Volume 1

Capítulo 3: A Era dos Remanescentes

A tempestade cessou, mas deixou algumas marcas de sua passagem. O céu, anteriormente atormentado por um furacão, enfim retomou o seu brilho tradicional. Nuvens brancas voltaram a repousar sobre um ambiente pacífico. O rosto daquele responsável por todo o caos foi brutalmente pressionado contra o solo, penetrando o terreno lamacento em um rápido desmaio. Tyler foi derrotado por Roccan em um desfecho completamente unilateral.

— Ei, ei… isso é sério? — Proxie não conseguia acreditar na sua visão.

— O que foi? Não acha que ele mereceu?

— Claro, mas… você sempre foi capaz de agir dessa forma?

— Eu fiz algo diferente?

— Óbvio que sim! Nós mal nos conhecemos e eu já te vi ser bombardeado duas vezes! É completamente diferente de alguém competente!

Roccan pensava sobre as críticas recebidas, tentando compreender a situação.

— Ah, foi mal.

— Por que está pedindo desculpas!?

O homem envelhecido se aproximou do local onde o combate havia se encerrado. Sem mais ameaças, ele apenas observava os escombros do cemitério destruído. Não restavam mais vestígios dos objetos recordativos, a magia do feiticeiro havia perdido a sua importância. Mãos trêmulas largaram o poderoso cajado, que caiu junto às lágrimas do velho morador. Tudo o que os mortos haviam deixado para trás foi resumido às cinzas de uma antiga geração.

— Então, eles finalmente partiram.

Um silêncio incontestável. Proxie e Roccan apenas escutavam as palavras dolorosas do homem experiente. 

— Eu sabia que esse dia iria chegar. A magia pode estender os limites dos seres humanos, mas nunca quebrá-los. Sempre haverá o momento de dizer adeus, afinal, as pessoas não são eternas.

Os lábios do sujeito envelhecido não conseguiram dar continuidade à sua fala. Nem mesmo a raiva podia ser expressada com tanta clareza, uma vez que quase não possuía mais dentes para ranger. Os poucos fios de cabelo que lhe restavam caíam através de uma coceira angustiante.

— Do que está falando?

O rapaz cansou do local quieto. Em uma região onde a natureza não emitia mais sons, uma voz vivida se opôs ao vazio das ruínas do cemitério. Roccan recuperou o cajado caído, erguendo o objeto na direção do seu dono.

— Você vem visitando eles por anos, não? Parecem bem eternos para mim.

— Aonde quer chegar?

— Enquanto você viver, ninguém será esquecido.

O idoso retirou o seu chapéu de feiticeiro. O topo de sua cabeça era como um enorme deserto, isento de vegetação.

— Eu não tenho mais tanto tempo, garoto.

— Nesse caso, pode deixar comigo. Não vou esquecer de você tão facilmente.

O líquido deprimente — escorrendo por olhos desesperançosos — secou com a luz refletida a partir de cabelos loiros. Mãos vazias agarraram o cajado mais uma vez, tomando-o das mãos do jovem.

— Ah, e sabe qual a melhor parte? Aparentemente, eu não consigo mais morrer. Que sorte a sua, não?

Um sorriso genuíno funcionava como um abraço entre os dois companheiros, à medida que se despediam em um desfecho pacífico. Ignorando o diálogo caloroso, Proxie seguiu o seu próprio trajeto, rumo ao inimigo desmaiado.

— É uma oportunidade única. Agora você tem um idiota imortal que nunca vai esquecer da sua existência. — Enquanto se agachava para carregar o corpo de Tyler, ela interrompeu a conversa desinteressante. — Isso também não é um exagero, não tem muita coisa na cabeça dele, então nada vai atrapalhar a lembrança.

— Isso mesmo! Foi um elogio, né?

— Claro, você é incrível. Agora pare de perder tempo e me ajude a colocar o nosso novo refém na minha nave.

— Vai levar esse desgraçado? Eu não suportaria ficar mais um segundo perto desse cara.

— Ah, fala sério, pense um pouco. Ele pode nos fornecer informações importantes sobre a STONES. Se estiver com tanto ódio, apenas finja que ele não existe.

— O que eu tenho haver com isso?

— Quero deixá-lo sob o meu alcance, para diminuir as chances de uma fuga. Quando ele acordar, pode acabar sendo bem inconveniente.

