Volume 1
Capítulo 2: A Era do Futuro, Parte 2
Aos seus cinco anos de idade, Roccan conversava com um homem de postura torta, porém, de cabeça erguida. Vestindo um casaco branco, o qual ele tentava transformar em um jaleco, Copper era o nome da figura paterna à disposição do garoto. O diálogo ocorreu sob o breu de uma noite, mas a luz — proporcionada pela eletricidade da casa — não deixava os humanos sucumbirem à escuridão.
— Roc, já ouviu falar nas Relíquias de Ação?
— Parecem ser bem legais. Eu posso ter uma?
— Você não tem ideia do que sejam, né?
— Eu gostei do nome.
A empolgação do homem experiente movia o seu corpo cansado. Mesmo após um dia difícil, todo o seu ânimo parecia ser reabastecido a cada oportunidade de falar sobre um assunto tão inspirador.
— Esses pequenos artefatos são o maior tesouro deste mundo. O poder de uma Relíquia de Ação altera um fenômeno fundamental do universo.
— O que dá para fazer com algo assim?
— Uma habilidade dessas não teria relevância alguma para um ser de outra espécie, mas, para a humanidade… o que poderíamos fazer com essas coisas vai além da sua imaginação!
— Se eu tiver um desses objetos, eu posso mudar o mundo?
— Você é um humano, Roc. A resposta é óbvia.
— Então, eu quero mudar o mundo!
— Hahaha, esse é o espírito! E o que você faria primeiro?
— Eu traria a mamãe de volta!
Antes que Copper fosse capaz de compreender o que havia sido dito, sua mente já tinha reagido de maneira imediata, interrompendo qualquer movimento em execução. Seu corpo estava paralisado, após um comentário chocante. Nem mesmo os seus olhos arregalados poderiam enxergar o potencial infinito que se escondia através de palavras tão inocentes.
— Sabe, Roc. Os humanos são realmente imprevisíveis. Mesmo algo dito de maneira tão idiota não é impossível.
— Então, a mamãe…
— Quando combinadas, as Relíquias de Ação podem mudar o comportamento uma da outra.
A luz da lâmpada industrial era refletida nas retinas do homem sonhador, acendendo as suas ideias, como um interruptor aciona o brilho de possibilidades até então adormecidas. As falas proferidas depois deste momento se originavam a partir do desenvolvimento de uma espécie com séculos de complexidade. Incontáveis gerações superaram suas barreiras para transformar pensamentos tão absurdos em algo alcançável.
— Se juntarmos as Relíquias da Morte e da Vida, talvez seja possível alterar os dois fenômenos, para que sua mãe volte a existir.
— Eu poderia fazer algo assim?
— Você ainda tem muito a crescer, Roc. Mas quero que me prometa uma coisa.
O garoto não fazia ideia, mas estava prestes a ouvir declarações que nunca mais deixariam os seus ouvidos.
— Se um dia eu também partir, quero que continue o que estou prestes a começar. Essa é uma das principais virtudes da humanidade, nosso conhecimento não morre conosco.
***
Sentindo a dor de memórias, que haviam marcado a sua pele como cicatrizes, Roccan não conseguia aceitar um novo descuido. Ainda descansando, após despistar os seus inimigos, o adolescente percebeu a perda do objeto que havia sido a sua maior conquista.
— Há poucos minutos atrás, eu estava com a Relíquia da Morte. — Ele desabafou para aquela que lhe fazia companhia.
— Você o que? Pare de brincadeiras. Está achando que vou acreditar em outra de suas mentiras?
—Eu não brincaria sobre uma informação tão importante.
— Quer saber, para mim já deu. Se vai usar esse seu poder incrível de maneira tão estúpida, pode seguir longe da resistência.
A paciência de Proxie chegou ao fim, a garota se distanciava de Roccan. No entanto, antes de partir, ela se aproveitou da falta de atenção do rapaz, colocando algo em sua nuca. Não percebendo as ações da moça, a única preocupação do jovem se voltou para os elogios indiretos que ele recebeu.
— O meu poder? Está falando dos portais? É a Relíquia do Transporte!
— Claro, claro. — Nem mesmo a verdade era capaz de convencê-la.
“Ele ainda pode trazer mais problemas, vou mantê-lo no meu radar”, pensou a garota, deixando seu companheiro para trás.
Um disparo alvejou o corpo solitário. Sem ninguém para ajudá-lo, desta vez o garoto caiu com um acerto decisivo. A sua aquisição mais recente foi impulsionada para longe, após o impacto do projétil. A relíquia roubada teve uma queda conveniente, indo parar bem ao lado de Proxie. A moça se assustou com o ataque repentino, mas aproveitou a chance de ouro para escapar com o objeto precioso. Sua saída antecedeu a chegada de guardas enfurecidos.
— Matamos ele! — Um soldado vasculhou o cadáver de Roccan, deitado sobre o chão.
