderes elétricos do inimigo não concediam nenhuma brecha para o grupo armado, que se via forçado a permanecer dentro de veículos ou debaixo de materiais isolantes. Os olhos das vítimas desviavam dos incontáveis clarões, capazes de cegar aqueles que fossem pegos de surpresa. O esquadrão não podia sequer encarar quem os enfrentava.

— Se ficarmos parados, será o nosso fim! Vamos perder a visão!

— Essa relíquia… que habilidade assustadora.

— A resistência precisa desse poder! Não podemos sair daqui sem essa coisa!

No ápice de sua determinação, dez atiradores avançaram contra Sparklez, concentrando todos os seus esforços de maneira simultânea. Não havendo outra opção para uma aproximação efetiva, a equipe abandonou as coberturas nas quais se escondia, depositando todas as esperanças em uma única investida.

— Agora!! Todos, ataquem o alvo!

O homem de cabelos brancos foi cercado por todos os lados, sendo forçado a mudar de postura. Seus raios — utilizados anteriormente para pressionar os adversários — podiam enfim despencar diretamente sobre as cabeças dos que se protegiam. O confronto se encaminhava para um desfecho.

— Vocês da resistência não sabem quando desistir. A STONES foi criada para superar qualquer limite. Parem de se prender ao passado e sucumbam de uma vez!

Partículas rosas interromperam o clímax da batalha. Surgindo através de um portal, uma mão adentrou nos bolsos do inimigo. Os dedos da figura misteriosa se depararam com uma relíquia, escondida entre as vestes vasculhadas.

— Hein? Que droga é essa? — Sparklez sentiu algo se movendo em suas roupas. 

Curioso, ele procurou pelo artefato importante no local onde havia-o deixado. Nenhum resultado. O objeto acabara de ser furtado de sua posse.

 — Impossível! Devolva a minha relíquia!

A vítima do golpe reagiu rapidamente, se virando na direção da mão responsável pelo roubo. Agarrando-a antes que pudesse retornar para o portal, ele puxou o membro do ladrão com todas as suas forças. O resto do corpo de Roccan foi trazido para fora do portal. Depois de realizar a travessia completa, o rapaz passou a participar inteiramente de um confronto indesejado. Sparklez retomou a relíquia furtada com o uso de sua força bruta.

— Ah, fala sério. Eu já estava quase fugindo com ela. — O jovem se decepcionou com os seus planos arruinados.

— Você estava tentando me furtar?

— Tentando não, eu te furtei!

— Quem diabos é você, pirralho?

— Eu? Eu sou Roc, o ladrão de relíquias!

— Eu nunca ouvi falar nesse nome, nem mesmo considerando todo o universo.

— Eu sou novato.

Apesar de não fazer ideia do que estava acontecendo, a equipe armada desviou o olhar do diálogo constrangedor. Aqueles que anteriormente participaram de um combate mortal, cobriam o rosto com as suas mãos, repletos de vergonha alheia. Os membros do grupo se entreolharam, como se estivessem se questionando sobre quem era a figura intrometida.

— Esse idiota é um de nós?

— Tomara que não. A resistência não precisa de crianças.

— Credo, é até difícil de encarar.

Um clarão voltava a dominar os céus, espantando a escuridão e assustando todos os que se opunham ao sujeito de cabelos brancos. Descargas elétricas buscavam por alvos desprotegidos.

— Chega de perder tempo. Eu tenho que colocar um fim nesse grupo de rebeldes. Se quiser continuar vivo, basta fugir, moleque. — Sparklez perdeu a paciência.

— Fugir? Mas, eu quero a relíquia.

Os pés do inimigo foram envoltos por uma nuvem de poeira rosa. Um portal surgiu logo abaixo do seu corpo, levando-o para o interior de uma construção. Sem entender o ocorrido, a vítima do teleporte olhou ao redor de sua nova localização. Um pequeno estabelecimento vazio, não havendo outras pessoas dentro deste espaço. Através de uma porta de vidro, Sparklez conseguia ver sua antiga posição, com todo o esquadrão esperando no exterior.

— Eu estava naquela praça há poucos segundos atrás. Será que fui transportado?

O homem sentiu uma mão em seus bolsos. 

— Consegui! — Uma voz comemorou.

Se virando rapidamente, após ter a sua privacidade violada, o dono da relíquia responsável pela tempestade elétrica se deparou com mais um evento frustrante. O seu precioso artefato acabara de ser furtado uma outra vez. Roccan carregava o objeto com toda a sua empolgação, contemplando o visual marcado pelo símbolo de um raio.

