Rei dos Melhores Brasileira

Autor(a): Eme


Volume 1

Capítulo 30: Luzes do Passado

O contraste entre rochas rústicas e madeiras escuras predominavam as construções da pequena cidade do sudoeste alemão. Naquele lugar, a população com pouco mais de cinco mil habitantes fazia questão de harmonizar sua vida à vegetação, por onde quer que olhassem, havia o verde musgo das árvores e arbustos.

No entanto, os nativos estavam em pânico, não compreendiam o porquê de toda aquela fúria. Pois, a natureza que mais amavam... castigava-os sem piedade.

A chuva de granizo transformava as ruas em estradas esburacadas e as casas eram esmagadas, tonavam-se entulho entre as pedras frias que derretiam.

Diante da chuva de gelo, alguns não corriam em busca de salvação, pelo contrário, contribuíam com a desordem.

***

Gabrio atravessou o muro de pedra, rolando no chão até parar de peito para cima, seus pulmões clamavam por ar.

— Levanta! — mandou Scarlet.

— Espera... Eu...

— Mantenha as pernas firmes e erga mais os cotovelos! — bramiu ela.

O novato levantou ofegante, segurava a espada na mão esquerda, a ponta dos dedos gotejava sangue.

“Sem dúvida! Dessa vez ela vai me matar!”, pensou Gabrio, arrependido de ter pedido essa aula.

A postura de Bel durante o jogo mudava completamente, Scarlet Moon parecia ser outra pessoa, em cinco minutos de treinamento, Gabrio quebrou duas costelas, perdeu dois dentes, o lado esquerdo do rosto estava inchado e um olho roxo, além de tudo isso, estava preenchido de cortes e hematomas.

O aplicativo já havia avisado.

Atenção!

O jogador perdeu 12% de Vitalidade!

— Pronto?! Vamos de novo! — alertou ela.

Scarlet avançou, movendo as adagas em cortes diagonais, lhe obrigando a se defender para não perder um dos braços.

O impacto de cada golpe era pesado, amparar sua lâmina era como segurar o avanço de um trem com as mãos nuas.

A ruiva desviou da rara tentativa de ataque com a espada, girou a adaga para mais um corte, Gabrio preparou-se para defender, mas em vez de atacar ela se abaixou.

A rasteira foi rápida, antes que percebesse, Scarlet completou o giro no solo e já estava de pé.

Gabrio sentiu que perdeu o contato com o chão e, ainda no ar, a ruiva o chutou como uma bola de futebol.

O corpo dele arqueou com impacto e saiu em alta velocidade, atravessando as pedras de gelo e casas na frente.

— Não foque só na arma do seu adversário! — advertiu ela.   

Gabrio levantou cuspindo sangue, mais uma costela para coleção de ossos quebrados.

Dano crítico!

O jogador perderá 0,5% de Vitalidade por segundo!

— Vamos de novo!

A ruiva avançou novamente.

O novato girou a espada defendendo o corte pela direita, rapidamente, se afastou evitando o soco cruzado.

Scarlet sorriu, animada.

“Estava quase desistindo!”, pensou ela, seu aprendiz finalmente percebeu o padrão de luta. Desde do começo, fez questão de repetir seus cincos movimentos iniciais, deixando uma abertura ao final do último.

Gabrio desviou do corte pela esquerda, chute na diagonal e, por fim, o movimento com as duas adagas de cima para baixo. O novato possuía apenas um segundo, deixou as adagas passar, desviou girando lateralmente, com a oportunidade, projetou um soco certeiro no queixo da ruiva.

O sorriso empolgado dela sumiu, o punho dele ficou a centímetros de acertá-la.

— Por que parou?! — advertiu irritada.

— Eu não... não quero... te... — Ele tentava montar uma resposta.

— Me machucar?! — retrucou Scarlet.

O silêncio foi sua resposta final, no fundo, sabia que não conseguiria arranhá-la, mas algo não o deixava terminar aquele soco.

— Dark Onix... — chamou ela. O seu tom sério era acompanhado por aquele olhar de julgamento.