Levando todas as suas roupas e pertences consigo, o corpo do rapaz se desintegrou, de maneira completamente sobrenatural. O sangue do líder ferveu. A imprevisibilidade de uma maré de azar resultava em uma sequência de acontecimentos surreais. Seu objetivo parecia sempre escapulir de seus dedos.
— A relíquia roubada não está aqui, a garota deve ter fugido com ela! Não deixem que nenhuma nave fuja desta cidade! Sigam-na! — Tyler acumulava o estresse de mais uma péssima notícia.
***
Um canteiro de obras escondia um veículo de olhos vigilantes. Repleto de elementos de uma construção em andamento, o local permitia um estacionamento seguro para qualquer aterrissagem ilegal. Proxie se aproveitava da cobertura, preparando a sua nave para uma decolagem rápida.
“Relíquia da Morte? Fala sério. Esse idiota acabou de perder um poder valioso. Que morte estúpida”, a garota desprezava aquele que havia acabado de conhecer.
Enquanto observava o radar no painel de controle, ela planejava seu próximo destino, quando foi surpreendida por uma informação inimaginável. O rastreador que havia sido implantado em Roccan permanecia ativo, no entanto, a localização deste dispositivo era milhares de vezes mais distante do que o esperado. O mecanismo de rastreamento apontava para outro planeta.
“Planeta 2? Impossível! Eu vi aquele cara morrer na minha frente! Será um defeito no rastreador?” Proxie não conseguia acreditar no aparelho.
Em busca de sanar todas as dúvidas, o veículo decolou, rumo à fonte de todas as perguntas. Seguindo o trajeto da garota, outra nave possuía o mesmo destino.
O pôr do sol iluminava um céu limpo. Nuvens brancas pareciam nunca ter sido expostas ao terror da poluição humana, enquanto um rio cristalino refletia perfeitamente a harmonia de aves migratórias. Caminhando por debaixo da sombra de uma árvore, Roccan respirava o ar proporcionado pelas folhas da natureza. O garoto se encontrou em um lugar livre de carros e naves. As estradas, de terra, eram ocupadas apenas por cavalos e carroças. Nenhum sinal de eletricidade podia ser percebido.
— Hein? Onde eu estou? Parece até que voltei no tempo.
— Você é novo por aqui?
Uma voz tranquila chegou aos ouvidos do garoto, que se deparou com alguém completamente desconhecido. A falta de conhecimento sobre os arredores fez o rapaz compreender a verdade inevitável.
— Ah, eu morri!
— Morreu? Não é nada disso. Este é apenas o cemitério do vilarejo.
Ao lado do rapaz, um lugar havia fugido de sua visão. Um campo repleto de lápides, cada uma cercada por objetos aleatórios, indo desde roupas até armas diversas. Cercas de pedra contornavam o local, garantindo privacidade para aqueles que mereciam descansar em paz. Realizando a manutenção dos túmulos, um homem de cabelos brancos enfrentava o seu corpo envelhecido, indo contra as dores em sua coluna para preservar um ambiente de extrema importância.
— Você também morreu? O que está fazendo em um lugar como esse? — Roccan questionou o sujeito.
— Eu não poderia morrer tão facilmente. Ainda tenho muito para extrair daqui.
As mãos cansadas do velho morador carregavam um cajado, enquanto a sua calvície se escondia por baixo de um chapéu de feiticeiro.
— Não vou deixar que a existência de ninguém seja desperdiçada.
— Isso nunca aconteceria. Ainda tem gente na sua cidade, certo? Enquanto isso for verdade, nada terá sido em vão.
Os fortes ventos da região acompanharam o suspiro do homem experiente, soprando os seus cabelos repletos de vivência. Observando cada lápide, que um dia representou um companheiro, ele fez uma pergunta para o jovem recém-chegado.
— Ei, garoto. Já sentiu que perdeu alguém insubstituível?
A pergunta atingiu como um soco no estômago. Roccan encarava o cemitério, de modo que as lajes pareciam ter os nomes de seus pais escrito nelas. Sua mente tentava lhe pregar uma peça infeliz. O silêncio do rapaz permitiu que o sujeito envelhecido desse continuidade ao seu discurso. O diálogo havia se tornado um monólogo.
— Em cada uma dessas lápides, está alguém que carrega consigo décadas de conhecimentos valiosos. Quando uso a minha magia nos objetos de um humano, eu consigo reviver certos momentos de suas memórias, momentos em que foram usados. É por isso que eu não posso morrer de forma alguma. Tenho que levar isso adiante.
Nuvens brancas foram expulsas pela chegada de uma imponente embarcação interestelar. Com seu formato peculiar e uma velocidade incomparável, o veículo era como uma enorme arraia voadora. Uma nave aterrissou sobre o campo verde, interrompendo a calmaria da natureza. Proxie foi ao encontro de Roccan. Seguindo pessoalmente atrás de suas respostas, ela não conseguia acreditar no que via. Aquele que deveria estar morto permanecia de pé, mantendo todas as suas roupas e a aparência desleixada.
— Isso é impossível… eu vi você morrer!
