Rei dos Melhores Brasileira

Autor(a): Eme


Volume 1

Capítulo 39: Acaso ou Destino

O inverno castigava aqueles que não se prepararam para um dia de neve, praguejavam os que ignoraram as previsões do tempo. Por outro lado, as pessoas bem agasalhadas caminhavam apreciando a beleza do manto branco que começava a cobrir as ruas, casas e carros.

Entre os seres humanos mais afetados pelas mudanças climáticas existia a parcela no qual o frio invernal era acompanhado por uma sensação de terror, onde a vida e a morte caminhavam ao lado da indiferença social de muitos e da ajuda inestimável de poucos. 

— Aqui, se cobre com isso — disse o rapaz de óculos redondo, entregando um cobertor para o morador de rua.

“Então é essa condição que aparento?!”, refletiu Gabrio, aceitando o cobertor. Realmente, seu estado indicava essa possível situação.

Uma mistura de suor e lama preenchia todo seu corpo, os sapatos estavam desgastados, um deles com a abertura na lateral que mostrava parte do pé, as vestimentas rasgadas e com furos grandes o suficiente para ver a pele, além disso, as roupas molhadas não davam a opção de recusar um agasalho.

“Podia ter ido para perto de casa... se é que ainda tenho uma”, pensou ele, indignado por estar tão longe.

A pedra de transporte o levou para a cidade onde tudo começou, mas em claro desespero, escolheu por impulso o local no mapa, parando distante de casa, longe o suficiente para nem arriscar ir a pé nesse clima.

Sem direção, decidiu sentar no primeiro lugar que viu e organizar suas ideias, encarava a notificação na tela do celular.   

Atenção!

Tempo para entrada diária: 11h38 min.

Se o jogador estourar o tempo será desclassificado!

O aplicativo informava o tempo que tinha para entrar em outra partida.

— Desclassificado?! Será o fim de jogo? Ou retorno pra minha vida comum? — questionou Gabrio, levantando uma possibilidade que agradaria no momento.

“Não tenho dinheiro, pessoas que conheço ou recursos no aplicativo para outra viagem...” Afunilava cada vez mais as suas possibilidades.

— Talvez... pedir esmola?! — falou para si. No seu estado não seria uma tarefa difícil, precisaria do suficiente para uma passagem de trem. Contudo, as ruas vazias não contribuíam para sua ideia.

— Bel... espero que esteja bem... — disse ele, soprando o ar gelado.

“Não faz sentido me preocupar.” Refletia sobre a sensação que ainda o consumia. “Afinal... ela que me mandou embora.”

Gabrio buscava entender o motivo de ficar tão abalado com cada palavra da ruiva, deveria estar acostumado, todas as mulheres que entraram em sua vida simplesmente se desfizeram dele quando não correspondeu as suas expectativas.

Durante muito tempo se afogou no trabalho, evitando qualquer tipo de relacionamento social, seus poucos amigos estavam espalhados pelo planeta, em um laboratório ou quartel militar, o que não importava mais, pois todos o esqueceram.

— Meu jovem, o que faz sentado aí?

A pergunta veio da senhora cheia de sacolas.

— Me desculpe, eu...

Gabrio parou de falar assim que levantou a cabeça.

“Que mundo pequeno é esse?”, pensou ele, ao reconhecer a senhora idosa ao seu lado.

A velhinha culpada de atrasá-lo, aquela que o fez recuar ao atravessar o sinal, a responsável por conhecer Bel e se tornar um jogador, tudo partiu do simples fato de ajudá-la.

— A noite está chegando e o frio vai piorar — falou a senhora, quando ele travou ao vê-la. — Aqui não é um bom lugar para você ficar...

— Entendi, vou embora. — Levantou-se rapidamente.

— Não, espere! — A idosa largou as sacolas para segurar seu braço, o impedindo de ir, seus objetos se espalharam na calçada, várias latas de sopa. — Meu jovem, as ruas estão congelando, se não tem lugar para ir pode vir comigo.

“Por que acho que já vi essa cena?!” Gabrio olhava perplexo a velhinha tentando reaver seus pertences do chão, que escapavam dela. 

Aos suspiros, abaixou para pegar as várias latas de comida em conserva, sopas e alguns temperos.

— Obrigada! — falou ela, seguindo para entrada do prédio.

Gabrio assentiu e virou para seguir seu caminho.

