Volume 1
Capítulo 29: Sorte ou Azar
As pequenas casas feitas de madeira escurecida possuíam várias janelas e varandas compridas, as árvores ao redor denunciavam sua localização em uma zona rural. No entanto, as ruas eram pavimentadas e acessíveis para qualquer meio de transporte, ao contrário daquele casebre sinistro no meio da ilha.
— Dark?! — chamou Bel. — Tá me ouvindo?
— Iiih! O Noob tá viajando! — zombou Gunner, colocando lenha na fogueira.
Gabrio lançou um olhar desconcertado.
— Foi mal! Me distraí. — Desculpou-se, coçando a cabeça.
— Presta atenção! — ralhou Bel. — Vou te ensinar a supor o tipo de jogo pelo tamanho do círculo.
Bel apontava o mapa no celular.
— Aqui, já estamos dentro dele.
Gabrio acompanhou, observando seu aparelho.
A área do jogo cobria toda a cidade e parte da região próxima.
— Um raio circular desse tamanho sugere uma eliminação ou sobrevivência — falava enquanto esticava os braços e alongava as costas —, particularmente, gosto dos dois.
— Particularmente... queria estar em casa! — alfinetou Gunner.
— Cala a boca! Tem sorte de ainda está com a cabeça presa ao pescoço — rebateu áspera.
Gunner coçava a barbicha, exibindo uma careta contrariada.
— Por Ala! Isso é passado! Como você é rancorosa — reclamou ele, interpretando inocência.
— Por que um círculo amarelo? Não é um jogo fácil demais pra vocês? — indagou Gabrio.
— Você já se deu a resposta, Noob.
Gunner sacou a arma e girou nos dedos.
— Fraco pra nós, mas perfeito pra você — completou ele.
Por mais que doesse, aquilo era algo que Gabrio não podia discordar, era evidente que aqueles dois estavam em outro patamar e, o mais irritante, Gunner adorava expor isso.
— Na verdade... a culpa é sua, idiota! — bramiu Bel, apontando para o atirador.
— Eeeu?! — rebateu Gunner, levando as mãos ao peito, demonstrando uma expressão chocada.
— Agora tenho que ensinar como usar a espada! E quem entregou pra ele? — acusou ela.
— Mestra, não terminou de explicar como supor o tipo de jogo pelo tamanho do círculo! — disparou Gunner, mudando de assunto. — Por favor, não nos deixe cair na escuridão do RDM!
Bel levou as duas mãos na cabeça, pasma por esquecer.
— Mil perdões, meus pupilos! Continuando, um círculo médio... — retomou a explicação.
Gabrio fitava o atirador, algo nele chamava a atenção. Por algum motivo, todas as suas ações pareciam ser planejadas.
“Então é assim que um jogador experiente se comporta?”, pensou ele. Afinal, Gunner agia como se estivesse em um eterno jogo de xadrez.
Por outro lado, Bel não deixava brechas para saber o que estava tramando, era uma incógnita. A ruiva era tão misteriosa que ele adquiriu receio de fazer perguntas, ou talvez, medo das respostas. Entretanto, a garota repleta de segredos foi aquela que salvou sua vida. Sendo assim, fazer vista grossa para suas atitudes, via aquilo como uma retribuição.
— ...o muito pequeno pode ser de combate, tem outros tipos, mas foquem nos mais comuns — terminou Bel. — Entenderam?!
— É... claro — mentiu Gabrio, não escutou nada.
Gunner deu uma risada abafada, percebendo que a mente dele estava em outra dimensão durante as palavras da ruiva.
Bel estreitou os olhos, desconfiando o mesmo.
— Eu vou partir seu crânio...
A gota de água caiu no nariz da ruiva, interrompendo sua cólera. Em seguida, veio outra e, pouco a pouco, a chuva foi se desmontando sobre eles.
— Não... que droga! — reclamou ela.
— Isso faz parte do jogo? — perguntou Gunner, levantando o capuz.
O aplicativo bipou dando a resposta.
AVISO!
Uma partida vai ser iniciada neste local!
Tempo de início: 4 min
Deseja participar?!
Sim ou Não
Gabrio suspirou, uma nova loucura estava prestes a começar.
***
Bel procurou um local para que se abrigassem da chuva antes de entrar na partida. Na praça de um parquinho infantil, encontrou uma barraca coberta por telhas de madeira, com enfeites de argolas penduradas por toda lateral.
“Chuva?! Por que tô tão azarada assim?!”, pensou ela, inconformada.