— Minha nossa! O que é esse ser de metal? Ela é sua amiga? — O morador experiente se assustou.
— Ah, oi, moça voadora.
— Ela também voa!?
— Não dê ouvidos a esse idiota, vai acabar ainda mais confuso! Além disso, eu deveria ser a responsável pelas perguntas! — Proxie perdeu a paciência.
— Claro, vá em frente.
— Por que você está vivo!? Isso não faz sen–
Um bombardeio obliterou o cemitério. Outra nave sobrevoou a região, disparando ininterruptamente contra o grupo distraído. Uma chuva de mísseis atingiu o solo, fazendo o terreno estremecer. Em meio à destruição desenfreada, partículas rosa se misturaram à poeira das explosões. Roccan utilizou os seus poderes para escapar com os seus companheiros, criando portais que o distanciaram da catástrofe.
Os vivos foram salvos do ataque letal, mas os túmulos se encontravam inteiramente devastados. Objetos preciosos eram despedaçados entre os escombros, que um dia formaram um descanso para os mortos. O cajado do velho feiticeiro contemplava — uma última vez — memórias que nunca mais retornariam. Lembranças de décadas eram partidas ao meio, e seus restos transformados em cinzas.
— Garoto, o que… isso é impossível… — O observador não conseguia manter a compostura.
Cessando o fogo, a nave enfim aterrissou sobre os destroços dos jazigos. Deixando o veículo espacial, Tyler confrontou o grupo pessoalmente.
— Se escondendo em uma terra tão primitiva. Você desonra o poder das relíquias, Proxie.
— Esse lugar não pertence à STONES, Tyler. Some daqui.
— Não faz ideia do quanto eu quero ir embora, mas, essa relíquia nos pertence.
— Ah, fala sério. Essa coisa não vai fazer falta para vocês. Seu público é formado por idiotas. Gente estúpida costuma andar de mãos dadas.
Os olhos da garota buscavam por seus companheiros. A poeira, proveniente do bombardeio, não permitia que ela visse a expressão de Roccan, mas o garoto parecia preparado para o combate. De pé, ele permaneceu imóvel, seus ouvidos aguardavam ansiosamente por uma oportunidade para agir.
— Moleque, me mostre o seu poder. Me leve ao alto!
Uma resposta imediata. Portais teleportaram a jovem para os céus, permitindo a ativação de seus planadores. Pairando sobre as demais cabeças, ela utilizava o equipamento para se aproximar do inimigo. Tyler aceitou o confronto, utilizando um artefato que se opunha à tecnologia. Uma pedra esculpida no formato de um catavento, o homem convocava o poder de uma relíquia de ação.
— Seus truques estão ultrapassados, garota. A resistência foi superada.
Uma corrente de ar atormentava os pássaros da região, a formação de um furacão imergiu o ambiente no caos absoluto. Diante de uma tempestade de ventos implacáveis, o planador perdeu o controle. A atacante começou a ceder para um poder massivo. Proxie não conseguia mais seguir em direção ao seu oponente, carregada pela força do desastre natural.
Nada aparentava ser capaz de interromper a corrente área, que fazia até mesmo árvores voarem em um fluxo inescapável. Tyler permaneceu parado, controlando a situação a partir do olho do furacão. Uma calma que contrastava diretamente com os berros desesperados de sua adversária, cujas as ordens não alcançavam mais a audição dos companheiros.
— Não dá para combatê-lo na área do furacão, esse é o seu domínio! Precisamos sair daqui!
— Que bom que entendeu, pirralha atrevida! Me entregue a relíquia e eu–
— Já chega.
Um portal surgiu sob os pés do homem confiante. A poeira rosa criou o caminho para o alcance de um rapaz enfurecido. Tyler foi teleportado para longe do furacão, indo parar na frente de Roccan.
— Você foi bem, moça voadora. Pode descansar agora.
O tom da voz fez todos se questionarem sobre quem realmente estava falando. Uma postura firme e intimidadora concebia uma imagem de plena seriedade. Os lábios do garoto sabiam que aquela não era hora para sorrir.
— O que você fez, pirralho? Acha que um poder desses me ameaça? Mesmo que me acerte, a STONE vai–
Um agarrão levou a cabeça de Tyler ao solo. Com uma força capaz de escavar o terreno lamacento, o golpe fez o rosto do inimigo afundar na terra amolecida.
— Serei eu quem levará essa luta adiante.
— Argh!!!
A vítima desmaiou após um impacto desnorteador, engolindo todo o lodo em seu trajeto, graças à sua boca aberta.
— E-ele… ele consegue fazer algo assim!?!? — Proxie se surpreendeu com a vitória repentina.
— Seu amigo é assustador… — O morador experiente complementou a garota.
— Ele não costumava fazer isso!
Encarando os destroços do cemitério de cabeça erguida, Roccan fez uma última afirmação para os seus companheiros, que apenas conseguiam ver seus ombros largos e a sua postura ereta.
— Alguém precisa continuar o que vocês começaram.