— Venha logo, menino! — chamou a velhinha, apontando para a porta. 

“Acaso... ou destino...” Gabrio sorria incrédulo, suas pernas realmente caminhavam na direção da pessoa que indiretamente mudou sua vida.

— A senhora não deveria andar carregando sacolas sozinha por aí — disparou ele, as pegando gentilmente das mãos dela.

A porta dava acesso direto a sala espaçosa com um imenso tapete que cobria todo o chão, o sofá largo e marrom era a única mobília, a escada de madeira na lateral levava aos outros andares e, bem ao fundo, o largo portal arqueado na parede revelava a cozinha.

— Vovó! — A gritaria começou assim que viram a senhora entrar.

O prédio de três andares estava repleto de crianças que corriam de um lado para o outro.

— Bem-vindos!

A garota de avental recepcionava eles com um sorriso.

— Pode me entregar isso. — Ela pegou as sacolas das mãos dele.

A menina, com cerca de quinze anos, vestia o avental com flores coloridas e cobria seus cabelos pretos com o lenço amarelo, provavelmente, a mais velha entre os que via. Rapidamente, se reuniram em volta da idosa, comemoravam o retorno da velhinha a guiando para o sofá, algumas olhavam curiosas para o recém-chegado.

— Calma, crianças! — falava tentando segurar todos ao mesmo tempo — Esse rapaz é um amigo, vai ficar conosco hoje.

Todos o olharam juntos, sem questionar, apenas sorrisos.

— Qual seu nome?! — gritou uma delas, puxando para algum lugar.

— Gabrio... — respondeu, seguindo o menino.

A criança o deixou na frente de uma porta e correu, de cima da escada, as outras jogaram algo para ele. Contente com trabalho em equipe, o menino retornou, parando na frente de Gabrio, oferecendo uma toalha e roupas.

— Gabrio! Você está sujo e fedendo! — exclamou o menino, apontando para porta. — Vá tomar banho para poder jantar!

Ele ficou sem palavras ao receber aquela ordem de uma criança, a idosa e as outras explodiram em risadas.

— Liu! — interviu a menina de avental. — Não é assim que se fala com um convidado.

A garota o levantou no ar, segurando pela cintura fina.

— Desculpe, ele é um dos mais velhos daqui, acredita que é responsável por organizar as coisas — explicou ela, com o semblante envergonhado.

— Tudo bem, ele não tá errado.

Gabrio passou a mão nos cabelos do garoto, que fazia um bico.

— Vou fazer o que mandou — disse ao menino.

— Quando sair, me entregue suas roupas sujas! — gritou a senhora, antes dele fechar a porta. — Vou dar um jeito nelas.

Gabrio entrou no banheiro com vários chuveiros, torneiras e pias, além de uma banheira grande.

A água escorreu por todo seu corpo levando toda a imundice acumulada dos últimos dias, algo que demorou bastante.

“Bem... o Realod tem suas vantagens”, concluiu ele, no fim das partidas o efeito regenerava suas roupas, mas não só isso, também removia a sujeira, ferimentos ou qualquer coisa que afetou o jogador na partida. Em termos mais avançado, o Reload era uma reconstituição molecular instantânea.

— Se soubesse de algo assim... Hein?! Doutora, Sophia! Certeza que ia gostar — murmurou, em baixo do chuveiro. Com toda certeza, sua mãe iria ficar fascinada com algo daquele tipo.

Gabrio vestiu as roupas pequenas que lhe deram, possivelmente de algum adolescente, a camisa branca com desenhos de caveiras e uma calça verde que ficou dois palmos acima de seu tornozelo.

— O jantar está na mesa — disse a menina de avental e sentou-se do outro lado.

A garota colocou sobre a mesa uma tigela branca e lhe entregou uma colher.

Gabrio olhou em volta procurando as crianças energéticas.

— Coloquei elas para dormir. — A velhinha levou uma colher a boca. — Hoje está muito frio, nada melhor que a cama quentinha.

Sem palavras, observou o líquido borbulhar na tigela.

 “Tinha que ser sopa?”, reclamou ele, em pensamento. Aquela refeição o fez lembrar dos momentos com a ruiva.

 — Algo de errado? Sei que não é a melhor das refeições, mas...

A menina de avental o viu encarar o prato.

— Não, tudo bem. — Começou a comer de prontidão — É que me lembrei de algo.