Na concepção de muitos, o barulho da chuva era algo apreciável. Bel já esteve entre essas pessoas, amava a som da tempestade. No entanto, devido seus poderes, as gotas chegavam até os ouvidos dela como um martelar de pregos desordenados, a água escorria por sua pele sensível fazendo-a tremer de frio, além disso, seu campo de visão se limitava, enxergava apenas o que estava próximo, o resto a chuva encobria.
“Bem... pelo menos ainda tenho o Poltergeist”, considerou ela, havia outra consequência, durante a chuva uma das suas habilidades ficava inativa, algo que só era usado em casos de emergência.
— Alguma coisa de errado com a chuva? — perguntou Gabrio, notando seu incômodo.
— Nada que precise se preocupar — respondeu com tranquilidade, esfregando as mãos nos braços para aquecê-los.
— Hum... uma fraqueza?! — sugeriu Gunner, com um sorriso malicioso.
— Ainda consigo te matar de olhos vendados, não abusa da sorte! — ameaçou, lançando seu olhar mortal.
— Caramba... não sabe mesmo brincar... — resmungou o atirador.
— Tem a ver com esses seus... — Gabrio gesticulou alguns golpes de luta e completou. — Sentidos de ninja?!
Bel deu um leve empurrão em seu ombro, como protesto, encerrando a imitação desajeitada dele.
— Não... é... outra coisa... gosto de ter todas as minhas opções disponíveis.
A ruiva olhou a contagem do aplicativo, faltavam alguns segundos.
— Ah! Conta aí! Vai deixar a gente na curiosidade?! — protestou Gunner, imitando um tom revoltado.
— Cala a boca! Vamos, tá na hora — mandou ela.
Ambos clicaram no aplicativo. Logo, a notificação do tipo de partida surgiu.
Bem-vindo!
Sobreviva até o tempo acabar!
Quanto menor o tempo... maior seus problemas!
Os que restarem vencem!
Tempo restante: 25 min
Boa sorte!
“Uma sobrevivência simples!” Bel alegrou-se ao ver aquelas palavras, um jogo daqueles, era a melhor notícia possível para o cenário de chuva.
— Olha! Nessa partida não tem a quantidade de campeões — constatou Gunner. — Isso explica a mudança de clima.
— Como assim? — perguntou Gabrio.
— Monstros ou condição climática, um círculo amarelo só escolhe um dos dois — relatou Bel. — Quando tem monstros existe um limite de vencedores, o que não acontece em condições climáticas.
A ruiva puxou seu lenço, amarrando os cabelos.
— Por sorte, só a mudança de clima é mais fácil pra novatos — destacou Gunner
O atirador retirava a munição do bolso, preenchendo o tambor do revólver.
Gabrio encarava com atenção seus preparativos. Após amarrar suas mechas ruivas, Bel esticou a mão, convocando uma das adagas. Do outro lado, o atirador ajustava o capuz, segurando firme sua pistola. Para o novato, transmitiam uma confiança imponente.
A ruiva correu para fora da cabana, seguida pelos dois. No instante que saíram, a enorme pedra de gelo caiu no local.
— Chuva de granizo — alertou Bel.
As centenas de bolas esbranquiçadas e translúcidas despencavam por toda a extensão do mapa, possuíam cerca de dois metros de diâmetro, o impacto no solo deixava crateras, derrubando as casas como se fossem de brinquedo.
Gunner disparava freneticamente, despedaçando o granizo a cada bala.
— Vou ensinar ele a usar a espada, segura as pontas aí — mandou Bel.
— Ei! Vai me deixar com o serviço pesado? — protestou.
— Oh! Não dá conta de umas pedrinhas? — rebateu ela.
O atirador abriu seu portal circular de riscos alaranjados, retirando uma metralhadora pesada e, apoiando no chão um dos joelhos, começou seus disparos com precisão impecável.
— Preciso responder? — Gabou-se ele, presunçoso.
O sorriso de Gunner desmontou por completo, nenhum deles lhe dava atenção, foi ignorado.
— Que falta de respeito — resmungou carrancudo, continuando seu tiro ao alvo com o granizo.
“Por quê? Tinha que ser uma da calamidade?”, pensou Bel, ainda sem compreender as ironias daquela competição.
— As Relíquias da Calamidade são armas ultrarraras! — explicou ela. — São encontradas em círculos vermelhos, após matar o Boss.
— Uau! Então é algo que ainda estou distante de encarar — constatou Gabrio.
Bel exibiu um sorriso cínico, o novato não fazia ideia do quanto estava longe de conseguir vencer um Boss de círculo vermelho.