— Não é disso que estou falando. Por que está me incluindo na nave?

— Você tem algum lugar para ir? Sua força pode ser bem-vinda na resistência. Por que não dá uma olhada na nossa base?

— Eu não tenho interesse nessas coisas. Lutar é mais complicado do que roubar.

— Nós somos um grupo que busca pelo poder das relíquias. Eu já te contei sobre essa parte.

Uma poeira rosa surgiu debaixo de Proxie e Roccan, teleportando ambos diretamente para a entrada da nave da garota. O atalho surpreendeu o morador inexperiente.

— Eu tinha me esquecido. Vamos!

— Me avise antes de fazer algo assim.

— Esperem!! O que eu faço com esse outro ser de metal? — gritou o feiticeiro, fazendo um último questionamento para a dupla. 

A nave de Tyler permanecia ao lado do cemitério destruído, sem qualquer arranhão. 

— Nós já capturamos naves da STONES deste mesmo modelo. Sua vila pode ficar com ela.

— Isso é uma piada?

— Não se preocupem, ela não morde. Façam bom proveito!

Ao mesmo tempo em que entravam no veículo, Roccan e a garota se entreolharam. O jovem percebeu as segundas intenções da moça atrevida, presenteando o idoso com um tesouro ambíguo.

— Você só ficou com preguiça de resolver a situação, né?

— Assim é mais fácil.

***

Os dois companheiros de viagem se preparavam para uma decolagem poderosa. Todo o ambiente estremecia com a força das turbinas, prontas para levar o garoto de dezesseis anos em uma jornada ao desconhecido. O corpo de Roccan se segurava em um assento robusto, sem nem mesmo esperar os comandos de sua mente confusa. Um suor frio revestia o seu corpo no mais puro medo do amanhã, não conseguindo sequer imaginar o que estava por vir. 

A nave se lançou contra o céu azul, que logo cedeu o seu lugar para uma paisagem essencialmente oposta às suas peculiaridades. A escuridão do espaço se sobrepôs à claridade das nuvens brancas, espantando a calmaria e imergindo o veículo interestelar na constante provocação do vazio. Os olhos do garoto se perderam na imensidão espacial. Diante de um pequeno maquinário, o qual lhe permitiu testemunhar algo completamente além de seus limites, o jovem se questionou.

— Quantas pessoas tiveram que existir para que eu pudesse ter essa visão?

— Na história da humanidade? Provavelmente uns cem planetas inteiros.

Cada estrela na frente do rapaz parecia guiá-lo em uma busca além da compreensão de qualquer outro ser vivo.

— Eu tenho uma oportunidade única, proporcionada por trilhões de sonhadores…

Em meio ao aglomerado estelar, dois brilhos se destacaram na mente de Roccan, cada um contando sua própria história cósmica. A imagem de seus falecidos parentes dominou os pensamentos mais íntimos do garoto.

— É por isso que nós temos que alcançar patamares nunca antes presenciados por eles.

— Os artefatos mais procurados pela humanidade… acho que cientistas de qualquer época ficariam maravilhados com essas coisas.

— As relíquias de ação são o maior tesouro do mundo. Se as encontrarmos, criaremos um significado para todo esse esforço.

O veículo em locomoção parou brevemente, concedendo tempo para que a garota pudesse planejar o trajeto da viagem. Aproveitando o intervalo, ela levantou do assento onde estava, caminhando em direção ao refém adormecido.

— Você consegue ser bem menos insuportável quando pensa.

A audição do rapaz estranhava os passos de sua companheira. Uma colisão de metais atraia a atenção do sujeito mais desatento, iniciando uma procura incessante pela fonte do som. Enfim achando o responsável pelo ruído, um dos pés da moça não aparentava ser feito de carne e osso.

— Ah! Tem um robô na sua perna!

— É uma prótese. Eu perdi a verdadeira, graças à minha incompetência.

— Caramba, deve ter sido doloroso.

— Dor? Eu não me incomodaria com algo tão banal.

As partes metálicas de Proxie rangiam, juntamente com seus dentes, em um desconforto impregnado de ódio. Enquanto se agachava na frente de Tyler, que permanecia inconsciente, ela se apoiou sobre a perna natural, evitando qualquer contato com o membro artificial.