A refeição estava longe de ser algo saboroso, contudo estava quente o suficiente para aquele clima gélido.

— Meu nome é Anna — a idosa finalmente se apresentou —, a mocinha aqui é a Mirian, juntas gerenciamos esse orfanato.

— Eu... Gabrio Wisley... — revelou ele, notando que as duas esperavam saber seu nome. — Obrigado pela refeição.

— O que um rapaz bonito como você fazia sentado na minha calçada? — perguntou Anna, esboçando seu sorriso costumeiro.

— Eu estava... procurando abrigo... sou um morador de rua... — respondeu tímido, criando sua versão dos fatos.

— Conheço moradores de rua, inclusive já fui uma — revelou a velhinha segurando as mãos dele entre as suas. — Meu rapaz, você não é um, os infortunados de verdade jamais escolheriam um lugar tão aberto e de cobertura tão fina para se proteger. 

Gabrio ergueu as sobrancelhas surpreso, mas o que a senhora falava fazia parte da lógica de sobrevivência abstraída do dia a dia de uma pessoa que viveu nas ruas, em que uma escolha errada poderia ser a última.

 

— Você é uma pessoa com um enorme problema — concluiu a senhora. — Seus olhos entregam isso.

— Não... eu... — Ele tentava montar uma história convincente, mas não conseguiu.

— Muitas crianças chegam aqui com o mesmo olhar que você. — Anna ainda o apertava forte pelas mãos. — O olhar de quem foi abandonado.

“Meu Deus! Eu sou um livro aberto”, resmungou ele, mentalmente e suspirou forte.

Gabrio abaixou a cabeça, não disse mais nada.

— Não se preocupe, a vovó é ótima para cuidar de pessoas perdidas — disse Mirian, exibindo seu sorriso juvenil como resposta, continha uma áurea animada que o contagiava.

Miau!

O gato pulou em cima da mesa.

Gabrio engasgou, seu coração quase parou.

— Luz! O que tá fazendo?! — ralhou Mirian, segurando o gatinho no colo.

— Ela veio conhecer nosso hóspede — informou Anna, acariciando o animal que ronronou. — Essa é a Luz, nossa guardiã.

Gabrio encarou os olhos azuis da gatinha, os olhos felinos pareciam julgá-lo. Delicadamente, acariciou os pelos brancos, compridos e macios do animal, percebendo que as três finas listras pretas nas costas não deixavam ser completamente alvas.

— Vamos! Temos veterinário hoje! — alertou Mirian. — Tchau, até mais tarde, vovó!

A garota se despediu, colocou o casaco e saiu pela porta, com a gata se contorcendo em seus braços.

O silêncio foi inquietante por alguns minutos.

— Eu tenho uma amiga... — falou Gabrio, de repente, atraindo a atenção da velhinha. — Ela me tirou da sua vida... disse que estava atrapalhando...

— Alguém que fez isso com você é mesmo sua amiga? — indagou a idosa, atenciosa por estar se abrindo.

­— Bem... ela mentiu pra mim — respondeu ele. — Na verdade, me afastou pra me proteger, isso ficou bem óbvio. Sabia que do lado dela eu ia ser um alvo dos inimigos.

— E concorda com ela? — Anna o questionou mais uma vez.

Gabrio encarou o teto, reflexivo.

— Só ajudaria ela com um milagre, mas não acredito muito nisso — disse ele, com seriedade.

— Vou te contar algo — falou Anna.

A idosa recostou na cadeira, encarando o vazio.

 — Alguns dias atrás saí para comprar brinquedos para o aniversário do orfanato — começou ela.

Gabrio gelou por dentro com aquelas palavras, ainda lembrava, perfeitamente, de cada detalhe.

— Sempre damos presentes nessa data. Naquele dia, quando cheguei no orfanato, tudo estava em chamas, o bairro inteiro pegou fogo...

A sua expressão relembrava a dor da cena.

— As crianças... alguma delas... — Gabrio não teve coragem para terminar a pergunta.

— Não, nada aconteceu com elas, estão todas aqui. — A velhinha sorriu batendo de leve em seu ombro. — Um milagre aconteceu.

— Um milagre? — falou, curioso.