Scarlet segurou seu braço estendido e o puxou para frente, acertou seu abdômen com uma joelhada.

Gabrio cuspiu sangue.

Clin!

O jogador recebeu perdeu de 33% da Vitalidade

Atenção jogador!

Se a Vitalidade chegar a zero... fim de jogo!

— Se não parar com isso...

O empurrou para trás e girou acertando um chute, quebrando seu braço direito.

— Se não parar com esse seu jeitinho de bom moço...

Com um soco quebrou o nariz dele.

Clin!

Dano Crítico!

O jogador perderá 0,8% de Vitalidade por segundo

— Se não acordar pro que é o RDM...

Outro chute e deslocou seu joelho.

Clin!

O jogador perdeu 47% da Vitalidade

— Vai morrer! — finalizou.

Scarlet pulou com os dois pés no peito do novato, seu golpe o fez atravessar outra parede de pedra, caindo alguns metros à frente.

Gabrio encarava o céu chuvoso.

As gotas caiam lavando seu rosto, o sangue escorria com a água.

“Por quê?! Por que não consigo?” Sua mente vasculhava os motivos da sua hesitação. “O que tem... de... errado...”

Clin!

Perda de 52,6% da Vitalidade!

... 53,4%... 54,2%...

Ah... também estava chovendo naquele dia”, relembrou Gabrio, sua mente perdida em memórias.

***

O corredor do hospital estava repleto de pessoas amontoadas, os que não conseguiam lugar para repousar sentavam pelo chão, uma consequência do terremoto que atingiu o sexto grau na escala Richter, destruindo parte da cidade, deixando um número exagerado de mortos e centenas de feridos.

— Doutora, Sophia Wisley! Doutora, Sophia Wisley! — O autofalante do hospital berrava o nome várias vezes. — Compareça à sala vinte!

Gabrio subia as escadas pulando os degraus.

— Sério... sete andares?! — resmungou ele, tentando chegar ao terraço.

Com as mãos nos joelhos, empurrou a porta de metal, como esperado, lá estava ela.

Sophia Wisley encontrava-se parada no centro do pátio, de braços cruzados e encarando o céu noturno em silêncio, era iluminada somente pelo fraco brilho celeste.

O branco do jaleco, calças e sapatos ressaltavam sua pele alva e, de tando usar aquelas roupas, eram quase uma segunda camada do corpo. Além disso, seus longos cabelos pretos chegavam até a cintura magra, dificilmente Gabrio os via solto.

— Caramba, mãe! Tá um pandemônio lá em baixo e você aqui curtindo a noitada! — zombou Gabrio.

Sophia sorriu assim que o viu, seus lábios finos alinhavam-se ao nariz pequeno e olhos castanhos, tão escuros quanto a noite acima.

— E como sempre você me achou — respondeu ela, com seu tom doce e delicado.

As poucas rugas na testa e nos cantos dos olhos davam os primeiros sinais da sua chegada a casa dos quarenta anos.

Gabrio sorriu de volta, a voz da sua mãe sempre emanava a sensação de tranquilidade, o mundo poderia estar em chamas, mas mantinha-se daquele jeito, na plenitude.

— Não param de chamar seu nome — informou ele. — Não acha melhor...

— As estrelas — interrompeu ela.

— O que têm elas? — rebateu confuso, olhando para cima.

— O brilho das estrelas demora centenas de anos pra chegar até nós. — Sophia explicava com os olhos fixos no céu. — O que conseguimos ver agora são a beleza sublime delas de um tempo que se foi.

Gabrio prestava atenção, acostumado com aqueles momentos reflexíveis dela.

— São todas... luzes do passado! — completou sua mãe.

— Sim... e... muitas delas já estão mortas, talvez esteja aí! Admirando um cadáver celeste! — relatava se aproximando da mulher apaixonada pelos astros —, mas vamos mesmo discutir cosmologia agora?!

— Ah! Desculpa! Esqueci que o chato do meu filho é um astrofísico, o tipo de profissional que tira a poesia das estrelas — rebateu carrancuda.

Gabrio esperou em silêncio, até ela perceber algo diferente, não demoraria muito.