— Aqui, a Relíquia do Vento — disse ao recolher o objeto do corpo desacordado.

— Hehe, estamos ficando bons nisso. Você já fez algum encantamento?

— Não pretendo utilizar relíquias até ser necessário. Essas coisas são perigosas. Tudo o que devo fazer é tirá-las das mãos de gente problemática.

— Certo! Nesse caso, pode deixá-las comigo.

— Você é problemático, desastrado e inconstante.

— E o nosso acordo sobre colecionar esses tesouros?

— Se mantém de pé. Só não iremos usá-las sem necessidade.

Uma explosão silenciosa destoou da escuridão do espaço. Tal fenômeno não emitiu som, mas alertara todos em sua presença com uma luminosidade estonteante. O painel de controle da embarcação concedia uma boa vista para o acontecimento distante. Partículas rosa preparavam o jovem de cabelos loiros para um combate radiante, quando cores espalhafatosas se uniram em uma paleta de pura empolgação. 

— Um ataque desse nível… pode ser o poder de uma relíquia!

— Espere!

Proxie assumiu o controle da nave, sentando novamente em sua poltrona. As turbinas se preparavam para uma segunda rodada cheia de adrenalina. Acionando diversos interruptores, os membros superiores da condutora espacial permitiram que o maquinário alcançasse velocidade máxima, ao mesmo tempo em que a perna metálica se recusava a pressionar o freio.

— Esse não é o momento de agir! Guarde a sua habilidade para um momento mais controlado! — Ela advertiu.

A investida da embarcação cortou o vazio do sistema solar, atravessando milhões de quilômetros em menos de um segundo, assim como uma arraia percorre a vastidão do oceano.

— Por que estamos fugindo desse jeito, moça andróide?

— Agora eu sou uma andróide?

— E se eles estiverem com uma relíquia?

— Essas criaturas não carregam nada! Além disso, eu não sou imortal como você!

— Criaturas? Não são humanos? Talvez sejam daquela empresa estúpida.

Uma aparição repentina. Superando a velocidade da nave, mesmo que parecessem estar apenas pairando pelo espaço, dois inimigos voadores interceptaram o caminho do veículo. A colisão interrompeu a movimentação do maquinário, mas este não sofreu muitos danos físicos, graças à uma barreira de proteção que revestia todo o seu exterior. Apesar de uma defesa bem sucedida, a situação não parecia promissora para a equipe da resistência.

Monstros cujo corpo aparentava ter sido gerado depois de incontáveis experimentos científicos. Uma estrutura na qual nada sequer tentava fazer o mínimo de sentido, como uma aberração, formada a partir de uma mistura imensurável entre elementos vivos e não vivos. O que deveria ser reconhecido como a pele das criaturas não passava de um amontoado de pelos, penas, escamas e até mesmo metais. A dupla estava perante uma anomalia da natureza.

— Remanescentes! São seres que foram geneticamente modificados com o poder das relíquias.

— Que coisa horrorosa…

— Temos que sair daqui!

Um rombo se abriu no peito de um dos inimigos. A luz emitida no centro de sua estrutura era proveniente do núcleo de um reator. A transformação do oponente grotesco antecedia uma ofensiva poderosa. O clarão era capaz de fazer os galos de todo o universo cantarem por engano, confundidos através de um falso amanhecer.

— Você consegue afastar essas coisas? É hora de usar o teleporte!

— Eles são realmente fortes? Talvez eu–

Um feixe de luz partiu a nave ao meio. A explosão atravessou a barreira de proteção, destruindo tudo em seu caminho. Os destroços da nave se espalharam pelos arredores, banhando cada tripulante em um desespero indescritível. Nem mesmo os humanos poderiam saber o que passava por suas cabeças neste momento. Proxie e Tyler permaneceram vivos, porém, desprovidos do controle da embarcação. 

— Moleque!! — Os berros da garota não eram capazes de alcançar o rapaz, imerso na solidão absoluta.

Além do som não se propagar no ambiente cósmico, outro diferencial de extrema relevância impediu uma comunicação produtiva. Se comparada com a transformação da criatura, a aparência do jovem possuía uma leve semelhança quanto ao visual do Remanescente. O peito de Roccan se encontrava perfurado pelo ataque. Seus olhos se fecharam mais uma vez.



Comentários