— Bem... não tem nem como te explicar isso agora — disse ela. — Vamos focar na maluquice da sua arma.
Gabrio meneou a cabeça, esperando que continuasse.
— Existem três condições pra ter uma Relíquia da Calamidade — falava contando nos dedos —, a primeira, vem antes da Ligação Astral, exige que seja compatível com ela! Caso contrário... morte!
A boca de Gabrio abriu até o queixo ao ouvir a última palavra.
— A segunda já é durante a ligação, onde você precisa ter energia física e mágica que a arma considere satisfatória pra ser empunhada. Se não tiver... morte! — Ela levantou mais um dedo.
Dessa vez, seus olhos arregalaram.
— E por último, a arma precisa te aceitar como usuário! Se não aceitar...
Bel ergueu o terceiro dedo, deixando a centímetros do rosto dele, quase os esfregando.
— Morte! — completou séria.
De imediato, Gabrio encarou abismado a direção do atirador, na questão de vinte segundos que pegou naquela arma arriscou morrer três vezes. Gunner devolveu um sorriso largo, sem dúvidas, não havia remorso nenhum naquele jogador.
A ruiva lançou a adaga despedaçando uma pedra que caia por perto.
— Ei! — chamou ela, na direção do atirador. — Presta atenção!
Aos resmungos, Gunner mantinha seu tiroteio, os protegendo das pedras.
— Depois de tudo que você disse... — ponderou Gabrio. — Não faz sentido essa coisa tá comigo.
— Minha teoria é que o fato dos seus poderes terem aquela palavrinha de... elementos — sussurrou a última palavra —, fez você ser compatível. Outra... é que durante a Ligação Astral, minha restrição impediu que a arma drenasse toda sua energia, mas... o que não entendo...
Bel estreitou os olhos, fazendo um bico.
— O porquê que ela te aceitou — finalizou, pensativa.
— Bem... talvez a arma me enxergou como um jogador poderoso — sugeriu Gabrio, sorrindo audacioso.
— Hihi... Não! Tenho certeza que... Hihi... Não foi isso! — desdenhou ela, entre risinhos.
Gabrio respirou fundo, o deboche que faziam com ele estava mais comum que o normal.
— Então foi sorte?! — sugeriu ele, mal-humorado.
— Dark, a Ligação Astral é a condição que faz a arma ser dependente do seu poder — explicou Bel. — Quanto mais forte o usuário, mas poderosa fica. Além disso, se você morrer... ela já era! Mas se for destruída... você continua de boa! Consegue entender?!
— Sim, essa tal ligação é uma condição que só beneficia a arma se o usuário for forte, se unir a alguém fraco como eu...
Gabrio levou a mão ao queixo, pensativo.
— Então foi azar?! — argumentou novamente.
— Sorte ou azar? — Bel deu algumas risadas e continuou. — Isso é uma coisa que não sabe desde o dia entrou nessa competição. Mas pra mim...
A ruiva fechou os olhos, erguendo as mãos, como se estivesse sendo banhada por alguma luz divina.
— Isso é a loucura do RDM! A mais louca das loucuras! — proclamou ela.
O novato se manteve incrédulo diante da sua atitude sinistra.
— Mas vamos lá! Chega de papo! Saque logo essa coisa! — falou ela, como se nada tivesse acontecido.
Ainda perplexo, Gabrio puxou o celular.
— Não! Não precisa disso! — repreendeu Bel. — Apenas estica a mão e pense na arma, a Ligação Astral vai trazê-la até você.
Para sua surpresa, foi mais fácil do que imaginava, assim como ela disse, a espada de lâmina negra se materializou em sua mão.
— Uau! Isso é muito legal! — falava todo empolgado — Isso é parecido com... com...
Gabrio a encarou direção da ruiva. Bel o fitava de volta, com um sorriso cínico que deixava tudo claro.
— Lógico! A Rainha Demônio tinha que ter uma Relíquia da Calamidade também, né?! — constatou ele.
Bel esticou as mãos, convocando suas adagas, da mesma forma que ele.
— Prepare-se! — alertou ela.
— Pre-preparar pra quê? — gaguejou Gabrio, não gostando nada do que estava imaginando.
A ruiva pressionou a lateral da adaga nos lábios.
— Vamos ver do que é capaz — disse ela, deslizando a arma pelo rosto. — Dark Onix.
Gabrio estremeceu, o treinamento com espada não seria efetuado por Bel. Para seu azar, a professora de esgrima seria a jogadora Scarlet Moon.