— Ei... Gabrio?! O que faz aqui?! — Ela finamente notou.

Sophia correu e o abraçou forte.

— Não devia tá do outro lado do mundo?! — disse surpresa.

— A equipe do meu laboratório veio investigar os efeitos anormais do terremoto — explicou, retribuindo o aperto. — Aproveitei pra visitar minha mãe.

— Uau! Então foi sério, pra chegar até importância da NASA! — disse a última palavra com um tom de escárnio, quase a cuspindo.

Gabrio ignorou sua atitude. Na opinião da sua mãe, a agência espacial só se importava em esconder os extraterrestres e com as pedras de marte.

— Doutora, Sophia! — gritou a enfermeira. — Procurei a senhora que nem louca!

A jovem de cabelos loiros ofegava, se apoiando na porta.

— Me espera lá em baixo! Vamos encontrar o seu pai! — disse ela, saindo na direção da enfermeira. — Temos muito o que conversar!

 Gabrio sorriu mais uma vez, observando aquela mulher correndo desajeitada, a mesma que, durante toda sua vida, parecia estar com a cabeça nas nuvens.

Clin!

Perda de 72,6% da Vitalidade!

... 73,4%... 74,2%...

O som do bipe fez Gabrio encarar o céu estrelado, em seguida, seus olhos voltaram para sua mãe de costas.

A figura de Sophia Wisley foi se desfazendo como fumaça. Não só isso, o vento soprou carregando todo aquele cenário, deixando apenas a escuridão.

Gabrio abriu os olhos, as gotas da chuva fizeram proteger o rosto. Com dificuldade, conseguiu levantar do chão, a sua visão embaçada retornava aos poucos. Contudo, um arrependimento chegou ao enxergar a sua volta.

Na sua frente estava algo que sonhava em esquecer.

A avenida congestionada por carros amassados e revirados, centenas de buzinas disparando ao mesmo tempo, chamas que saiam de explosões recorrentes e acidentes simultâneos causados pelo desespero das pessoas que fugiam.

— Cadê?! — gritou Gabrio, tentando correr, mas a perna quebrada dificultava.

Apoiando-se de carro em carro, chegou até chegar ao ponto que lembrava, decorou o caminho, depois do incidente relembrou aquilo em pesadelo inúmeras vezes.

O início era sempre o mesmo, estavam os três no carro. Como de costume, Gabrio e o seu pai iniciavam uma discussão, sua mãe suspirava a cada segundo, mas estava feliz com a reunião em família.

A explosão surgiu de repente com os tremores que racharam o chão, era outro terremoto de escala magnânima. Por um segundo de desatenção, seu pai não conseguiu desviar de uma fissura e o carro captou violentamente, lançando Gabrio e sua mãe para fora.

 — Não! Não! — gritou Gabrio.

Sophia Wisley estava deitada no chão, as pessoas em pânico corriam ignorando a mulher ensanguentada.

Com passos mancos, Gabrio chegou até ela e, delicadamente, abaixou-se colocando sua cabeça sobre em uma das pernas.

De imediato, ela sorriu.

— Vai ficar tudo bem! — bramiu Gabrio, as lágrimas desciam desenfreadas.

O corte profundo atravessava a barriga dela de uma ponta a outra, Sophia pressionava o local com as mãos, tentando conter a hemorragia, mas já havia perdido sangue demais.

— Não mente pra mim... sou médica... esqueceu?! — Ela forçava cada palavra.

Gabrio desviou o olhar, fechando os olhos, suprimindo o desespero.

Socorro! Me Ajude! Por Favor! Alguém!

Os berros surgiam no meio do caos, a voz dele se uniu por vários momentos aos outros, clamando por qualquer ajuda.

— Filho... salve essas pessoas... leve elas pra um hospital... — pediu com o que restava do seu tom amoroso.

— Não! Nenhuma delas parou e voltou! Ninguém veio... Ninguém! — protestou ele, aos prantos.

— Plante o amor e colherá o amor...

— Não! Não vem com essas frases bonitas pro meu lado! Sem chance de eu te deixar aqui! — lamuriou Gabrio.