— Sim, daqueles incríveis! — explicava enquanto espantava a sensação de agonia da mente — Entrei em pânico quando cheguei no local, mas algumas horas depois recebi a ligação de Mirian, ela e as crianças foram amarradas por alguém e deixadas no meio da praça aqui perto. Ela não fazia ideia de quem ou como chegaram lá, mas as crianças gritavam que foi um gatinho vermelho que as salvou, mas é só isso que lembram também.

“Amarradas por um gatinho vermelho... que bizarro...” Refletia sobre os detalhes da história.

— Os jornais disseram que um vazamento de gás foi a causa do incêndio que destruiu metade do bairro, mas... não sei...

“Uma desculpa dos jornais e pessoas esquecendo... tudo indicava ser resultado de um jogo”, concluiu ele, juntando os fatos ao que presenciou recentemente.

— O terror que senti por pensar que perdi essas crianças... nem consigo descrever. Mas isso... é porque amo elas! E você, menino?! O que sente por tá longe da sua amiga?! Acha que pode ser amor?!

A mente de Gabrio internalizou aquelas perguntas, porém a resposta não surgia claramente. Na sua cabeça, não sabia quase nada sobre a ruiva, a sua idade, de onde veio e muito menos seu passado dentro do jogo, conhecia seu nome e nada mais. Contudo, os dois não fizeram perguntas pessoais sobre o outro, nada que estreitassem a relação que tinham fora da competição.

— Acho que a culpa é minha — disse ele, após sintetizar seus pensamentos. — Nunca me interessei de verdade por uma coisa que ela gostava muito.

— E quer voltar para ela? — perguntou Anna, avaliando sua expressão triste.

Gabrio pensou em tudo que viveu nos últimos dias antes de responder.

— Talvez... queria fazer algo para ajudar, mas não sei como.

— Hum... olha... sobre Luz... a gata é para confortar as crianças depois do acidente — revelou ela. — A crença delas de que o animal vai protegê-las do mal é algo que faz com que durmam sem traumas.

— Uma crença?! A gata é tipo um amuleto?!

— Isso, isso... na vida quase tudo é limitado entre verdade ou mentira, mas se tiver fé, a menor que seja...  A vida passa a ser aquilo que acredita ser possível! — exclamou Anna, com sabedoria. — Se quer ficar com sua amiga... encontre um jeito de provar que pode fazer isso. Não desista.

Fé?! Hehe... — Gabrio riu brevemente. — Na minha profissão, nos baseamos em teorias, cálculos e dados.

— E deu certo? — rebateu Anna, incisiva. — Talvez precise de uma mudança. Será que tentou mostrar o seu melhor pra ela?

“Acho que não...” Refletiu sobre a pergunta. “Na verdade, não quis tentar.”

— Não pule no abismo, menino. Encontre um jeito de contorná-lo — finalizou ela, com seu sorriso largo.

Gabrio a encarou de volta, perplexo.

“Por que toda vez que te encontro é pra mudar minha vida?”, pensou ele, a idosa não fazia ideia de como o encontro deles influenciava seu destino.

— Ah! Sim! — alertou Anna. — Encontrei essas coisas no bolso do seu casaco.

A idosa depositou na sua mão dois cartões. Um deles era a foto que tirou com Bel na Time Square, em que, no encaixe de cabeça, a ruiva era lua emburrada e Gabrio era o sol sorridente.

O segundo cartão mostrava de um lado a gravura da coroa dourada, o mesmo no aplicativo do RDM, recebeu na herança com o celular, com as palavras do seu pai gravadas no verso.

A resposta está no Mundo dos Sonhos

Além da pegadinha da herança, ainda tinha um enigma para resolver.

— Sua amiga parece alguém que vale a pena se esforçar — disse Anna. — Gabrio... vai atrás da sua garota.

“Acho que eu deveria ter explicado melhor... Se ela escutasse isso de ser minha...” A mente dele o advertia do equívoco, imaginou a fúria de Bel.

Clin!

Seu aplicativo bipou.

Atenção!

Não houve Campeões!

O jogo vai recomeçar no local!

Deseja participar?!

Sim ou Não

As mãos de Gabrio tremeram ao olhar na tela, em um ato desesperado, clicou no mapa.

— Não! Não tinha círculos aqui! — gritou ele, assustando Anna.

— Calma, menino... o que aconteceu?!

A idosa arregalou os olhos com sua atitude em pânico.

O mapa do jogo estava claro, o imenso círculo amarelo surgiu.

Um jogo iria começar e, por azar, aquele orfanato estava no olho do furacão.



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