— Essa é a relíquia mais estilosa que eu já vi!

— Você de novo? Apenas pare de tentar me roubar!

— Foi mal, eu realmente gosto dessas coisas.

— Isso é propriedade da STONES.

— Aquela empresa estúpida? Nesse caso, ainda bem que está nas minhas mãos agora.

— Já chega! Devolva a relíquia, se não quiser morrer!

Roccan acertou um soco em um dos seus portais, enquanto o outro levou o golpe diretamente para a face do seu oponente. Sparklez foi atingido em cheio.

— Até mesmo uma pequena loja como essa possui um para-raios. Seus ataques não vão funcionar aqui dentro.

— Nossa, você pensou em tudo…

— Hehehe. Mandei bem, não?

Outro portal foi criado atrás do homem de cabelos brancos. Desta vez, o rapaz utilizou os seus poderes para realizar um chute surpresa, teleportando o seu golpe para uma direção inesperada. Surpreendentemente, o inimigo reagiu de maneira imediata, agarrando a perna do garoto atacante.

— Como?

— Você não sabe lutar, né? É tão previsível que me faz sentir pena.

Sparklez puxou a perna pelo portal, fazendo com que todo o resto do corpo de Roccan também passasse pela travessia. Incapaz de se defender, o jovem adentrou no alcance de punhos enfurecidos. Como se estivesse sendo atingido por uma sequência de disparos letais, a potência de cada soco impulsionou o alvo para trás, fazendo-o esbarrar em uma estante de metal.

— Argh!

— Já chega, me devolva a relíquia.

— A minha especialidade é roubar, não lutar. Você só venceu no meu ponto fraco.

— Não importa, você foi derrotado.

— Olha só, eu já perdi para gente bem melhor do que você.

— Isso… foi um xingamento?

Partículas rosas surgiram mais uma vez sob os pés do inimigo, transportando-o por uma travessia até o teto do estabelecimento. Com o fim do teleporte, o sujeito caiu de cara no chão, sofrendo um dano inesperado.

— Urgh! Tá de brincadeira? Que ataque idiota!

— Tem muito mais de onde esse veio!

O processo se repetiu múltiplas vezes. Com um portal no chão e outro sob o teto, Sparklez foi lançado contra o solo em uma mesma sequência de acontecimentos. Durante as inúmeras quedas, a vítima recuperava o seu foco, encarando friamente o seu adversário. Sua atenção não poderia ser desviada nem pelo mais poderoso soco em sua face, ignorando qualquer outro ser ou objeto que pudesse entrar em seu caminho. Analisando cada trejeito de quem lhe enfrentava, as prioridades do sujeito sério mudaram em um piscar de olhos. O rumo do confronto já estava decidido.

— Sabe… você não parece ser da resistência — comentou Sparklez.

— Isso faz diferença?

— Isso significa que você não é do meu interesse.

Apesar de ter continuado caindo repetidas vezes, o homem de cabelos brancos se inclinou em direção à entrada do estabelecimento. A porta de vidro lhe permitia observar o seu verdadeiro interesse: o esquadrão aguardava no exterior da construção.

— Você não sabe nem contra o que está lutando. — O inimigo provocou Roccan.

— Do que está falando?

— A minha relíquia não é a Relíquia do Raio. Meu encantamento foi feito com a Relíquia da Eletricidade.

Encostando ambas as palmas de suas mãos, Sparklez apontou o seu gesto para um dos membros da equipe desatenta. Acompanhando o seu movimento, a luz do estabelecimento se esvaiu, juntamente com o funcionamento de todos os eletrodomésticos.

— Então, a cobertura nunca fez diferença… o para-raios… — O jovem percebeu algo decisivo.

— Você não sabe nada sobre mim, moleque. Não sabe nada sobre o meu poder. 

— Espere!

— É só mais um ignorante.

Toda a eletricidade do ambiente foi condensada em um único projétil, disparado pelos dedos do sujeito eletrizado. O ataque atingiu uma das atiradoras, que apenas recebeu a ofensiva inesperada. Sem sequer saber o que lhe atingiu, ela caiu no chão, imóvel. 

— V-você…

— Meu dever é eliminar a resistência. Disso eu sei muito bem.

O grupo tentou socorrer a mulher derrubada, mas nenhum sinal vital pôde ser reconhecido. 

A vítima estava morta.



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