Sophia esticou a mão, acariciando o rosto dele.

— Escuta, filho... — falava fitando seus olhos — não importa o que aconteça... faça o bem para os outros... coma três refeições por dia... case‐se com uma mulher forte e gentil... seja feliz no que ama... pode ser até na NASA...

Gabrio riu entre as lágrimas, ela alfinetava seu trabalho até naquele momento.

— E... e... lembra do brilho das estrelas?!

Ele balançou a cabeça para dizer que sim, mordendo os próprios lábios.

— Mesmo que a estrela da sua mãe se apague... o brilho dela continuará com você... por muito tempo...

Gabrio tremia, não havia dor no corpo maior do que sentia no peito.

Os olhos escuros deles se entreolharam por alguns segundos.

— Ajude essas pessoas...

Aquela foi última frase da sua mãe, lentamente, sua mão escorregou pela bochecha dele, tocando o chão no instante que seus olhos fecharam.

Aaaaaaaaaah!

Sem dúvida, foi o grito mais forte que Gabrio deu na vida.

Clin!

... 82,2%... 83,0%...

Gabrio possuía duas opções, a primeira era tirar a sua mãe daquela confusão, mas escolheu a segunda, cumprir seu último pedido.

Não teve ideia de quantas pessoas tirou dos destroços, dos carros revirados, das várias que carregou no colo ou nos ombros, lembrava somente do amargo que sentia até o fundo da alma.

O corpo de Sophia Wisley, o que teve que abandonar para cumprir sua promessa, foi engolido por uma cratera profunda.

Clin!

Atenção jogador!

Se a Vitalidade chegar a zero... fim de jogo!

***

Scarlet observava o novato estático no chão, jogava as adagas para cima sem descanso, quebrando as pedras de gelo.

O granizo estava cada vez maior, mas não a surpreendia, o jogo avisou.

Quanto menor o tempo... Maior seu problema!

Com dez minutos de jogo, as pedras que antes eram da proporção de uma motocicleta, agora caiam no tamanho de um ônibus.

— Por Odin! O Noob vai morrer se não fizer nada! — alertou Gunner, atirando com sua metralhadora giratória.

A ruiva o ignorou, continuando o retalho do gelo.

O atirador não precisava de muito para saber a situação do novato. Durante os jogos, qualquer osso quebrado ou perca exagerada de sangue gerava um Dano Crítico, a perda direta de vitalidade, um terror para qualquer jogador.

— O que tá esperando?! — bramiu Gunner, na direção dela.

Tum! Tum!

O coração de Gabrio bateu tão forte que sacudiu seu corpo inteiro.

— Lá vem — disse Scarlet, ao escutar o som.

Gunner arregalou os olhos.

— Não... você não faria isso... faria?! — indagou, abismado.

— Minguante e Crescente — chamou as adagas. — Preparem-se!

As lâminas acederam correspondendo o seu comando.

Tum! Tum!

O corpo dele chacoalhou novamente.

Clin!

O jogador acionou Ligação Astral

A espada de lâmina escura flutuou girando no ar. Em seguida, soltou descargas elétricas em todas as direções, produzindo um som agudo.

Tum! Tum!

No mesmo instante, Gabrio se ergueu, como se fosse puxado para cima.

— Tá de sacanagem! — gritou Gunner, dando passos para trás.

Scarlet apertou forte as adagas.

O novato pegou a espada e a arma compartilhou sua energia com ele, rapidamente, os raios também começaram a ser emitidos do seu corpo e seus ferimentos foram se regenerando.

Clin!

Recuperação de 100% da Vitalidade

Os cabelos de Gabrio ficaram erguidos e espetados, um novo penteado devido à estática da eletricidade que o percorria.

— Prontas, meninas! — disse Scarlet, para as adagas.

O novato lançou um olhar tenebroso na sua direção e, pouco a pouco, seus lábios se alargaram em um sorriso.

Scarlet Moon empolgou-se, aquilo era uma confirmação.

Naquele instante, a Relíquia da Calamidade assumia a mente de Gabrio.



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